Doentes (des)esperam por um serviço de urgências digno no Hospital Nacional

Maria Edu tenta suportar as dores enquanto espera, num corredor do HNGV, para ser atendida/Foto: Diligente

O Diligente esteve uma manhã nas urgências do principal hospital de Timor-Leste, o Hospital Nacional Guido Valadares, em Díli, onde acompanhou a assistência a uma doente e ouviu as críticas de pacientes e familiares à atuação dos profissionais de saúde e às condições do espaço.

Maria Edu, 39 anos, está sentada num dos bancos do Serviço de Emergência do Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV). São 9h da manhã. A expressão de sofrimento denuncia as dores que a atormentam e que as palavras não precisam dizer de tão evidentes que são.

As filas para se registarem neste serviço são, invariavelmente, o primeiro obstáculo que estes pacientes, debilitados, têm de enfrentar, que é maior ainda quando estão desacompanhados. É o caso de Maria Edu. A espera já vai maior do que as dores conseguem suportar e, chegada a sua vez, levanta-se, com dificuldade e sem ajuda, para se dirigir ao balcão onde pode registar a sua entrada.

Aflita, aproveita o momento do registo para saber quanto tempo mais terá de esperar para ser atendida. “O doutor está numa formação. Espere mais um pouco”, foi a resposta que, no caso, não demorou e chegou fria e despreocupada para desespero da utente. Volta a sentar-se sem saber quanto tempo levará aquele “espere mais um pouco”.

Dez minutos depois, decide pedir ajuda no espaço de farmácia disponibilizado aos doentes na própria urgência do hospital. Sem forças para verbalizar a dor, aponta para o fundo das costas, como forma de indicar a parte do corpo em que sente dor. Teve de esperar alguns minutos até que, finalmente, a voltam a chamar e lhe entregam alguns medicamentos. “Nem sei o que tenho. Só me deram medicamentos. Não sei que medicamentos são, para o que são nem como tomar”, murmura, quando questionada sobre o que tem e a medicação.

Na ausência de respostas e de um atendimento capaz de a ajudar a encontrá-las, uma cama vazia, sem almofada é, até agora, o único conforto que encontrou desde a hora a que deu entrada no hospital. As camas não chegam, nem de perto nem de longe, para todos os pacientes em espera nas urgências do HNGV, mas Maria Edu teve, neste dia até agora desafortunado, a sorte de um doente ter tido alta e deixado uma cama vaga. Aproveita a “benesse”, deita o corpo em posição fetal e ali fica, a contorcer-se com dores. Sozinha e desorientada, segura os medicamentos que não sabe como tomar, enquanto espera que algum médico lhe dê assistência.

Os médicos, esses, circulam, para a frente e para trás, entre a sala de espera, a farmácia e as salas de exames, sem explicar o que os impede de assistir, pelo menos, os casos mais graves. Veem-se as batas brancas passar pelos corredores, sem que nenhuma voz ou olhar se dirija aos doentes. Maria não é exceção.

Os familiares que acompanham, à cabeceira da cama, outros doentes, assistem atónitos à cena. “Se fosse familiar de um dos médicos, não seria tratada desta forma”, diz, entre dentes, o acompanhante de um outro paciente, incomodado com o que vê. Até que, sem suportar ver mais o sofrimento desamparado de Maria, uma jovem decide tentar ajudar e procurar algum médico que a atenda. Bate à porta de mais do que uma sala até encontrar uma médica e, nesse momento, implora: “Está uma senhora com muitas dores, à espera há muito tempo, a precisar de ajuda, por favor alguém a atenda”. A médica acede ao pedido desesperado e responde que, em poucos minutos, a atenderiam. E assim foi.

Às 10h10, uma médica dirige-se à cama onde Maria Edu deitou as suas dores. Traz na mão uma injeção para lhe administrar, após a qual, a paciente rapidamente adormece. Ao acordar, uma hora depois, percebe que a dor persiste. São agora 11h20 e, por esta hora, já podemos ver dois médicos que se dividem na observação dos pacientes.

