Associação de Empreendedorismo e Gestão Cultural de Timor-Leste transforma ‘uma manleka’ em casas de hóspedes

Uma manleka em Ataúro, usada inicialmente como abrigo e posteriormente para conservar os alimentos/Foto: Diligente

A iniciativa aposta na força do turismo comunitário para diversificar a economia de Maquili, um dos sucos de Ataúro.

A base da construção assenta em quatro paus de madeira e bambu, presos em forma de quadrado e em outros quatro, do mesmo material, presos por folhas de palmeira enroladas (tali tahan, em tétum) na vertical: dessa forma, quatro ângulos ligam-se de baixo para cima. As paredes estão cobertas de bambu (hadak) e o telhado é feito de folhas secas de palmeira. Esta é a arquitetura das moradias tradicionais do povo de Ataúro, erguidas em cima de árvores.

Segundo um dos lia nain (dono da palavra) de Ataúro, Abílio de Araújo, antigamente, antes da chegada dos portugueses a Timor-Leste, os seus ancestrais inventaram a habitação para se protegerem das ameaças das tribos canibais, atribuindo-lhe o nome uma manleka (em resuk, dialeto do suco de Maquili).

“Havia tribos em Ataúro que comiam pessoas. Então, os nossos antepassados decidiram construir casas em cima de árvores altas para se protegerem. De dia, desciam para procurarem alimentos, à noite, todos os familiares regressavam para o topo da árvore para descansarem em segurança”.

O lia nain conta ainda que os predecessores lutaram contra estas pessoas. “Quando os anciãos mataram todos, a população começou a levar os seus bens para viverem em baixo, mas ainda continuavam a construir casas nas árvores, não tão altas como antes, para conservar os alimentos, como milho e feijão, e protegê-los dos animais. Esta tradição mantém-se até agora, embora a maior parte da população da vila construa casas no solo”.

É esta construção tradicional que a Associação de Empreendedorismo e Gestão Cultural de Timor-Leste (AEGC-TL) começou a transformar numa casa de hóspedes para receber os turistas que chegam a Ataúro. O projeto chama-se “Collective Dream” (“Sonho Coletivo”, em português) e busca diversificar a economia da região através do turismo comunitário. Cada uma das uma manleka pertence a famílias que já possuem uma habitação convencional.

Mirabilia Sarmento, presidente da AEGC-TL, explicou que a ideia surgiu durante uma caminhada desde a vila de Maumeta até Tolan Hatin, na aldeia de Maumeta, no suco de Maquili, que é dividido em quatro aldeias (Fatulela, Marcelino, Mau-Laco e Maumeta) e possui 2695 habitantes. “Quando vimos esta casa, foi uma grande surpresa. Fiquei admirada e comentei com a equipa que algo tão bonito e interessante poderia ser uma atração turística, se  transformássemos as casas em casas de hóspedes. A partir daí, começámos a desenhar o projeto”.

“Sonho Coletivo”

O projeto, de acordo com Mirabilia Sarmento, para além de trazer benefícios económicos para a comunidade, também visa recuperar e conservar a memória histórica e cultural do suco de Maquili de modo a que não se extinga. “As casas vão ser construídas com materiais da natureza, que os ancestrais usavam. Sobre a utilidade das habitações, depende da árvore: se for grande, podemos edificar casas para os turistas pernoitarem, mas, se forem pequenas, será um local apenas para tirar fotos e para apreciar a paisagem”, detalhou.

A ideia é construir ou reabilitar 12 uma manleka’s em Maquili até o ano que vem, se possível, sendo que cada uma delas seria apoiada pelos elementos das casas sagradas (uma lisan) das quais fazem parte.  Estas 12 uma lisan são Lulopun, Tutunopun/Ruma Maru, Mausera, Mau-Tuda, Mau-Le’ek, Nua-Le’en, Nhelak, Tetoha, Tulai, Hatu-Dalas, Hataur e So-Luan.

Para levar o projeto adiante, Mirabilia necessita de doadores. “Este patrocinador não só apoia a nível económico, mas também na formação de hospitalidade, de culinária, da língua, podendo também contribuir com ideias para melhorar a casa manleka. Por exemplo, ajudando a desenhar o sistema de reaproveitamento das águas da chuva, porque se trata de um projeto ecológico”, detalhou.

A presidente da AEGC-TL acrescenta ainda que, neste contexto, os patrocinadores convivem com a população local e há uma partilha mútua de conhecimento. “Os padrinhos apoiam, mas também recebem algo em troca. As comunidades vão contar-lhes a história de cada uma lisan e podem ser guias para os sítios turísticos, como a montanha de Manukoko, a água quente e a cidade antiga”, especificou.

