Mulheres no pugilismo

Boxe feminino faz KO a ideia machista que diz “mulher não pode”

Amélia Gusmão (de vermelho) em luta na Liga Amadora de Boxe, em 2023/Foto: Diligente

Não são muitas, mas as mulheres boxistas em Timor-Leste vão, pouco a pouco, ganhando espaço.

Correr quilómetros e quilómetros, sem intervalos. Subir a colina de Díli. Dar voltas ao campo do Benfica ou ao jardim do Arquivo & Museu da Resistência Timorense. Bater com força no pesado saco de boxe. Fazer flexões de braços e abdominais. Lutar com a própria sombra. São tarefas diárias dos atletas de boxe que treinam no clube do Benfica, em Colmera, Díli.

Ao acumular diferentes tipos de exercícios físicos, o pugilismo é um desporto com muitas vantagens para a saúde física e mental. O boxe em Timor-Leste é gratuito, mas exige um enorme investimento de tempo, força e dedicação.

Ainda há pessoas que associam as mulheres unicamente à beleza, à fraqueza e às tarefas da casa. Com disciplina e consistência no treino, na hora do descanso e na alimentação, com persistência e paciência, as boxistas timorenses mostram, contudo, que as mulheres podem ser o que elas quiserem.

O Diligente conversou com três mulheres pugilistas que participaram na Liga Amadora de Boxe de 2023, no Estádio Municipal de Díli. Amélia, Domingas e Joaninha treinam com dedicação para um dia representar Timor-Leste na Liga Internacional. Atualmente, cerca de 15 mulheres treinam boxe com regularidade no país.

“Não me deixo cair até a luta terminar”

Amélia Victor Gusmão, 23 anos, é pugilista por paixão. Começou a acompanhar a modalidade ainda em criança, assistindo a combates na televisão. Contando sempre com o apoio máximo dos seus familiares e amigos, não há palavras ofensivas que a façam recuar. Os quilómetros que tem de correr durante os treinos são a única dificuldade que destacaria.

A jovem conheceu o Benfica através dos seus vizinhos e decidiu entrar no clube em 2018, quando tinha 18 anos. A lutar no ringue desde 2021, Amélia conseguiu o primeiro lugar na Liga Amadora de Boxe de 2023, na classe de 60 quilogramas.

Domingas de Araújo Barros, 22 anos, treina desde 2014. Decidiu ser pugilista por ver que não havia, naquele momento, nenhuma boxista, depois de ter tido duas nos anos anteriores. A determinação também foi alimentada pelo facto de, antes de chegar aos 15 anos, ela ter assistido a homens a bater nas mulheres.

Domingas Barros na Liga Amadora de Boxe de 2019/Foto: DR

A jovem, de Ermera, queria ser forte e imbatível e, ao mesmo tempo, mostrar às mulheres timorenses que não são só os homens que podem ser boxistas. Sente que carrega a missão de ajudar as mulheres a saber defender-se em todas as situações, principalmente para serem mais livres e poderem viver em segurança.

Apenas com ligadura nas mãos, as crianças do bairro de Bebora treinam de graça as técnicas de pugilismo, com a ajuda de Domingas, que também é assistente no jardim de infância da Escola Internacional de Díli. Gere ainda um curso de boxe para estrangeiros de modo a ganhar algum dinheiro.

Desde que começou a lutar no ringue, em 2015, Domingas venceu quase todos os combates, exceto em 2017, em Maliana, num duelo internacional entre Timor-Leste e Indonésia. Também neste ano, Domingas não conseguiu ir além de um terceiro lugar na Liga Nacional Amadora de Boxe.

Não são as derrotas que a fazem desistir. Pelo contrário, só servem para a motivar. “Não me deixo cair até a luta terminar”, conta, explicando que o boxe a ensinou a ser disciplinada e a trabalhar muito. É com essa resiliência que encara o compromisso de se tornar sénior e competir nas ligas internacionais.

