Curandeiros: A crença enraizada que traz “cura” só no nome

O curandeiro Pantai atende os pacientes na sua casa/Foto: DR

Após 20 anos de independência, o sistema de saúde em Timor-Leste não consegue ainda oferecer um tratamento digno à população. O Governo alocou, em 2022 e 2023, fatias reduzidas para o setor, inferiores a 10%, do Orçamento Geral do Estado (OGE), e a falta de financiamento gera uma evidente falta de recursos, sobretudo humanos, nas unidades de saúde de todo o país.

Esta situação leva a que muitos pacientes percam a confiança na medicina convencional e recorram a tratamentos tradicionais. Se, por um lado, é para muitos a única alternativa é, por outro, a primeira opção para todos os que confiam mais nestes tratamentos do que que nos serviços médicos de alguma unidade hospitalar do país. É o caso de muitos doentes que sofrem algum tipo de fratura no corpo e optam por recorrer aos serviços de curandeiros.

No Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV), foram contabilizados, no ano passado, 2162 pacientes  com fraturas, sendo que 1847 sofreram acidentes de mota e 315 de carro.

Vasco Aseong de Almeida, natural do município de Aileu, 40 anos, é um dos curandeiros que recebe muitos destes casos. É conhecido por “Pantai”. O nome vem de um famoso vinho dos tempos da ocupação indonésia que, em criança, gostava muito de beber e que acabou por lhe valer a alcunha pela qual ainda hoje é conhecido. O método que utiliza é, no mínimo, assustador e, aos olhos do senso comum, não será errado dizer questionável, mas nada disso demove os doentes, que acreditam cegamente nas “técnicas” de cura do Pantai.

cerca de de um ano, pelas 7h da manhã de uma terça-feira, Nílson Soares era transportado de táxi para casa do curandeiro. O jovem de apenas 15 anos, na altura, tinha acabado de cair de mota em Kintal Ki’ik e partido o fémur da perna direita. Conta que, no momento da queda, foi levado imediatamente para o HNGV para ser assistido. Ali ficou internado durante cinco dias. A equipa médica que o acompanhava acabou por informar Nílson e a família que este teria de ser submetido a uma cirurgia para reparar a lesão, através da colocação de um ferro. Tanto o jovem como os seus familiares recusaram terminantemente a operação. Uma recusa que se fez acompanhar pela decisão de procurar o Pantai para receber tratamento. Muitos destes pacientes a quem é aconselhada cirurgia pelos profissionais do HNGV “fogem” no momento em que ouvem a palavra “cirurgia” por receio do procedimento, principalmente por medo de que resulte em amputação.

Na sua casa, o Pantai está sempre disponível para receber cada um destes pacientes que, seja por desconhecimento, má interpretação das indicações médicas ou crenças do foro espiritual, fogem do HNGV para o procurar. Há, no entanto, alguns requisitos a cumprir. Os pacientes devem levar bétel e areca para o curandeiro rezar à uma lisan (casa sagrada) e às almas dos seus antepassados , levar velas para rezar à natureza e ainda 50 dólares para oferecer à Igreja.

Nada do que os pacientes levam é algum tipo de remuneração para o Pantai, que afirma não receber nenhuma contrapartida pelos seus serviços. “Peço que tragam estas coisas, porque a natureza me ordenou. Eu só lhe obedeço”.

A única coisa que o Pantai recebe, são os galos que os doentes lhe oferecem no final dos tratamentos, em sinal de agradecimento.

Ao chegarem a casa do curandeiro, em Bidau Masaur, próximo do Hospital Nacional, Nilson foi levado em braços por dois familiares que o colocaram em cima do tapete que encontraram já estendido no alpendre do Pantai, onde recebe os pacientes.

O ritual começa com a oração à alma dos antepassados e à uma lulik (casa sagrada) e estende-se por cerca de 10 minutos. Concluída a reza, tem início o procedimento prático. Ao mesmo tempo que pega com a mão direita num bastão de madeira, Pantai segura, com a mão esquerda, na perna de Nílson.

Começam a ecoar os gritos ensurdecerdores de Nílson, a par das pancadas fortes que o curandeiro aplica no fémur fraturado da perna direita até partir totalmente os ossos. Os berros de dor do jovem são de tal forma que assustam familiares e pacientes que assistem. Apesar da dor e agonia excruciantes espelhados no rosto, Nílson ali se manteve, sem tentar nem por um instante desviar-se das pancadas ou pedir que Pantai parasse, prova da confiança inabalável de que desta forma conseguiria recuperar da lesão.

