Bordalo II: “O facto de as pessoas fecharem os olhos a questões graves faz com que sejam parte do problema”

O crocodilo de Bordalo II em Metiaut: parte dos materiais foram recolhidos no aterro sanitário de Tibar/Foto: Diligente

Em entrevista exclusiva ao Diligente, o artista português, que veio a Timor-Leste a convite da União Europeia, refletiu sobre o poder transformador da arte e explicou como usa o lixo para representar animais em grande escala – e criticar os hábitos consumistas.

Artur Bordalo autoproclama-se artivista, um cidadão que usa a arte para defender as causas em que acredita. Nascido em 1987, em Lisboa, Bordalo II, nome pelo qual é conhecido, representa animais em grande escala, construídos quase exclusivamente com lixo – o mesmo material que os mata (como ele próprio diz) –, sendo uma forma de alerta para os hábitos consumistas, que resultam numa enorme e contínua produção de resíduos.

Já na série de trabalhos “Provoque”, Bordalo II interage com o tecido e mobiliário urbano, apresentando um olhar crítico sobre a sociedade. Com o intuito de sensibilizar através da arte, aborda vários temas, como a poluição, a exploração da mulher, o sensacionalismo mediático e as diversas formas de opressão.

Durante a visita do Papa Francisco a Lisboa, em agosto deste ano, elaborou um tapete que simulava notas de 500 euros no local onde ficava o altar-palco das Jornadas Mundiais da Juventude, no Parque Tejo – uma forma de criticar os recursos públicos gastos no evento. Mais recentemente, numa escadaria movimentada, pintou a bandeira da Palestina, de modo que, quando as pessoas passassem sobre, espalhassem pelo piso a cor vermelha – como sangue derramado, um lembrete da brutalidade contra os milhares de palestinianos mortos na Faixa de Gaza e em outras regiões.

Estudou pintura na Academia de Belas Artes de Lisboa durante oito anos, onde descobriu a escultura, a cerâmica e experimentou diversos materiais, mas a paixão pela pintura vem desde criança, quando via o seu avô, Artur Real Chaves Bordalo da Silva, a pintar no seu atelier. O nome artístico Bordalo II é também uma forma de homenagear o legado do avô, falecido em 2017.

Acompanhado por dois membros da sua equipa, o artista esteve em Díli entre os dias 7 a 16 deste mês, a convite da União Europeia para pintar um mural no jardim do 5 de Maio, acabando por deixar outras obras espalhadas pelas paredes da capital.

Encontramo-lo e aos outros companheiros a construírem um crocodilo gigante na parede do antigo restaurante Beiro, em Metiaut. Enquanto aparafusavam o lixo à parede, conversavam uns com os outros e decidiam a melhor forma de dar vida ao lafaek, eram abordados por crianças, que curiosas, se aproximavam na tentativa de perceberem o que é que os três artistas estavam ali a fazer. Depois de um mergulho no mar e enquanto bebia uma água de coco, Bordalo II conversou com o Diligente.

Obra de Bordalo II no Jardim 5 de Maio/Foto: Diligente

Quais os motivos para esta visita a Timor-Leste?

Fomos convidados pela União Europeia para fazer um mural no Jardim 5 de Maio. Como é um sítio onde nunca tínhamos estado, é interessante vir, ver e experienciar a realidade. E quando chegamos a um sítio, por muito que já tivéssemos planeado o que ia ser a peça, o que ia ser feito, a experiência no local acaba por tornar o processo muito mais orgânico. Portanto, muitas das coisas que já tinham sido pensadas e planeadas podem ser alteradas, de certa forma. E cá foi o caso. Portanto, há sítios onde chegamos e fazemos exatamente aquilo que estava pensado, mas aqui, por vermos uma realidade que não conhecíamos, acabámos por fazer a peça de outra forma. Portanto, a ideia inicial era fazer uma peça da minha série de trabalhos, Big Trash Animals, em que fazemos retratos e imagens de animais com lixo e desperdício. E a ideia acaba por ser fazer esses mesmos retratos com aquilo que destrói a fauna. O mais interessante que conseguimos fazer com a peça foi envolver um pouco a população local, principalmente as crianças que estavam no jardim, vimos que havia muitas crianças que, em vez de estarem na escola, estavam no jardim o dia todo.