O diretor do Serviço Municipal e Gestão de Mercado, Turismo, Agricultura e Segurança Alimentar de Ataúro, Acácio Castilho de Araújo, considera que a iniciativa vai ao encontro do programa do município e, por isso, vai colaborar com o projeto. “O nosso objetivo é promover o turismo comunitário. Isso quer dizer que a comunidade é que vai ser responsável pelo turismo, através da preservação do ambiente, da cultura e da história”, sublinhou o diretor.

Já para o chefe de suco de Maquili, Júlio Aço Gomes, a ideia da AEGC-TL vai beneficiar muitos grupos, que produzem materiais tradicionais dos antepassados. “Há aqui muitos grupos que produzem objetos culturais como biti (tapete feito com folhas de coqueiro) e  luhu (cesto feito de folhas de palmeira para colocar areca, bétel e cal). Também há outro grupo, chamado rapinhiri, que usa folhas de palmeiras para produzir tais e o grupo de artesãos que produz estátuas. Estes são objetos tradicionais que vão estar na uma manleka”, argumentou.

Sobre os beneficiários do projeto, o coordenador da AEGC-TL em Ataúro, Obet Lopes Nobre Mouzinho, destacou que a ação vai trazer vantagens para toda a comunidade de Maquili, porque, com a chegada dos turistas, os moradores da região vão procurar bens para oferecer. “A iniciativa vai movimentar toda uma cadeia em torno da produção local, desde alimentos ao artesanato”, relatou.

Primeiros padrinhos do projeto

Interessados pelo projeto “Sonho Coletivo”, o espanhol Yago Lopez Mourelle e a chilena Valentina Fiedler Porzio vieram da Suíça para trabalhar na construção das uma manleka’s.

Às 8 horas da manhã, na terça-feira, 12 de setembro, os dois padrinhos, ela professora de esqui e ele marceneiro, saíram do porto de Díli com a equipa da AEGC-TL para Ataúro. Chegaram ao Porto de Ataúro às 12 horas, sendo recebidos pelo coordenador da AEGC-TL em Ataúro e pelo lia nain Abílio de Araújo.

Sentados na barraca, onde se vende peixe, antes de almoçarem peixe fresco e katupa, (arroz embrulhado em folhas de coco), o lia nain ofereceu bétel, areca e cal à equipa, como uma saudação de boas vindas aos visitantes. Também é um hábito e símbolo de bênção e pedido da licença aos espíritos, que, segundo a crença, são donos da terra de Ataúro. Depois do almoço, foram descansar um pouco na casa do coordenador da AEGC-TL, em Ataúro Vila.

Para Yago Mourelle, foi uma honra ser padrinho do projeto. “É um privilégio participar num projeto tão bonito. Tudo o que sei sobre construir casas transmitirei à comunidade para que a iniciativa possa se concretizar”, sublinhou.

Valentina Porzio, por sua vez, atuará na arrecadação de fundos e na mobilização de mais patrocinadores. “Também vendemos, na Suíça e em Espanha, pranchas de equilíbrio e vamos colocar o logo do projeto e 10% do lucro vai para a conta da associação”, afirmou.

A professora acrescentou que vale a pena visitar Ataúro e conviver com os habitantes. “Sentimo-nos úteis e podemos, ao mesmo tempo, conhecer a cultura, a história e as paisagens maravilhosas deste local especial”, frisou.

Os padrinhos, a presidente da AEGC e os donos de casa Manleka, na aldeia de Macelihu, no suco de Maquili/Foto: Diligente
Levantamento de duas casas manleka

No dia 13, depois de ter um encontro com as comunidades de Maquili, a equipa da Associação foi identificar e fazer o levantamento de duas casas manleka, situadas na aldeia de Macelihu, que estão estrategicamente muito bem localizadas. As habitações ficam muito perto da vila e estão à beira da estrada, em cima de uma montanha, de onde podemos ver a paisagem de Maquili. Mirabilia Sarmento disse que é possível interligar as respetivas uma manleka através de uma ponte. O processo, refletiu a presidente, pode ser replicado.

Mirabilia Sarmento e a equipa também fizeram uma visita às moradas das pessoas que são donas das manleka’s. “Vamos melhorar as condições destas casas para que os turistas, além de descansarem, possam descer para comer o que os donos prepararem e conviverem com eles. Quem sabe até podem cozinhar juntos”, observou.

A presidente considera que, se as pessoas da comunidade forem formadas para falar e receber os turistas, poderão ser guias e levar os visitantes à montanha de Manukoko, à praia e, ao mesmo tempo, contar um pouco sobre a cultura de Maquili. “O lia nain pode contar a história da uma lisan aos turistas”, disse Mirabilia Sarmento.

Ao perceberem os objetivos do projeto, as donas das manleka’s ficaram entusiasmadas, porque acreditam que poderão ter uma fonte de renda extra.