Chega a vez de Maria ser atendida. Tinham chegado finalmente os cuidados médicos que ansiava. Os dois médicos dirigem-se a ela, sem a observar, apenas para a informar que pode voltar para casa. Em estado visivelmente débil tenta, como pode, explicar que não se sente bem, mas as suas queixas não acolhem nenhuma preocupação por parte dos clínicos. Incrédula e, ao mesmo tempo, inquieta pelo desconforto das dores, ignora a indicação dos médicos e decide ficar, na esperança de ainda conseguir ser atendida. Espera, na mesma cama, até ao meio-dia. É ignorada. Desiste. Abandona as urgências, tão ou mais debilitada do que estava mais de três horas antes, quando deu entrada. Abandona as urgências do HNGV sem saber o que tem. A cama que deixa vaga não demora a ser ocupada por outro doente.

Maria não é caso único, longe disso. As queixas multiplicam-se, na maior parte das vezes sussurradas por doentes que não se querem identificar. Uma estudante universitária que, no ano passado, esteve internada nas urgências da unidade hospitalar, contou ao Diligente um outro episódio de falta de tratamento médico a doentes em estado grave a que assistiu: “Uma senhora entrou nas urgências arrastada por uma criança que não tinha mais de 10 anos. Pareceu-me que era o filho. Notava-se que a mulher estava com dificuldades em respirar. A criança implorava que a mulher fosse assistida. Súplicas em vão. Foi um vaivém de pedidos de ajuda, que duraram até a senhora desmaiar. Só após o desmaio, foi socorrida por uma equipa médica”. Acabou por morrer. Tinha 40 anos.

Fruto daquilo a que assistiu, acusa os profissionais de saúde de “falta de rigor e de humanismo” e acredita que “problemas de saúde que podiam não ser fatais acabam por ser, devido à negligência de alguns profissionais de saúde.” Defende ainda que “antes de se ser médico, é preciso ser-se humano e ter empatia pelas pessoas”, Para a estudante da Universidade Nacional de Timor Lorosa’e, que não se quis identificar, “se as figuras importantes fossem obrigadas a fazerem consultas nos hospitais públicos aqui no nosso país, certamente investiriam muito mais na saúde”. Referia-se a quem ocupa cargos de poder em Timor-Leste e tem possibilidades financeiras para recorrer a hospitais em países como a Indonésia, Malásia ou Singapura.

Natalízia Pinto, de 22 anos, também acusa o hospital de mau atendimento. Com dores fortes na região lombar que se alastraram para a zona abdominal, dirigiu-se ao HNGV por volta das 4h da madrugada, em novembro do ano passado.

Deu entrada em braços, enquanto chorava e gritava de dor. Foi atendida de imediato e, ainda sem qualquer diagnóstico, um médico administrou-lhe três injeções. A dor não passava. Natalízia teve a sorte de não estar sozinha como Maria Edu estava. Tinha consigo a irmã e o namorado desta. Por suspeitar de problemas urinários, a irmã da jovem, não se resignou com a falta de atenção dos médicos e insistiu para que fizessem análises de urina. O resultado chegou às 10h da manhã, seis horas depois de Natalízia ter dado entrada, num pranto de dores, nas urgências do HNGV. O resultado do exame indicou problemas renais, mais precisamente, pedras nos rins. Com um diagnóstico, pôde então começar um tratamento adequado para o problema que tinha.

Sem a intervenção da irmã, não se sabe quanto tempo Natalízia seria obrigada a esperar e a ter de suportar dores agonizantes. Os familiares dos pacientes sabem que, sem eles, os doentes ficam ao abandono pelos corredores, camas e chão do HNGV e, por isso, fazem muitas vezes o trabalho de vigilância e a interpelação dos profissionais de saúde.

Dedicados e resilientes, revezam-se para estarem perto do familiar doente e alertarem os médicos para complicações maiores que possam surgir durante os longos tempos de espera. Lembram enfermeiros e médicos da necessidade de verem o doente. Fazem-no sempre com a reverência de quem sente estar a falar com alguém de estatuto superior e na incógnita se os seus apelos vão ser aceites com respeito ou com  desdém. São também os mesmos que vão buscar água e comida para os seus familiares doentes, colocados em espera por tempo indeterminado.