Para mim, embora a peça fosse boa, o mais interessante foi poder fazer alguma coisa com os miúdos. Não é que eles vão tornar a peça mais feia, é um processo diferente, muito mais leve. Por isso, encontrámos uma forma de eles também fazerem parte do nosso processo e de nos ajudarem. E eles estavam a pintar o fundo e a escrever os seus nomes e a escrever outras coisas e a misturar tintas uns com os outros, com o objetivo de lhes dar esta experiência e de lhes dar uma perspetiva de vida um pouco diferente da que têm aqui. Estas experiências podem ser enriquecedoras para eles. Embora seja uma coisa muito pontual e pequena, espero que possa ter um impacto positivo.

O que sabe sobre o país? Será que é um terreno fértil para a sua arte?

Eu ouvi falar de Timor pela primeira vez quando era pequeno, andava na escola, portanto foi numa altura em que havia uma guerra, por acaso o pai de uma amiga nossa esteve cá (em Timor-Leste) e acho que até voltou traumatizado. E nós em Portugal, o que ouvimos falar de Timor-Leste foi na altura da luta pela independência. Depois, acho que não ouvimos falar muito mais. Chegámos aqui e tudo é novo e estamos a aprender. Acho que Timor-Leste é um terreno fértil para a minha arte, é um diamante em bruto e há muitas coisas interessantes que podem ser feitas aqui. Só é preciso vontade de quem manda para que as coisas sejam feitas.

Quando é que decidiu tornar-se artista e por que razões?

Não é propriamente uma decisão, quer dizer, eu lembro-me de fazer coisas desde que me lembro de existir, sempre desenhei, pintei, depois a gente cresce e vê o que é que vai fazer, mas houve uma altura em que eu tinha de arranjar um emprego e alguma coisa para fazer e pintar e desenhar era o que me motivava. Portanto, experimentei e tentei de uma forma muito assertiva, de uma forma teimosa, mas ser artista é uma coisa difícil e muito incerta, portanto, quando tentei, comecei a fazer as primeiras experiências, nada garantia que as coisas corressem bem, mas hoje não me posso queixar.

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Porco-espinho com materiais tirados do lixo em Montreal, Canadá/Foto: Bordalo II

“Tenho outras séries de trabalhos diferentes, uma dos quais é o ‘Provoque’  As peças dessa série, costumamos dizer, não nos dão dinheiro, só nos dão problemas, mas são um veículo de comunicação que eu uso para transmitir as minhas ideias”

Uma das suas criações mais divulgadas nas redes sociais e nos media internacionais foi o tapete feito com notas de 500 euros como forma de crítica ao investimento do dinheiro público português para patrocinar a ida do Papa Francisco ao país neste ano. Como surgiu esta ideia?

Apesar da minha série de trabalhos mais conhecida serem os Big Trash Animals, ou seja, os animais feitos de plástico – provavelmente também as peças que são gráfica e visualmente mais agradáveis à vista, apesar de terem uma crítica, acho que são mais fáceis de gostar –, tenho outras séries de trabalhos diferentes, uma das quais é o “Provoque”. As peças dessa série, costumamos dizer, não nos dão dinheiro, só nos dão problemas, mas são um veículo de comunicação que eu uso para transmitir as minhas ideias. Se eu, como artista, tenho visibilidade e esta hipótese de comunicar coisas, acho que não devo fazer só coisas que funcionem e que as pessoas gostem ou que as pessoas comprem ou que ajudem a construir a minha carreira, acho que também posso fazer outros trabalhos mais críticos que ponham as pessoas a pensar e onde eu possa difundir as minhas outras ideias que não estão só ligadas à preservação ambiental, porque há uma série de outras questões que me interessam: questões sociais, humanistas, e esta é uma delas.

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“Habemus pasta”, peça colocada no altar-palco durante a visita do Papa a Lisboa/Foto: Bordalo II

Esta peça, que faz parte da série de trabalhos “Provoque”, teve muito mais impacto do que muitas outras coisas que fizemos. É muito difícil adivinhar quando é que as coisas vão ter impacto ou não, por isso há peças que para mim são geniais e que ninguém consegue desligar, que são uma crítica coerente do presente e isso é importante e esta foi provavelmente feita na altura certa e tocou na ferida.

Considera que este tipo de arte, que critica e provoca, pode ajudar a chamar a atenção para os problemas sociais e, consequentemente, mudar mentalidades?