Marta Cabeças, 72 anos, mãe de seis filhos, membro de uma lisan Hato-Dalas,  disse ao Diligente que está muito animada com a ideia. “Estamos prontas para colaborar com o projeto, receber formações para que possamos atender os turistas com profissionalismo. Também queremos cultivar vegetais e outros produtos locais para oferecer aos turistas”.

Teresa de Araújo Soares, 70 anos, mãe de quatro filhos, que faz parte da mesma uma-lisan, corroborou o entusiasmo de Marta. “Este projeto cria postos de trabalho para nós. Tenho um filho a aprender inglês em Díli. Quando ele voltar, pode ser guia turístico”, salientou.

Por sua vez, o lia nain da uma lisan Hatauk, Agostinho Gomes, 65 anos, contou que detalharia o plano da AEGC-TL para os membros da casa sagrada a que pertence, pois acredita na iniciativa. “A casa manleka, que nos alimentava e continua a nos alimentar, agora pode também ser um meio para partilharmos a nossa história com pessoas de todo o mundo, e ainda obter um retorno financeiro, o que certamente ajuda”, ressaltou.

Os lia nain e os representantes de doze uma lisan de Maquili comprometeram-se a reunir com os familiares para se organizarem e cooperarem com o projeto da AEGC-TL.

A ida para Ataúro: uma viagem enriquecedora
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Caminho de Ataúro vila para o suco de Maquili/Foto: Diligente

Yago Lopez Mourrele e Valentina Fiedler Porzio contam que começaram a viagem com uma incrível caminhada de Ataúro Vila, ao longo da praia, até Maquili. “Andamos durante duas horas, em cima de pedras com muitas cores. Às vezes escorregava. Passamos pelas pedras grandes como se fosse uma construção antiga que já foi estragada. O caminho, embora assustador, é também  fascinante”, descreveu.

Em Maquili, ficaram em casa de Domingos Gomes, membro da AEGC-TL. “Ele e a sua família receberam-nos muito bem tal como as pessoas da aldeia. Ficámos a conhecer os segredos desta aldeia à beira-mar com águas termais”.

De lá, partiram para Manukoko, a montanha mais alta da ilha com 995 metros. A viagem foi guiada pelo lia nain Abílio de Araújo. “Este senhor mostrou-nos a beleza da paisagem. Depois fomos a Macadade, onde descansámos e recarregámos baterias em casa do lia nai”, afirmou o marceneiro.

No dia seguinte, foram para a cidade velha, onde ouviram histórias incríveis da civilização antiga do povo de Ataúro. “Daí caminhámos até ao porto de Beloi. No dia seguinte, desfrutámos de uma festa da família de Obet (coordenador da AEGC-TL em Ataúro) e ele contou-nos a história de Ataúro e das suas gentes. Se há uma coisa que tenho de realçar é o calor humano, apesar da sua história difícil, enquadrada por paisagens espetaculares”, enfatizou Yago Lopez.

Os padrinhos contam que a ida a Ataúro foi enriquecedora em todos os aspetos, tanto a nível cultural como emocional. “Partilhámos uma semana com pessoas da ilha que nos fizeram sentir em casa, apesar da distância. A única coisa que sabíamos sobre Ataúro é que era um local muito bom para fazer mergulho livre e mergulho, mas não fizemos nenhuma destas duas atividades e voltaríamos cá para as fazer sem hesitar”, contou o marceneiro. O casal ficou no município por uma semana a desenvolver atividades de formação junto da comunidade.

Ataúro, embora seja uma ilha com 10.295 habitantes (censo de 2022) e de grande potencial turístico, ainda não reúne as condições necessárias para albergar turistas. Recentemente, na retificação do Orçamento Geral do Estado deste ano, o Governo diminui de 13 milhões para 3 milhões de dólares o montante alocado para o Fundo do Desenvolvimento de Ataúro (FEDA). Mesmo assim, Mirabilia Sarmento está otimista. “Quando toda a gente trabalha numa mesma direção, acho que é muito mais fácil podermos concretizar o sonho coletivo”.

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  1. Parabens ba ita boot sira nia kreativu hanesan reflesaun kik ida maibé valor boot hodi valoriza nafatin ita nia kultura liu2 ba ita deia Sonho Cletiva sai inspirador ba camada joven sira ne’ebé iha konesimentu fahe no transforma 🙏💪💪

  2. Esperemos que venha mais padrinhos desta forma pra desenvolver este nosso Timor que pertenca tambem aos padrinhos. Oxala que em outros lados dos Municipios tambem se possam ter jovens com as mesmas ideias em desenvolver este projecto que eu acho em todo o territorio Timorense de certeza tem varios sitios turisticos. Bom trabalho e obrigado aos padrinhos deste projecto em ATAURO. Um forte abraço e espero com a colaboracao maxima da comunidade de Atauro.

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