Domingas recebe apoios da família e amigos, tanto no bairro como no clube, que a incentivam a perseguir os seus objetivos. A mãe tentou demovê-la dessa “ideia de ser lutadora de boxe” por recear que a filha se pudesse lesionar com gravidade durante os combates, mas continua a apoiá-la. A jovem, sendo a única mulher no clube em 2014, sente que, desde o primeiro dia, os homens a tratam com respeito e igualdade e a ajudam nos treinos.

“Sou mais do que uma vencedora”

Houve momentos em que Domingas se sentiu deprimida nas competições, quando algumas pessoas lançavam insultos, como “És magra! És pequenina! Morre agora!”. Sempre que isso acontecia, optava por manter a paciência, o respeito e o controlo das emoções para conseguir lutar.

“Vencer as minhas próprias emoções, antes de tentar ganhar o combate” é o mote da menina, que não quer levar a peito as palavras ofensivas, nem as usar como motivação. Responde aos insultos com o seu desempenho e motiva-se com a expressão: “Sou mais do que uma vencedora”. A jovem considera que a fé em Deus a tem ajudado a ultrapassar os obstáculos.

Domingas sublinha que, no pugilismo, deve haver um equilíbrio entre o corpo e a mente. O stress, o cansaço e as palavras ofensivas podem contribuir para situações de desequilíbrio. Para evitar esses momentos de desequilíbrio emocional, Domingas diz para si própria “tudo o que eu sinto agora acaba hoje. Amanhã será um novo dia”.

Joaninha Sarmento Alves, 21 anos, não se importa com as palavras ofensivas. É como se não ouvisse ou sentisse nenhuma delas. Mesmo que nunca tenha presenciado casos de discriminação ou de violência baseada no género, a jovem reconhece que existem situações em que homens batem nas mulheres e confia no boxe como uma ferramenta de defesa para as mulheres nestas ocasiões.

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Joaninha Alves, depois do combate que lhe deu a segunda posição na Liga Amadora de Boxe 2023/Foto: Diligente

Joaninha é apaixonada pelo boxe desde o 5.º ano da escolaridade, quando assistiu um combate internacional no Youtube. A sua inspiração é Claressa Shields, uma boxista profissional americana de 28 anos.

Por falta de informações sobre onde poderia seguir a sua paixão, Joaninha apenas fazia corridas diárias ao longo da praia. Um dia, em julho de 2021, quando tinha 19 anos, viu pessoas a treinar boxe na praia. Aproximou-se do grupo e perguntou onde eles costumavam treinar. Foi assim e com ajuda do Google Maps que encontrou o Benfica. Começou a lutar em outubro de 2021.

Perdeu no seu primeiro duelo, mas compensou a derrota inicial, com um segundo lugar num torneio, ainda no mesmo ano. Conquistou o primeiro lugar na Liga Amadora de Boxe de 2022 e o segundo lugar, recentemente, na liga de 2023.

Quando contou à família que ia competir na modalidade de pugilismo, os familiares não acreditaram. Na noite da luta, levou o pai ao local para assistir ao combate. “Ficou muito contente. Vi os seus olhos cheios de lágrimas, mesmo que não tivesse ganho essa primeira luta”, conta Joaninha Alves, com um sorriso no rosto.

Os amigos que tem no clube também a apoiam. Ela foi a quarta mulher a juntar-se ao clube de Benfica, que tem agora cinco mulheres boxistas.

Mulheres no pugilismo

A Federação de Boxe Amador de Timor-Leste (FBATL) realizou, de 31 de julho a 5 de agosto deste ano, a Liga Amadora de Boxe de 2023, no Estádio Municipal de Díli. O lema do evento foi “Boxe – rumo ao desporto popular e ao progresso social”, motivado pelo facto de o desporto ter subido, em maio deste ano, três lugares no ranking, passando de último para o oitavo lugar, entre 11 nações, nos Jogos do Sudeste Asiático (SEA Games, sigla em inglês).