Claro. Para mim, se a arte não fizer as pessoas pensar, não for crítica, não desenvolver este tipo de sentimentos nas pessoas, acho que acaba por se tornar muito superficial. Acho que a arte deve ser livre, esse é o primeiro ponto. Como artista, é essencial que tenha uma palavra a dizer e aproveite a minha visibilidade para tentar mudar algumas mentalidades.

Como é que avalia a Igreja Católica hoje em dia?

Acho que não conheço profundamente esta empresa, sei que é uma empresa muito antiga, provavelmente a mais antiga do mundo, é certamente uma máquina de fazer dinheiro. Em muitos casos, pode melhorar a vida das pessoas que precisam de acreditar em algo, porque são inseguras ou por terem passado por muitas dificuldades. Eu entendo que as pessoas (eu não sou religioso) precisem de acreditar em alguma coisa para as ajudar a manter a sua vida, mas a forma como isso é, muitas vezes, aproveitado pela instituição é outra conversa completamente diferente, abusando das pessoas e cometendo mais uma série de crimes que são sempre desviados por razões de interesse, por razões de crença ou seja o que for. Cometem crimes e atrocidades e porque as pessoas acreditam tanto, fingem que não aconteceu ou dizem que a culpa é do ofendido e não do agressor. Isso é nojento, sem dúvida.

“Acho que tudo o que está errado no mundo deve ser abordado, em primeiro lugar, pelo jornalismo, sem dúvida, acho que todos os que têm visibilidade, sejam os meios de comunicação social ou os artistas devem denunciar o que está mal”

Timor-Leste, uma jovem democracia, é um país maioritariamente católico e patriarcal, registando-se ainda uma elevada percentagem de situações de desigualdade de género, de violência doméstica e de abusos por parte de lideranças. O que pensa sobre isto?

Acho que tudo o que está errado no mundo deve ser abordado, em primeiro lugar, pelo jornalismo, sem dúvida, acho que todos os que têm visibilidade, sejam os meios de comunicação social ou os artistas devem denunciar o que está mal, têm de expor o que está certo e o que está errado, seja a guerra ou os abusos. O facto de as pessoas fecharem os olhos a questões graves faz com que sejam parte do problema.

Timor-Leste, sobretudo nas áreas mais urbanas, ainda é muito poluído. Como acha que a consciência e a seleção ambiental podem ser mais bem trabalhadas junto da população?

Penso que para sensibilizar as pessoas, é preciso primeiro prepará-las para compreenderem aquilo de que se está a falar, pelo que a educação é, sem dúvida, a base para resolver todos estes problemas de que me tem falado.

Como é o seu processo criativo? Imagina primeiro o que pretende criar e depois vai atrás da matéria-prima, ou a partir do que tem é que define como fazer a obra?

O processo criativo é livre, pode acontecer de todas as formas, podemos ter uma ideia, podemos ir à procura de material para a fazer. É livre, por isso pode acontecer de muitas maneiras, mas obviamente que temos formas de saber o que pode funcionar melhor. Acho que nenhum criativo se deve prender a uma receita, a uma fórmula de como fazer uma peça.

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Baleia feita de plástico na ilha de Bora Bora, Polinésia Francesa/Foto: Bordalo II

Quais são os projetos para o futuro?

Fazer muitas coisas, fazer mais peças e novas séries de trabalho. Continuar a viajar, a levar as nossas ideias a sítios diferentes e fazer muitas provocações para incomodar e tocar nos pontos que considero relevantes.

Qual é o poder da arte?

A arte tem muito poder, pode funcionar como publicidade de guerrilha e é importante para mudar o mundo. Num mundo sem arte, cultura e educação, não seremos mais nem melhores do que os outros bichos selvagens.

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  1. Os meus mais sinceros parabens so Bordalo II.
    O seu trabalho e excelente!
    Timor Leste possui muita materia prima para a sua arte e, de borla.
    Gostaria que fizesse uma arte a pedido do meu Povo, intitulado: “O lixo nao tem fronteiras” com a cara do Ali Alatas e do Almeida Santos, lado a lado.

  2. Em primeiro plano nesse quadro artistico, a parte de tras das cabecas do Povo de TL a fazerem-lhes um “manguito” bem ao estilo de Rafael Bordalo Pinheiro.

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