Coberturas de suicídio violam recomendações internacionais e Código de Ética Jornalística

Noticiar pormenores pode levar a imitações de atos de suicídio /Foto: Unicef/Adriana Zehbrauskas

Quatro jovens suicidam-se, no espaço de um mês. A 29 de maio, o órgão de comunicação social online SAPNEWS noticia, no mesmo artigo, cada uma das mortes, com imagens e informações de caráter privado. É, inclusivamente, revelada a mensagem que um dos jovens que decidiu pôr termo à vida deixou à irmã: “O mundo tem muito barulho. Quero morrer”. O jornalista conclui: “Enfim, Manecas não conseguiu aguentar o barulho do mundo. Decidiu enforcar-se”. Exemplos como estes não são esporádicos nos órgãos de comunicação social timorenses, com descrições pormenorizadas e traços sensacionalistas que desrespeitam o Código de Ética da profissão.

“Não é sensacionalismo, é uma forma de alertar os jovens de que o suicídio não é solução para os problemas e de evitar que imitem este comportamento”. É desta forma que o diretor da SAPNEWS, Sérgio Alves da Costa, justifica a publicação.

Para evitar o risco do fenómeno de mimetização, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda aos órgãos de comunicação social que não noticiem “pormenores como o método utilizado para o suicídio.” Também no artigo 10.º do Código de Ética dos Jornalistas de Timor-Leste consta que estes profissionais devem “evitar a publicação desnecessária de palavras, imagens ou sons que transmitam sadismo ou violência sobre pessoas ou animais e que tenham uma natureza perturbadora”. Contudo, nem todos seguem as recomendações.

Para além do artigo da SAPNEWS, também no mês de maio, a GMN TV transmitiu, em horário nobre, no Jornal Nacional, uma peça em que descrevia, com pormenores, o suicídio de uma jovem de 20 anos, ao mesmo tempo que mostrava o corpo numa imagem com pixelização.

Segundo o Banco Mundial, o número de mortes por suicídio em Timor-Leste tem vindo a aumentar desde 2008, situando-se em 2019 em 3,7 por cada 100 mil habitantes. Embora a taxa de suicídios continue, apesar da subida, a ser relativamente baixa, este tipo de mortes tem projeção regular e, invariavelmente, detalhada na comunicação social timorense, o que pode também levar a uma ideia errada relativamente à real dimensão deste flagelo no país.

Em Timor-Leste estas coberturas são, geralmente, normalizadas pelos media e até pelas entidades que regulam a profissão. A única condição que se estabelece para a publicação é que, de alguma forma seja evitada a identificação da pessoa em causa, o que é regularmente feito através de efeitos visuais como desfocar ou pixelizar a imagem, o que não apaga os efeitos perturbadores de fotografias e imagens deste teor.

As declarações do secretário-geral da Associação de Jornalistas de Timor-Leste (AJTL), Acácio Pinto, são o espelho dessa normalização quando afirma que “em imagens relacionadas com a morte de alguém, é sempre necessário tapar a face e os ferimentos”, não questionando, por si só, a divulgação desses conteúdos.

Também para o presidente de Conselho de Imprensa (CI), Otélio Ote, “publicar fotografias ou imagens em que não se vê totalmente o rosto, ou ferimentos é uma forma da comunicação social ajudar a prevenir o suicídio”. O presidente de CI, alerta apenas para que os editores e jornalistas entrevistem espcialistas, como psicólogos, e se preocupem em acrescentar dados, nomeadamente “conteúdos educativos e de aconselhamento”.

O diretor de desenvolvimento e análise de media, Alberico Júnior, confirma. “Neste momento o Conselho de Imprensa não atua relativamente às coberturas jornalísticas do suicídio, nem fez ainda nenhuma carta de chamada para retificação de conteúdos.” O responsável defende que “só existe uma violação caso a imagem permita identificar o falecido. Se a imagem for desfocada não viola o Código de Ética”.

