Desastres naturais ou negligência das autoridades competentes?

Familiares e comunidade à procura do jovem desaparecido após chuvas fortes no início de julho/Foto: DR

“A ribeira não estava ainda muito cheia e esperamos na margem para ver se podíamos passar. Como a jornada até casa ainda era longa, decidimos dar as mãos e atravessámos a pé com muito cuidado. De repente, quando estávamos no meio do caminho, fomos atingidos por um corrente muito forte de água, como um tsunami, que nos arrastou.”

Começa assim mais um episódio de uma história que praticamente todos os anos se vem repetindo em Timor-Leste, nos mesmos contornos ou parecidos.

Januário, Agostinha, Merciana e Joanico eram os quatro jovens, com idades compreendidas entre os 15 e os 17 anos, que no dia 3 de julho regressavam da escola para casa, no posto administrativo de Odufuru-Luro, município de Lautém, quando se viram encurralados pela força da água da ribeira. Três conseguiram salvar-se. Joanico da Costa, 17 anos, não chegou a ser encontrado. Quinze dias depois, as buscas continuam por parte da Proteção Civil. Já a família foi obrigada a desistir de procurar por já não ter condições financeiras para disponibilizar mantimentos para a comunidade que lhes estava a prestar auxílio.

Segundo informações recolhidas pelo Diligente junto dos familiares do jovem, os quatro colegas voltavam da escola pública do Ensino Básico Central de Odufuro, no posto administrativo de Luro para casa, no suco Mahina II, posto administrativo Lautém, por volta das 17h30. Os cerca de 20 estudantes que têm de se deslocar deste suco para aquela escola usam normalmente o caminho alternativo. Pela ribeira, a distância para a escola é de três quilómetros, que levam trinta minutos a percorrer. Pelo caminho “normal”, a estrada, a distância é de cinco quilómetros e demoraria quase o dobro do tempo a completar.

Na tarde daquela segunda-feira, Januário, Agostinha e Merciana, estudantes do 8.º ano, saíram da escola mais cedo, às 15h30, devido às más condições meteorológicas. Chovia há dois dias seguidos e alguns professores estavam de licença. No entanto, Joanico, estudante do 9.º ano, saiu às 17h30, a hora normal.

Os quatros jovens, que são familiares, costumavam esperar uns pelos outros para regressar juntos. Assim, os três que saíram mais cedo não foram para casa. Ficaram à espera de Joanico da Costa para regressarem.

“O Joanico sempre foi como um irmão mais velho, preocupado em ajudar os colegas a atravessar a ribeira quando chove”, conta Constantino Batista, amigo próximo do jovem desaparecido. “Quando chegaram à ribeira, acharam que o nível de água ainda permitia que a atravessassem em segurança, como já tinha acontecido antes”, mas desta vez foi diferente.

Januário terá sido “arrastado quase 50 metros, mas como estava perto da margem, conseguiu salvar-se”, explica Constantino Batista a quem os três sobreviventes contaram detalhadamente o episódio.

Agostinha também conseguiu resistir à torrente. “A água arrastou-me por mais de 100 metros, mas quando o pai do Januário chegou, lançou-me o tronco de uma árvore e, por sorte, consegui segurar-me ali até chegar mais ajuda”, uma hora e meia depois. “Se ninguém me tivesse ajudado, teria morrido”, conta a estudante de 15 anos, ainda visivelmente traumatizada.

Já Merciana de Jesus Soares, que foi arrastada por mais de 800 metros, conseguiu apoiar-se numa grande rocha que estava no meio da ribeira. Ali permaneceu também durante uma hora e meia, como Agostinha, e apesar de a comunidade do suco Afabubu (posto administrativo de Luro) e alguns familiares já estarem no local, não a conseguiam ajudar, uma vez que a corrente de água ainda era muito forte. Quem relata a situação é o pai de Merciana, Marito Soares, acrescentando que foi o seu filho mais velho, irmão de Merciana, que a salvou. “Não aguentou ver a irmã em sofrimento e arriscou a sua própria vida para a salvar. A minha filha saiu da ribeira a tremer e ainda continua traumatizada”.

Os colegas lamentam o que consideram ser uma ironia do destino. Joanico, o estudante que ajudava sempre os colegas a atravessar a ribeira quando chovia, não conseguiu ser socorrido quando mais precisou.