O passo seguinte está a cargo dos elementos que trabalham com o Pantai. Um dos três jovens que ajudam o curandeiro junta na boca a areca, o bétel, a cal e um medicamento tradicional de ingredientes secretos e mastiga até formar uma pasta que serve para expelir diretamente da boca para a zona magoada por acreditarem que tem propriedades curativas.

O último passo é, depois de colocar ligadura, prender umas talas de bambu à volta para imobilizar a zona magoada e salvaguardar que o preparado tradicional se mantenha em contacto com a pele para poder atuar.

As ligaduras e as placas de bambu aplicadas pelos curandeiros/Foto: DR

Nos dois meses seguintes, o jovem teve de voltar à casa do Pantai de três em três dias. A cada visita, um dos jovens que trabalham com o Pantai volta a cuspir outro preparado com os mesmos ingredientes para a zona fraturada, troca as ligaduras e coloca novamente as talas de bambu.

Hoje com 16 anos, continua com dores no local da fratura. Não consegue correr nem jogar à bola, mas, segundo o Pantai, “daqui a dois anos vai estar completamente curado”. Mesmo assim, o jovem destaca a sorte que teve de ter ido ao curandeiro, pois evitou ser operado.

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Nilson Soares depois de ser assistido pelo Pantai/Foto: DR

Segundo registos do próprio Pantai, Nílson é um dos 166 doentes que procuraram o curandeiro entre janeiro e outubro de 2022.

Geovánio Amaral faz também parte da lista de doentes que recorrem a estes tratamentos. A 18 de dezembro do ano passado, o jovem, na altura com 21 anos, caiu de mota, no município de Baucau, depois de embater violentamente contra um cavalo que atravessava a estrada, o que lhe valeu uma fratura exposta no pé direito. Os familiares decidiram levá-lo para ser assistido por Pedro Gusmão, outro matan-dook (curandeiro, em tétum), que atende estes pacientes no posto administrativo de Vemasse, também em Baucau.

O processo diferencia-se da forma de atuar do Pantai, principalmente porque Pedro Gusmão abdica das pancadas com bastão que caracterizam a atuação do curandeiro de Díli. O matan-dook de Baucau limita-se a mastigar um preparado medicinal que contém também areca, bétel e remédio tradicional, que acaba por, literalmente, cuspir para a fratura exposta do pé partido de Geovánio. São também colocadas ligaduras e talas. Nos dias seguintes, devido às dificuldades que o jovem tinha para se deslocar, dirigia-se o curandeiro a sua casa para ir trocando os remédios tradicionais, ligaduras e talas.

Uma semana depois, a ferida infetou e começou a gangrenar. A condição de Geovánio assumiu rapidamente proporções de extrema gravidade. Sempre que um tratamento não é bem-sucedido, o curandeiro remete os motivos do insucesso para “problemas culturais”. Assim foi também a explicação relativamente ao agravamento do estado de saúde do jovem. O matan-dook descarta qualquer tipo de responsabilidade, remetendo a origem do problema para a casa sagrada e para uma eventual desunião entre os elementos da família, desunião essa que impede o sucesso no tratamento. Nestes casos, acredita-se que só depois de restituída a unidade da família, através de algum ritual na casa sagrada, é que o curandeiro poderá levar a bom porto a sua missão. Enquanto isso, Pedro Gusmão entrega novamente o jovem à família.

O próprio pai de Geovánio acredita que, se o filho não ficou curado pelo tratamento do matan-dook, isso se deveu “a problemas na família e à falta de cumprimento de alguns rituais”.

Apesar da crença inabalável no matan-dook, a família, sem outras opções, decidiu levar Geovánio ao Hospital de Baucau. Dada o grau de infeção e o risco de se espalhar por todo o corpo, o médico não teve outra opção a não ser amputar-lhe a perna. Quando recebeu a notícia, no dia 4 de janeiro, ficou “assustado e revoltado”, porque acreditava que a operação “seria apenas para colocar um ferro”, uma barra de metal com perfurações para a inserção de parafusos para imobilizar os segmentos fraturados.
Foi depois transferido para o Hospital Nacional para receber os cuidados médicos de que precisava e iniciar a sua recuperação, ainda que com danos irreversíveis. “Se eu tivesse ido antes ao hospital, talvez a minha perna não tivesse de ser amputada”, lamenta o jovem de apenas 21 anos, para quem a vida nunca mais vai ser a mesma.

Quando vê os outros jovens a andar, a rir e a cantar, recolhe-se no seu quarto e chora por perceber que nunca poderá ter uma vida normal e será sempre dependente de terceiros. Geovánio interrompeu os estudos na Universidade da Paz por não ter forma de se deslocar e passa os dias em casa.