Assim, o Conselho de Imprensa, que supervisiona os conteúdos dos órgãos de comunicação social e regulamenta a atividade da comunicação social através de alertas e sanções, não atua relativamente a coberturas do suicídio nos moldes em que aconteceram no artigo da SAPNEWS, GMN TV e noutras publicações semelhantes.

O psicólogo Alessandro Boarccaech fala em “sensacionalismo”. Esta situação pode ter como base a “pouca compreensão da responsabilidade que os meios de comunicação possuem, a ideia equivocada de que se trata de uma notícia investigativa ou informativa ou a tentativa de corresponder àquilo que se entende que o público gostaria de ver”.

O jornalismo como agente de prevenção

Ao mesmo tempo que os meios de comunicação social podem ter um papel ativo na prevenção do suicídio, se forem mal utilizados podem resultar no efeito contrário, acabando por promover esse comportamento.

Constâncio Vieira, chefe de redação da Rádio Televisão de Timor-Leste (RTTL), realça que a televisão pública, consciente dessa responsabilidade, tem vindo a reduzir a cobertura destes casos. “Quando noticiamos que uma pessoa se suicidou, e revelamos, por exemplo, que aconteceu por problemas e pressões familiares, pessoas que assistam a essa notícia e estejam a passar pelo mesmo problema, podem sentir um incentivo para tomar a mesma decisão”, reconhece.

Apesar disso, o chefe de redação sustenta também que, em casos de suicídio por pressão familiar, “é preciso noticiar para que alguém que esteja a enfrentar o mesmo problema faça queixa na polícia, nas organizações de direitos humanos ou consulte um psicólogo”.

Além de um possível estímulo a que outras pessoas tomem esta decisão drástica, Alessandro Boarccaech alerta: “A divulgação de imagens, dos detalhes de como ocorreu o suicídio e o sensacionalismo podem ter efeitos negativos sobre as pessoas vulneráveis, causar mais sofrimento para a família da pessoa que faleceu e espalhar desinformação e preconceito”. Defende também que, perante um caso de suicídio, os jornalistas devem questionar-se sobre os objetivos da notícia, se esta respeita a memória e a dignidade da vítima e que tipo de influência poderá ter nas outras pessoas.

O psicólogo adverte ainda que os jornalistas devem também evitar explicações simplistas, atribuir culpas e fornecer justificações religiosas, moralistas ou culturais: “Estas precauções são consenso nas recomendações da OMS, da Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio (IASP, em inglês), entre os profissionais que trabalham com saúde mental e na literatura científica especializada no assunto”.

Segundo as recomendações da OMS, dos profissionais de saúde e da maioria dos manuais de comunicação social, as notícias sobre suicídio devem seguir alguns princípios básicos. Entre os vários exemplos, é citada a necessidade de evitar uma linguagem sensacionalista, fotos do falecido e do local onde ocorreu o suicídio, manchetes de primeira página ou outros destaques, descrição em detalhe do método utilizado ou explicações simplistas. O suicídio não deve ser mostrado como uma forma de resolver os problemas e as reportagens devem sempre considerar o impacto do suicídio nos familiares, amigos e comunidade, pode ler-se no documento “Prevenção do suicídio: um manual para profissionais de media”.

Boarccaech recomenda ainda que os autores destas notícias “solicitem o apoio dos profissionais da área da saúde para esclarecer os factos, mostrar dados e estatísticas corretas e relevantes, apresentar alternativas ao suicídio, informar como contactar as instituições que prestam apoio, explicar os sintomas e os sinais de risco para identificar comportamentos suicidas. É importante manter o foco no respeito à dor das pessoas e na prevenção”.

O psicólogo deixa aos jornalistas as questões: “Poderiam incorporar na sua prática a reflexão contínua sobre qual a função social dos meios de comunicação? Quais as referências estéticas e narrativas que os jornalistas timorenses possuem? Quais os limites da liberdade de imprensa? Quais são as diretrizes e objetivos, de forma geral, dos meios de comunicação em Timor-Leste?”.

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