Ativistas acusam Xanana Gusmão de “invadir dignidade das mulheres”

Ação de campanha do CNRT/Foto: Xanana ba Ema Hotu

O movimento de defesa de direitos humanos da Fundação Haburas Timor-Leste criticou, em conferência de imprensa, vídeos da campanha legislativa do presidente do Congresso Nacional da Reconstrução Nacional de Timor-Leste (CNRT), que se tornaram virais nas redes sociais. No encontro com os jornalistas, que aconteceu na sexta-feira anterior às eleições legislativas deste domingo, dia 21 de maio, Nelson Roldão, porta-voz da Haburas, comparou os comportamentos de Xanana Gusmão “ao que os colonialistas e invasores fizeram às mulheres timorenses no passado”. Enquanto vozes de outros ativistas como Miguel Monsil, da Aliança Nacional Maubere (ANM), ou do Provedor dos Direitos Humanos e Justiça (PDHJ), Virgílio Guterres, também se juntam às críticas da fundação Haburas, há quem defenda tratar-se de “imagens editadas para denegrir a imagem de Xanana Gusmão”.

No dia 16 de maio, o líder histórico timorense Xanana Gusmão foi filmado a entrar num barco que faz a ligação entre Díli e Ataúro, onde se deslocava em campanha para as eleições legislativas em que o CNRT acabou por se sagrar vencedor. Nas imagens que mostram o presidente do Congresso Nacional para a Reconstrução de Timor-Leste (CNRT) a tocar no peito de uma jovem mulher que estava na entrada do barco foram divulgadas numa página de Facebook não oficial, registada como “Fukun Timor News” e rapidamente se espalharam pelas redes sociais.

Passados dois dias, a 18 de maio, e ainda no âmbito da campanha eleitoral, desta feita no comício do CNRT, em Tasi Tolu, o órgão de comunicação social Smnews, que estava a transmitir a ação de campanha em direto na sua página do Facebook, captou imagens em que se pode ver (entre os minutos 19 e 20), o líder a segurar a cara de uma das jovens no que parece ser uma tentativa de beijá-la, ao mesmo tempo que esta se tenta desviar.

Os dois vídeos, amplamente divulgados nas redes sociais, provocaram reações opostas. Choveram, principalmente no Facebook, comentários, quer a defender quer a criticar o comportamento do líder timorense. Houve quem dissesse que os vídeos “são imagens editadas com o propósito de denegrir a imagem de Gusmão” e quem, por outro lado, o tenha acusado de “assédio” e de “repetir os atos dos invasores, que desrespeitavam as mulheres timorenses e contra elas cometiam todo o tipo de crimes”, como foi o caso da fundação Haburas.

Conferência de imprensa da fundação Haburas Timor-Leste, dia 19 de maio/ Foto: DR

O movimento de defesa de direitos humanos da fundação Haburas convocou uma conferência de imprensa em que criticou publicamente o que considera ser “um mau exemplo para os jovens, que viola e invade a dignidade das mulheres”. O porta-voz realçou ainda que “se ficarmos calados, estamos a ser coniventes e damos oportunidade aos líderes para continuarem a repetir estes comportamentos. Condenamos as atitudes e comparamo-las com o que os colonialistas e invasores fizeram às mulheres timorenses no passado”, concluiu.

Em declarações ao Diligente, Virgílio Guterres, provedor dos Direitos Humanos e Justiça, saudou a “coragem” do Centro Haburas Direitos Humanos por “denunciar atos que envolvem uma figura importante do país”. Guterres corroborou que estes gestos constituem “uma invasão à dignidade das mulheres e demonstram abuso de poder”. Sublinhou ainda que “se Xanana Gusmão é uma pessoa comum e também comete erros, como muitos argumentaram em sua defesa, então a justiça tem de o tratar como tal e julgá-lo pelas suas ações”.

“Se esta situação, que tanto lamento, tivesse acontecido com outro cidadão qualquer, seria considerado crime. Tocar no peito de uma mulher e agarrar e beijar outra mulher, em público, não são comportamentos comuns nem expressões de amor”, disse o provedor.

Os órgãos competentes, nomeadamente o Ministério Público, a polícia, os tribunais e a própria Provedoria dos Direitos Humanos e Justiça estão “perante um dilema”. Por um lado, “temos o dever cívico de denunciar esta situação”, por outro, “não queremos acreditar que a pessoa que tanto admiramos, eu e todos os timorenses, possa ter esta conduta inadmissível”, explica o provedor. Para além disso, “ainda prevalece uma cultura de silenciamento, mas deveria ser unanimemente aceite a necessidade de serem criados mecanismos diligentes que recolham denúncias, avaliem a sua credibilidade, protejam as vítimas e punam os eventuais agressores”, defendeu.