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Geovánio Amaral, 21 anos, teve de amputar a perna direita/Foto: DR
“Afastamento das mulheres” é condição para uma rápida recuperação

Um dos critérios estabelecidos pelo Pantai para que os pacientes tenham uma recuperação mais rápida “é não se aproximarem de mulheres e muito menos tocar-lhes ou deixar que lhes toquem”. O curandeiro diz, sobre esta regra, que lhe é “indicada pela natureza” e garante que, “para os pacientes que não cumprirem, a cura vai ser mais demorada e pode até nem acontecer”. Se cumprirem, “ficam totalmente recuperados num curto espaço de tempo e podem voltar à vida normal”.

É o caso de Adriano Verdial, 28 anos, que partiu a clavícula também num acidente de mota. O jovem conta que cumpriu a regra e, em apenas duas semanas, começou a sentir-se melhor: “Fiquei isolado no meu quarto. As minhas irmãs só deixavam comida na mesa que eu ia buscar para comer no quarto”, explica.

Também Adérito Pereira, 28 anos, outro doente do Pantai, e que dois meses depois da intervenção ainda não tinha recuperado, corrobora a regra do curandeiro com o seu próprio exemplo: “Se eu cumprisse a regra, talvez tivesse recuperado em cerca de duas semanas, mas, como em minha casa vivo com muitas irmãs e sobrinhas, muitas vezes elas esqueciam-se da regra. Vinham para perto de mim e chegavam mesmo a tocar-me”, justificou convicto de que foi essa a razão do atraso na sua recuperação.
Mas não são apenas os homens que recorrem aos serviços destes curandeiros. Adélia Pinto, 26 anos, conduzia uma mota no município de Manatuto, quando um carro embateu no veículo motorizado. Partiu a perna e uma vértebra.

Optou também pelo tratamento caseiro e recorreu ao Pantai. Hoje as palavras que lhe saem da sua boca carregam todo o medo que sentiu momentos antes e durante a intervenção violenta: “Gritei muito, senti muita dor, uma dor inexplicável, mas sabia que era o melhor caminho para me curar”.

O que separa o tratamento convencional do tratamento tradicional

Juvêncio Dias, médico ortopedista no HNGV, conta que, quando chegam ao hospital doentes com fraturas que exigem procedimentos cirúrgicos, muitas vezes os doentes acabam por decidir recorrer aos tratamentos tradicionais.

O médico explica que estes doentes não entendem a diferença entre fazer uma cirurgia e fazer uma amputação. Cada vez que lhes é indicada a necessidade de cirurgia, acham que vão ser amputados. O médico faz, por isso, questão de clarificar que “só há indicação para amputar quando a parte partida prejudica ou pode prejudicar a vida do doente”, realçando que esses casos são a exceção e não a regra.

Pantai, o curandeiro de olhos vermelhos, magrinho, voz forte, sempre de pasta preta ao ombro, onde traz o medicamento tradicional de que nunca revela os ingredientes, confessa que, quando vê um paciente a chorar com dores, sente “piedade” e, não raras vezes, perde a coragem de bater na região do corpo já de si magoada pela fratura. “Como ser humano, também eu sinto a dor que o meu paciente sente, mas tenho de obedecer à ordem que a natureza me dá”, enfatiza. Não esconde que, para ganhar coragem de bater, tem muitas vezes que “beber vinho antes”.

De acordo com o antropólogo Mateus Afonso, o curandeiro refere-se à natureza como o local sagrado onde se descobrem os medicamentos, medicamentos esses que provêm de um ser sobrenatural desconhecido, a que o curandeiro acredita dever obediência. “A natureza é encarada como o elo de ligação do ser humano à sua origem”.
Na tradição timorense, cada uma lisan tem o poder da cura, um poder transmitido na oralidade e sempre de forma secreta a determinadas pessoas que ficaram, dessa forma, incumbidas de assegurar a saúde dos membros desta morada sagrada. No entanto, se outras pessoas precisarem de cuidados, os detentores da sabedoria de cura também as podem ajudar. “Quanto mais secreto for, mais poder tem o Pantai e os outros curandeiros”, explica o antropólogo.

O próprio Pantai, questionado sobre a origem dos seus ‘medicamentos’ e técnicas, afirma perentoriamente que não pode revelar essa informação, porque “se revelasse morreria”.

A simbolizar esta ligação com a natureza estão também as cobras que o Pantai tem em casa e utiliza em determinadas práticas. O curandeiro acredita que o animal tem propriedades curativas e, por isso, chega a enrolá-las à volta do braço ou da perna magoadas como forma de tratamento.