Outra queixa frequente é a de os profissionais de saúde só assistirem rapidamente os pacientes quando se tratam dos seus próprios familiares: “Nós que não conhecemos ninguém aqui temos de ter paciência. Demoram muito a atender”, revela ao Diligente outra utente, na casa dos 45 anos, que também espera que chegue a sua vez de ser atendida.

Questionado sobre os problemas na assistência médica da Emergência do HNGV, Eldegar Martins, médico de clínica geral, reconhece o problema, mas argumenta que um dos fatores que contribui para o mau atendimento é a falta de recursos humanos, o que implica que os médicos trabalhem muitas horas. Com estes turnos longos, surge também a desmotivação e o cansaço. “Precisamos de mais profissionais para que cada turno não ultrapasse as oito horas, como a lei estipula.”

Outro dos problemas é, segundo o médico, recorrerem ao serviço de urgências muitas pessoas com sintomas ligeiros. “Entre os 150 a 200 utentes que o hospital recebe diariamente, a maioria apresenta apenas dores de cabeça, constipações”. Problemas de saúde “sem gravidade” que, defende, deveriam ser tratados nos centros e postos de saúde, “caso se melhorasse o sistema de saúde”.

Ao que o Diligente pôde observar no local, recorrem ao atendimento nas urgências do HNGV situações, à partida, menos graves, mas também casos extremos que exigem uma resposta imediata.

De acordo com o relatório dos serviços de Emergência do HNGV, em 2022, foram registados no hospital, 60 mil 822 pacientes, dos quais mais de metade, 52%, foram casos leves.

Aos problemas de um atendimento médico deficitário, juntam-se as más condições logísticas do Hospital Nacional. O espaço é escasso para o número de doentes e as condições são de insalubridade, como o Diligente pôde atestar pelo estado imundo das casas de banho. As macas espalhadas pelo corredor acolhem crianças e adultos. Os utentes veem-se, muitas vezes, obrigados a dividir essas mesmas macas com outros doentes e, não raras vezes, com familiares e acompanhantes extenuados. A espera não é só dolorosa. É ruidosa. A cada informação pedida, a resposta dos funcionários chega em tom alto e autoritário. Os gritos aos utentes misturam-se com os choros em decibéis que exaltam o grau de sofrimento dos bebés. Privacidade é palavra que não existe no  HNGV. “Tudo ao molho e fé em Deusilustra bem a realidade do que vivem os utentes do único hospital nacional público de Timor-Leste.

Em Díli, diz-se, em tom de brincadeira, que as pessoas não gostam de ir ao HNGV, porque se entra no carro branco (ambulância) e se sai no preto (o carro funerário). Maria Edu entrou e saiu pelos seus próprios pés. Entrou com a esperança de descobrir o que tinha e de sair tratada. Saiu, mas com dores e com mais dúvidas. Continua sem saber o que teve, que tratamento lhe foi dado e qual a razão para ser ignorada e lhe serem negados os cuidados médicos a que tem direito.

Ver os comentários para o artigo

  1. Parabéns pela excelente reportagem.
    Os problemas do atendimento no HNGV são descritos com muito realismo e extrema clareza. Continuem com o bom trabalho.

  2. Parabéns pela reportagem. O leitor consegue sentir as dores da Maria, físicas e psicológicas. Impressionante também a indiferença dos médicos. Que falta de humanismo! 20 anos de independência e petróleo para isto? Vergonhoso.

  3. No que respeita à referida falta de recursos humanos, sei que, em Dezembro de 2022, 150 novos enfermeiros concluíram a licenciatura pelo Instituto Superior Cristal. Desconheço os números da UNTL. Será que está prevista, para breve, a contratação de mais profissionais (médicos e enfermeiros), e ou a construção de um novo hospital para Díli e ou a ampliação possível do HNGV nos terrenos circundantes?

  4. Os sucessivos governos dos ultimos 20 anos, querem meter “golos”, infelizmente, so tem mandado a bola a trave.
    Na giria futebolistica, uma equipa com muitos craques, nao significa victoria garantida.
    Uma boa “equipa” tem de ter Ronaldos, e obreiros, aqueles que nos “bastidores” fazem com que os RONALDOS singrem!
    DO YOU GET MY POINT OR DO I NEED TO MAKE A PICTURE?
    LET ME KNOW PLEASE!

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