O ex-presidente do Conselho de Imprensa faz o paralelismo com um episódio recente em que também “apontou o dedo a Xanana Gusmão”, quando este “demonstrou apoio público” ao ex-padre norte-americano, Richard Daschbach, condenado a 12 anos de prisão por vários crimes de abuso sexual de menores, cometidos num orfanato em Oecusse. “Também lamentei a visita que Xanana fez ao ex-padre, no estabelecimento prisional de Becora, aquando do aniversário de Daschbach, em janeiro deste ano”, acrescentou.

O provedor considera ainda que os atos dos dias 16 e 18 de maio, em plena campanha eleitoral, bem como uma outra situação também divulgada nas redes sociais, onde se pode ver Xanana a beijar na boca uma freira, se tratam de “assédio sexual e uma vez que envolvem um grande líder, como é o caso, são também abuso de poder”.

“Infelizmente, em Timor, muitas vezes, só procuramos os alvos frágeis. Quando uma pessoa frágil, sem um cargo importante, comete um erro ou uma irregularidade, os padres, os bispos, as madres e todos falam contra ele ou ela, mas quando envolve uma figura importante como o Xanana, ninguém abre a boca para dizer que é um ato ilícito”, lamenta.

Caso seja feita queixa ao Ministério Público, o provedor e a provedoria, como entidade e órgão independente, cujo objetivo é proteger o direito dos cidadãos, vai acompanhar o processo, garante Guterres. “Já orientei os meus assistentes jurídicos no sentido de averiguarem se o provedor tem competência legal para representar o público e levar o processo para a frente. Qualquer pessoa pode fazer queixa. Apenas tem de apresentar a cronologia e evidências”.

Apesar de considerar esta situação “grave”, salienta um aspeto positivo: “As pessoas já não ficam em silêncio. Houve jovens com coragem de condenar publicamente os atos de Xanana, que é uma figura intocável, o que representa um desafio para a provedoria, para o Ministério Público e para os órgãos judiciários”.

Miguel Monsil, ativista da Aliança Maubere Nacional (AMN), também partilhou, no mesmo dia da conferência de imprensa da fundação Haburas, um texto na sua página de Facebook onde considera, à semelhança das declarações de Virgílio Guterres, que a opinião pública está dividida: “Algumas pessoas chamaram malcriado a Xanana Gusmão, avô maulamas (avô que gosta de tocar), outras normalizam as ações, argumentando que, se a vítima não se queixou, se trata de uma atitude normal, aos olhos da lei”. Na mesma publicação, considera estranho que “muitas pessoas normalizem este ato e que Xanana consiga beijar e tocar mulheres e elas fiquem em silêncio e algumas até orgulhosas”. Reações que atribui ao facto de haver uma relação de poder informal entre a população e Xanana, a quem os timorenses chamam “The king of Timor-Leste”. E dá um exemplo: “se Xanana fosse um ancião comum, sem poder, de classe baixa, que de repente decidisse tocar e beijar mulheres sem a sua permissão, já estaria no hospital na sequência de agressões por parte dos familiares das vítimas”.

Para a ativista do Centro Haburas Direitos Humanos, Armandina da Silva, quando “as pessoas são fanáticas por um líder, mesmo que este cometa ilegalidades ou se comporte de forma inapropriada, as pessoas encontram sempre razões para o defender”.

Quanto à reação das mulheres, a ativista explicou, em entrevista ao Diligente, que “muitas se sentem privilegiadas quando são tocadas por uma figura importante, porque não é fácil encontrar este tipo de pessoa. Este sentimento faz com que não tenham consciência de que, na realidade, estão a ser vítimas de assédio sexual”.

Também contactado pelo Diligente, Miguel Monsil reiterou que os atos do presidente do CNRT se “tratam de mau uso do poder. Xanana tem uma grande influência no Estado, por isso muitas pessoas neutralizam esta situação para assegurar as suas posições, como é o caso da Igreja, que é uma instituição que apregoa a moralidade, mas até agora não comentou esta situação”.

Para Monsil, “os atos divulgados nos vídeos constituem um crime, mas as vítimas não apresentam queixa, porque temem o poder de Xanana”. O ativista considera que se trata de uma situação recorrente: “são muitos os atos ilícitos cometidos pelo líder, mas se nem as pessoas poderosas têm coragem de falar, imagine-se estas jovens que aparecem nos vídeos”.