Médicos preocupados com procedimentos tradicionais

Ainda de acordo com o ortopedista, procedimentos como os do Pantai e outros curandeiros são totalmente contrários ao que a medicina convencional defende e comprova cientificamente. “Fiquei assustado, quando vi um vídeo do Pantai a partir ossos de pacientes com um bastão. Quando mostrei a outros colegas, ficaram todos igualmente assustados”. O que o curandeiro faz “é desumano, com os pacientes a gritar e ele a continuar a bater”.

O médico relata que são muitos os doentes que regressam ao HNGV depois de serem assistidos pelo Pantai e a maioria deles não consegue recuperar dos danos que trazem infligidos pelo curandeiro. “Depois das pancadas, as partes do osso partido ficam coladas umas às outras, não se juntam devidamente e o osso não regenera. A atuação do curandeiro só agrava o problema”, assegura o médico. Explica ainda que os ossos partidos só podem ser recuperados através da cirurgia. “A cirurgia é o procedimento indicado uma vez que serve para juntar de novo as partes partidas, recanalizar os vasos sanguíneos e inserir um ferro para imobilização, até que os ossos se regenerem. Só depois disso o podemos retirar”, detalha.

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Cirurgia no Hospital Nacional Guido Valadares/Foto: DR

Sobre os pacientes que dizem terem sido curados pelo Pantai, o médico argumenta que, em casos de fraturas leves, o osso pode melhorar sozinho e isso não significa que a cura seja resultado do método aplicado pelo curandeiro.

Relativamente aos pacientes que escolhem ir ao Pantai por acreditarem poder assim melhorar mais rápido, o médico afirma que são manipulados pelos curandeiros. “Cientificamente, a regeneração dos ossos leva muito tempo e exige procedimentos médicos estudados e comprovados”.

Questionado sobre a falta de recursos humanos no sistema de saúde como uma das principais causas que leva os pacientes a optar por tratamento não convencionais, o médico reconheceu que há muitos médicos de clínica geral, mas poucos médicos especialistas, principalmente ortopedistas e médicos cirurgiões.O clínico preferiu, no entanto, não se alongar sobre os detalhes e consequências desta limitação.

Apesar das incertezas, da falta de investimento na saúde pública e das crenças enraizadas em Timor-Leste sobre a eficácia dos métodos tradicionais, independentemente da escolha individual de cada um, das certezas de uns e das dúvidas de outros, só a medicina convencional apresenta evidências científicas. Um curandeiro não é um médico. Apenas os profissionais com formação legalmente reconhecida podem ser considerados como tal.

Ver os comentários para o artigo

  1. Muitos dos politicos de Timor Leste fazem-me lembrar estes curandeiros. A diferenca esta na massa que os politicos recebem. Boas pensoes vitalicias e peruas nao galinaceos.
    A masca de betel e areca nos politicos e uma coisa alergica.
    Os politicos tambem “tratam” dos pacientes indo ve-los em bons Prados.
    E ca uma pradaria….

  2. Arrepiei-me com a violência dos curandeiros. Esta reportagem mostra bem o muito que ainda é preciso fazer para libertar as pessoas. Só a educação o pode fazer. Infelizmente, essa não é preocupação dos líderes.

  3. Infelizmente já vi um vídeo de um paciente assistido pelo curandeiro a bater no pé fraturado com o bastão, os gritos … Nai Jesus. Até agora nenhum paciente reclama a ineficácia da cura significa que maioria fossem recuperados.

  4. Geralmente o paciente e OS familiares querem experimentar novas alternativas para conseguirem a cura mas no fim sofrem consequencias gravissimas. Temos Que manter confianca na medicina convencional.

  5. Curandeiro!

    Senti um mal ligeiro
    Sentado na cadeira do barbeiro
    Ele sugeriu uma visita ao curandeiro
    Que vive na barraca ao lado do gondoeiro
    Onde morava antigamente o Sr Pinheiro
    Primo irmao do nosso “primeiro”
    Que viaja como um caixeiro
    Nao para em TL, nao e seu paradeiro
    O curandeiro deu-me um olhado sobranceiro Deitou-me com a cabeca no chumasso rasteiro
    Senti na cara um aguaceiro
    Cuspiu betel e areca, o bruxeiro
    Mas que grande mau cheiro
    O homem ate e um gajo porreiro
    Nao me partiu ossos o granadeiro
    Mas continua a ser um grande pantomineiro
    O curandeiro!

    Carlos Batista
    Poeta Timorense

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