Ana Maria Rosa Martins Gomes é jurista, antiga diplomata e figura incontornável da política portuguesa. Foi chefe da missão diplomática portuguesa na Indonésia durante o processo de independência de Timor-Leste, entre 1999 e 2003.
A 30 de agosto de 2009, Timor-Leste condecorou-a com a Insígnia da Ordem de Timor-Leste.
Em setembro de 2020, anunciou a sua candidatura às eleições presidenciais de 2021. Na primeira volta, alcançou o segundo lugar, com quase 13% dos votos, tornando-se a mulher mais votada de sempre numa eleição presidencial portuguesa.
Ana Gomes esteve em Díli para assistir à estreia mundial do filme “Abandonados”, realizado por Francisco Manso, que conta a história da invasão japonesa de Timor-Leste durante a Segunda Guerra Mundial.
Em entrevista ao Diligente, avalia os progressos do país nos últimos 20 anos, aponta aqueles que considera os principais desafios do país mais jovem do continente asiático e comenta os casos que marcaram a sociedade timorense em 2022.
Na sua perspetiva, o que mudou em Timor-Leste (TL) nos últimos 20 anos?
Timor-Leste mudou muito. Antes, as pessoas viviam com medo. A presença dos policiais e militares era dominante. Não havia perspetiva de futuro.
Depois da independência, os timorenses tiveram grande esperança de construir um país novo. Esta esperança não foi defraudada, porque o país é diferente agora. Sente-se em Díli um grande desenvolvimento e Timor está a evoluir. Há muita reconstrução e construção, boas estradas. A eletrificação mudou completamente a vida das pessoas que trabalham e das crianças que estudam, transformou o país, mas nota-se o desnível deste progresso em Díli e no resto do território.
Apesar de muitos progressos, o problema principal está relacionado com a juventude, que hoje tem mais acesso à educação, aos media e à tecnologia, mas não tem saídas profissionais. Isto é uma bomba-relógio e não é possível pensar, planear e organizar o futuro, sem, desde já, garantir que há emprego para os que saem das universidades timorenses. Essa é uma questão central do desenvolvimento que não pode ser ignorada por muito mais tempo.
Sabendo que em menos de 10 anos vai acabar o petróleo, o que é que os timorenses podem fazer para criar soluções de sustentabilidade económica?
São dez anos cruciais para TL tomar medidas de fundo estruturais e não continuar a desperdiçar os extraordinários recursos de energia renovável que tem, para garantir a autossuficiência energética e até a exportação, porque Timor tem esses recursos e são inesgotáveis. O que ainda for possível ganhar do petróleo e do gás deve ser direcionado para a qualificação dos timorenses, o financiamento de políticas públicas que criem emprego, a construção de habitação social, a melhoria de equipamentos públicos, dos hospitais e a criação de uma rede de turismo ecológico inclusivo. Mas, para isso, é preciso ter infraestruturas.
O nível da execução orçamental do atual Governo é baixíssimo. Como é possível não gastarem dinheiro a criar equipamentos e em projetos económicos que são reprodutíveis e criam emprego?Tenho a sensação de que há um certo marasmo neste momento.
O Orçamento Geral do Estado (OGE) de TL aumenta a cada ano, mas as percentagens alocadas à saúde e à educação são muito reduzidas – este ano a educação contou com menos de 4% e a saúde com 5%. Porque será que isto acontece?
Essas percentagens não são razoáveis num país com tantas necessidades em setores básicos. Trata-se de um défice de investimento público em setores fundamentais para as condições de vida digna e segura dos timorenses e também para a dinamização de redes de emprego e da atividade económica.
A saúde não é só uma necessidade. É também uma área de grande potencial da atividade económica. Portanto, esta visão mais estratégica tem de ser determinante na forma como é alocado o orçamento timorense.
“Ter muitas universidades que dão canudos aos estudantes sem os equipar não interessa a ninguém, muito menos a TL”.
De que forma estas percentagens reduzidas, em setores tão importantes, atrasam o desenvolvimento do país?
A questão não é só quantitativa. É uma questão qualitativa. Por muito ou pouco que seja o investimento nos setores da saúde e da educação, importa que seja bem feito, realmente produtivo e de qualidade.
É mais importante estruturar uma boa universidade pública do que ter uma miríade de universidades privadas. Não estou a dizer que não deve haver universidades privadas, mas essas universidades têm de ter qualidade. É papel do Ministério da Educação exigir níveis de qualidade também aos privados e fazê-los existir com qualidade de concorrer e ajudar a melhorar o nível da administração da universidade pública. Ter muitas universidades que dão canudos aos estudantes sem os equipar não interessa a ninguém, muito menos a TL.
Numa entrevista recente ao Jornal Económico destacou que o melhor recurso de TL é o povo. Como é que se justifica que ao longo dos anos a percentagem do OGE para a saúde e educação seja tão pequena em comparação com a fatia alocada ao fundo dos veteranos?
Eu compreendo a importância, até política, de alocar fundos aos veteranos, mas os fundos públicos têm de ter escrutínio. Devem ser avaliados pela qualidade do investimento feito em benefício da população, que é suposto defender.
É evidente que há uma prioridade que se dá à população, quando se investe na saúde e na educação e num sistema que dá proteção aos mais velhos. Isto tem de ser equitativamente distribuído em termos de solidariedade e interesse nacional. É importante ter um fundo de pensões para os mais velhos, mas não são eles que vão dinamizar a economia. O futuro do país está nos mais novos e é preciso apostar neles ao nível da qualificação.
Quando é que acha que as gerações mais velhas vão aceitar passar o poder às novas gerações e no que é que isso pode contribuir para melhorar o país?