Questionado sobre se iria apresentar queixa, Monsil responde que se trata de “uma perda de tempo, pois os próprios órgãos competentes temem Xanana Gusmão. Prefiro dar a minha opinião nas redes sociais”.

“O assédio sexual é a desigualdade potenciada por relações de autoridade”

Para o psicólogo Ângelo Menezes Aparício, a origem do assédio sexual é a desigualdade potenciada por relações de autoridade. “A pessoa que comete atos de assédio sente que tem mais poder do que a pessoa que se torna vítima. O agressor e a vítima não têm os mesmos níveis de poder nem o mesmo estatuto económico e social”.

Quanto às possíveis consequências psicológicas para as vítimas, o psicólogo destaca “o medo de falar, porque, se o fizerem, as pessoas podem julgá-las, e a insegurança, porque a vítima perde a autoconfiança e culpabiliza-se, pensando que o que aconteceu é da sua responsabilidade”. O silêncio das vítimas pode provocar, a longo prazo, “stresse, perda de motivação e medo de falar em público, porque a sociedade tende a descredibilizar a vítima se esta não reage no momento, mas isto acontece por dois motivos: porque é algo inesperado e a mulher fica em choque e porque está numa situação claramente de desvantagem perante a figura de poder.”

O psicólogo explica ainda que os comportamentos queenquadram assédio sexual podem ser cometidos tanto por homens como por mulheres, mas “na maioria dos casos, o agressor é o homem e a mulher é a vítima, porque a diferença de níveis de poder ainda é uma realidade, principalmente em Timor-Leste”.

Código Penal timorense não prevê crime de assédio sexual

No Código Penal timorense, assim como em outros países, não existe crime específico de assédio sexual. Apesar disso, em Timor-Leste, existe o crime de Coação Sexual que determina no seu artigo 171.º que: “quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, ato sexual de relevo é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.” Trata-se de um crime público e não depende de queixa.

Já o Código Civil, ao estabelecer a “tutela geral da personalidade”, esclarece no seu artigo 67.º que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral” (n. 1). Determina ainda que “a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida (n. 2)”.

Apesar de o assédio sexual não ter moldura penal no país, existem códigos de conduta que procuram alertar e impedir esse tipo de comportamentos, nomeadamente em várias organizações não governamentais, na Lei do Trabalho e também no Governo de Timor-Leste.

No caso do código de conduta para os membros do Governo, considera-se assédio sexual “qualquer conduta indesejada de natureza sexual que: afete a dignidade das mulheres e dos homens; ou b) seja considerada verbalmente, não verbalmente ou fisicamente ofensiva, tal como tocar ou fazer observações sugestivas, comentários de natureza sexual, mostrar pornografia, solicitar favores sexuais; ou c) crie um ambiente de trabalho intimidante, hostil, humilhante e desestabilizador para a vítima”.

Também no nr.2 do artigo 7 da Lei do Trabalho, pode ler-se que “se entende por assédio todo o comportamento indesejado que afeta a dignidade de mulheres e homens ou que seja considerado ofensivo, sob a forma verbal, não verbal ou física, ou que crie um ambiente de trabalho intimidativo, hostil, humilhante e desestabilizador à pessoa assediada”.

Esta terça-feira, à margem da conferência de imprensa do CNRT sobre o resultados das eleições parlamentares, o Diligente questionou Xanana Gusmão sobre o conteúdo dos vídeos divulgados nas redes sociais e solicitou um comentário às acusações de que foi alvo por parte dos ativistas da fundação Haburas. “Não tenho conhecimento sobre esse assunto, porque não tenho Facebook”, respondeu o líder do partido recém-eleito com 41% dos votos.

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  1. Xanana moe la iha. Os timorenses precisam dignidade, não podem aceitar o comportamento do Xanana. Eu não me importa com os partidos timorenses. Não confio em nada deles. Se é um pobre vai para o tribunal. Mas com Xanana todos em silêncio. Respeito o Xanana pelo passado, mas já não vivemos no passado. Quero só um pais com dignidade.

  2. Porque é que esta notícia não saiu na Lusa? Medo? Parabéns, Diligente, pela vossa coragem. Espero que nunca percam essa coragem e continuem a denunciar estas situações, que são vergonhosas para um Estado de direito. Timor merece muito melhor do que os líderes que tem.

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