Escola obrigada a adaptar horários em função do risco de inundação

A escola pública do Ensino Básico Central (EBC) de Odufuro-Luro, que abrange os três ciclos de estudos, conta, atualmente, com mais de 300 estudantes, dos quais 20 são da aldeia de Lereado e Lereira, no suco de Mahina II e fazem, diariamente, o caminho para a escola pela ribeira.

Para que não corram riscos ao atravessar a ribeira, “os estudantes deste suco não têm aulas quando chove e os professores estão a par desta situação”, garante o diretor da escola básica, Tomás da Costa.

Apesar disso, quando os estudantes já estão na escola e começa a chover de repente, os professores aconselham os alunos a não regressarem a casa, “sugerindo que pernoitem em casas de familiares perto da escola até que a água da ribeira baixe”, explica.

“Às vezes, mesmo não chovendo, o volume de água da ribeira aumenta, com o caudal que vem da direção de Iliomar e de Viqueque a acumular-se aqui. Por isso, gostaríamos que as aulas só funcionassem na parte da manhã, porque durante a época das chuvas, no período da tarde, é difícil para os estudantes deslocarem-se pela ribeira até à escola.”

Nesse sentido, o diretor já apresentou, no ano passado, uma proposta ao Serviço da Educação de município de Lautém para construir mais seis salas de aula, o que permitiria agregar todas as aulas e alunos na parte da manhã e evitar a travessia da ribeira nas horas de maior perigo. “Até agora, ainda não obtivemos resposta. Talvez este acontecimento trágico sirva para reforçar o meu pedido”, exclama Tomás da Costa.

Também Constantino Soares exige ao Governo que construa uma ponte sobre a ribeira, “de modo a evitar que estes acontecimentos trágicos se repitam no futuro.”

Segundo o balanço da Autoridade Nacional de Proteção Civil, divulgado esta segunda-feira, as chuvas fortes do início deste mês causaram três mortes, duas no município de Ainaro e outra em Covalima, e um desaparecido, o estudante de Lautém, Joanico da Costa. Registaram-se deslizamentos de terra em vários zonas do país, mais de mil habitações foram danificadas, das quais mais de 400 ficaram completamente destruídas. Os municípios afetados foram Ainaro, Ermera, Viqueque, Lautém, Manufahi, Bobonaro e Oecusse.

Infraestruturas deficitárias

Mortes de adultos e crianças, pessoas desaparecidas, desabamentos, casas e infraestruturas destruídas, situações comuns em Timor-Leste, ano após ano, são regularmente justificadas pelas entidades competentes como consequências de catástrofes naturais.

Em fevereiro de 2022, a comunicação social noticiava que duas pessoas (pai e filho) foram arrastados e morreram em Bobonaro, quando atravessavam uma ribeira de mota.

No mesmo ano, em março, uma criança de 10 anos foi arrastada em Manleu, e depois encontrada sem vida. Num dia de chuva, estava a brincar junto a uma valeta, quando caiu e foi arrastado.

Quase todos os anos, sempre que chove ininterruptamente, são noticiados episódios de crianças arrastadas, umas aparecem sem vida, outras nunca chegam a ser encontradas. A água não escoa pelas valetas, invariavelmente, repletas de lixo, num país onde a recolha de resíduos é praticamente inexistente. Também nas ribeiras não existem sistemas de drenagem eficazes .

As pessoas mais afetadas são quase sempre as mais desfavorecidas , que moram perto de ribeiras ou valetas, ou em locais com risco de desabamento de terras, em habitações erguidas sem assegurar condições mínimas de segurança, por falta de condições financeiras.

O último Governo, encabeçado pela Fretilin anunciou, no seguimento das fortes cheias que assolaram o país em 2021, que até ao fim de 2022, construiria quatro mil casas, tanto para os desalojados devido às cheias, como para outras famílias que moram em áreas de risco. O projeto ainda não começou.

Timor-Leste tem agora um novo executivo, liderado por Xanana Gusmão, cujo executivo tem agora a responsabilidade de tomar medidas para dotar o país de infraestruturas que evitem perdas e destruições que não vão chegar sem aviso.

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