Desde a entrada de Timor-Leste nos SEA Games, em 2000, o país ficou sempre na última posição do ranking. “Com apenas seis meses de preparação, conseguimos roubar o oitavo lugar a Singapura. Podemos dizer que este é um desporto que se desenvolve rapidamente, servindo de exemplo para outras modalidades”, informou Argélio Bernardino Vilela, 28 anos, gestor da FBATL.

Timor-Leste apenas preencheu a categoria dos homens na competição, porque ainda não havia mulheres qualificadas para a Liga Internacional. Para poder participar nos SEA Games, as mulheres devem ser seniores de modo a conseguir entrar na seleção nacional, a equipa que engloba os melhores de todos os clubes e representa a nação nos jogos internacionais.

“Boxe é parte da luta feminista, da emancipação das mulheres e do combate à discriminação baseada no género, ao patriarcado e à domesticação feminina”

Vilela adianta que, para ser sénior, o boxista deve lutar na competição de juniores pelo menos três vezes e conseguir, no mínimo, um primeiro lugar. “Domingas é atleta há algum tempo e a única com condições para passar a sénior. No entanto, por falta de pugilistas, ela tem de ficar nos juniores”, informou o gestor.

Na Liga Amadora de Boxe de 2023, registaram-se 24 clubes com 137 atletas no total. Nove são mulheres. Os pugilistas são agrupados em 111 juniores e 26 seniores. A participação feminina para este evento anual ainda não chegou a 10%, mas está a aumentar. No ano passado, participaram quatro mulheres na Liga.

Ainda não há dados oficiais para atestar a quantidade exata de boxistas timorenses. Perante a questão, o gestor da FBATL pretende efetuar um recenseamento em todos os clubes após esta competição, mantendo, depois disso, uma atualização semestral.

O prémio que não recompensa

A Comissão Reguladora de Artes Marciais (CRAM) alocou 15,7 mil dólares neste evento. O valor, porém, não foi suficiente para pagar os prémios, a montagem do ringue e todas as questões logísticas. Cada clube teve de contribuir com cinco dólares no registo para o custo administrativo.

Argélio Vilela reconhece que o prémio foi apenas um reconhecimento dos esforços e da participação dos pugilistas. “Duzentos dólares não chegam para pagar a um atleta que treina diariamente e luta no ringue, arriscando a sua integridade física”, diz o jovem, comprometendo-se a tentar melhorar o valor do prémio que, ainda assim, está dependente de mais apoios do Governo.

Os vencedores receberam dinheiro, medalha e certificado. O valor máximo foi de 200 dólares para a categoria sénior e 150 para júnior. Vilela explica que a pequena quantia se deveu ao total dos vencedores. Em cada classe, há quatro campeões, um primeiro lugar, um segundo e dois terceiros lugares.

Nesta competição, houve 16 classes para masculino e três para feminino, totalizando 64 vencedores e nove vencedoras (o universo das mulheres participantes). Se todas as vagas forem preenchidas, haverá oito classes em cada categoria, para cada género, perfazendo 32 classes. Com quatro triunfantes por classe, seriam 128 atletas premiados.

“Fora do ringue, somos irmãos”

“As medalhas, produzidas no mês anterior em Jacarta, Indonésia, não são como as medalhas olímpicas, em ouro, prata e bronze, por falta de orçamento”, confessa o gestor da competição. Nas lutas, os pugilistas equipam-se com protetor da boca e dos órgãos genitais, luvas, sapatos, fardas e protetor de cabeça (só para os juniores).

O fundo da CRAM foi utilizado não só para custear os prémios, mas também para pagar 14 pessoas do júri da Associação Internacional de Boxe Amador (AIBA). Cada elemento recebeu 20 dólares por dia, o que perfaz 1.960 dólares americanos para os sete dias da competição. Em cada combate, que dura 12 minutos, estavam três jurados, um árbitro, dois juízes ou supervisores e um locutor para anunciar o resultado. No final de cada luta, os 14 elementos do júri rodavam entre si, assumindo uma das referidas funções.

Estavam presentes quatro médicos para dar apoio aos boxistas. Cada médico ganha 20 dólares por dia, durante seis dias. É a federação que fornece os equipamentos aos atletas. Um par de luvas de boxe custa em média 60 dólares americanos.

Todas as despesas, para o curto orçamento da FBATL, fazem com que os vencedores recebam prémios modestos. Amélia Gusmão, vencedora da classe de 60 quilogramas, ganhou uma medalha de “ouro” e 150 dólares. Domingas Barros, conquistou o terceiro lugar na classe de 48 quilogrmas, recebeu 100 dólares e a medalha de “bronze”. Joaninha Alves, segundo lugar da classe 51 quilogramas, levou para casa 120 dólares e uma medalha de “prata”.

Quem encaixa melhor os golpes, vence

Muitas pessoas no estádio gritavam por cada murro lançado e apostavam no ou na boxista que dava mais socos. No fim do combate, feitas as contas, muitas destas pessoas foram surpreendidas pelo facto de outro pugilista, que deu menos murros, vencer. “Se a pancada não acertar bem na cara e na parte abdominal, ou seja, se for defendida pela mão do adversário, não são atribuídos pontos”, esclarece Argélio Vilela.

Em cada round o árbitro avalia o desempenho de cada atleta. O lutador que consegue encaixar bem os golpes vence o round e são-lhe atribuídos 10 pontos, enquanto o adversário recebe 9. Se houver um soco forte e fizer o outro “ir ao tapete” ou perder o equilíbrio (knockdown), é retirado um ponto ao adversário e, no final desse round são atribuídos 10 e 8 pontos, respetivamente.

Pode haver situações em que, após um knockdown o árbitro inicie a contagem, para dar tempo ao boxista para se recompor. Se a contagem chegar a 10 segundos sem uma reação do lutador, o árbitro pode declarar o fim do combate por knockout (KO). Caso o árbitro considere que não há condições para o combate continuar, pode anunciar o vencedor por technical-knockout (TKO).

No estádio, os combates sucediam-se e, sempre que acabava uma luta, cada boxista dirigia-se primeiro ao treinador da equipa adversária, que estava à espera com a mão esquerda, no ar segurando uma toalha e a mão direita preparada para um aperto de mão. No momento em que apertavam as mãos, o treinador limpava a cara do atleta, que depois voltava ao seu treinador para repetir o processo, com a mesma toalha.

“Este tipo de tradição surge como um símbolo de união. Somos rivais apenas no momento da luta, mas irmãos fora do ringue”, explicou Argélio Vilela. Todos os treinadores de um clube são treinadores de todos os pugilistas timorenses, mesmo que não treinem juntos.

Para Argélio Vilela, é preciso intensificar a participação feminina no boxe, “por ser parte da luta feminista, da emancipação das mulheres e do combate à discriminação baseada no género, ao patriarcado e à domesticação feminina”. “Encorajo as mulheres apaixonadas por este desporto a participarem nos treinos, porque o pugilismo não é só para os homens. É para todos os seres humanos, pois temos uma estrutura física semelhante e temos de ter as mesmas oportunidades”, observou.

Enquanto isso, Amélia, Domingas e Joaninha seguirão com os treinos, procurando, cada uma a seu modo, o aperfeiçoamento e evolução na modalidade desportiva que tanto amam. Querem competir e vencer, em Timor-Leste e no estrangeiro. Donas de si, provam, todos os dias, que qualquer forma de preconceito contra as mulheres ou violação aos direitos das cidadãs devem ser devidamente derrubadas.

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  1. Os murros que os machos precisam nao sao os di ring de box, sao aqueles murros inteligentes que as mulheres sao peritas na vida quotidiana.
    Sao murros efectivos que so as mulheres sabem!
    Go for it, give them a KO!

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