Quando as novas gerações exigirem. Os mais jovens é que têm de assumir a sua própria responsabilidade. Têm de respeitar e honrar o legado da luta da libertação nacional, mas têm de assumir que a responsabilidade de levar o país para frente é dos novos, não dos velhos. Portanto, [os mais jovens] têm de exigir estar à mesa, estar no Governo. Não apenas para servir, mas para determinar as políticas públicas que sirvam a população.
Os mais jovens, que são também os mais qualificados, têm de assumir as suas responsabilidades. Às vezes, os jovens têm de arriscar e exigir transparência no orçamento. É papel dos jovens pedir contas e o Parlamento tem de dar informações para que o povo saiba e ajude a tomar decisões.
De acordo com dados da ONU, atualmente, 42% da população vive com menos de 1,50 dólares por dia. Num país que contemplou este ano mais de três mil milhões de dólares para o OGE, considera estes números aceitáveis?
Os números em si podem ser significativos, mas não dizem tudo. A questão é porque é que não há mais riqueza criada e porque é que essa riqueza não está mais bem distribuída.
Estes números percentuais escondem que há uns muito ricos, porque tiveram privilégios, por exemplo, porque lhes foram dados monopólios de determinados produtos, e outros são muito pobres, abaixo do nível de subsistência mínimo em muitas zonas do país. É esta diferença que não é aceitável e que não é saudável para a democracia. Portanto, um grande desafio que os governantes do país têm é não só garantir uma distribuição adequada dos recursos nacionais de forma reprodutiva e sustentável, mas também de uma forma que contribua para combater as desigualdades e garantir um nível de vida digno aos mais desfavorecidos.
É muito importante que os cidadãos se organizem em grupos de estudantes e cívicos a pedir contas às autoridades, a usar os media como quarto poder, de escrutínio democrático e de responsabilização.
Em 2007, foi chefe da Missão de Observação Eleitoral (MOE) do Parlamento Europeu em TL. Como avalia a participação das mulheres timorenses naquela altura e agora?
O papel das mulheres foi absolutamente central na luta pela independência timorense. Muitas vezes, elas aceitaram ficar para trás depois da libertação, mas felizmente as Nações Unidas impuseram que elas tivessem visibilidade no Parlamento e no Governo e isso é muito importante para Timor. É, sem dúvida, um dos índices de desenvolvimento que mais prestigia Timor na Ásia. Hoje, temos muitas mulheres muito qualificadas. Cada vez mais precisamos de ter um Governo e Parlamento paritários e que as mulheres não sejam só uma questão de número, mas sim que as perspetivas das mulheres façam a diferença na adoção das políticas públicas de que o país precisa.
Tem algum comentário sobre a adesão de TL à Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN)? Quais são as vantagens e desvantagens para TL?
Acho que é positivo TL aderir à ASEAN. É um combate de anos da diplomacia timorense, porque esse reconhecimento de Timor como uma potência asiática é importante. Vai exigir recrutar jovens com talento, homens e mulheres, diplomatas, técnicas, empresárias de Timor, que vão participar nas reuniões da ASEAN. Será um processo que vai ser extremamente positivo para Timor. De afirmação de Timor e também de aprendizagem cosmopolita.
De que forma pode Portugal reforçar o apoio que tem prestado a Timor-Leste?
Portugal pode prestar apoio em muitos campos e em muitas matérias, mas o mais importante e fundamental é a questão da língua. A língua portuguesa é estratégica para Timor. É diferenciadora, é o que dá a identidade ao país e foi fundamental para a luta da resistência nacional, portanto deve ser preservada. Não obsta que os timorenses, que aliás são poliglotas, dominem outras línguas. Apesar de ter feito muito ao longo destes anos, Portugal não fez o suficiente. O suficiente é compreender que, no mundo em que vivemos, de há 20 anos para cá, não basta a rede de professores, por mais extensa e extraordinária que seja. É preciso complementar isto com uma projeção mediática da língua. É necessário que os jovens e os quadros intermédios que estão no Governo reúnam e decidam em português, mas há muita gente sentada à volta da mesa que não fala português. Isto é impossível. É evidente que deve haver um esforço direcionado a quem tem particular responsabilidade na administração pública para que possam rapidamente estar à vontade e confiantes com a língua portuguesa.
O que pensa sobre a recente polémica dos jovens timorenses que foram para Portugal procurar trabalho e estão agora sem casa e sem documentos?
Eles foram manipulados e induzidos a pensar que teriam saídas profissionais em Portugal ou a partir de Portugal para outros países, quando isso não é verdade, porque há uma crise grande na Europa. Pode haver uma rede organizada de gente que está a ganhar dinheiro por um circuito de organização de viagens e os jovens estão a endividar-se. Quando chegam lá, não encontram trabalho e, por isso, ficam numa situação terrível. Timor tem disponibilidade financeira proveniente do petróleo e gás. Devia ser o investimento público a dinamizar a atividade económica e a criação de emprego para os jovens qualificados não precisem de emigrar, pois são a maior garantia de futuro de um país. Timor-Leste não os pode continuar a alienar e a dispersar.
Outro assunto muito polémico foi o caso do ex-bispo de Díli, Dom Ximenes Belo. Pode explicar-nos por que razão disse numa entrevista à SIC que o Bispo foi “ser protegido para Portugal”?
Ele foi uma figura incontornável da resistência timorense. Fiquei muito chocada quando, já em 2019, ouvi rumores de que o afastamento dele de Timor tinha a ver com um comportamento criminoso. Chocou-me também muito saber que ele tinha ido para Portugal viver todos estes anos, protegido pela Igreja Católica portuguesa, que descurou e negou até que houvesse problemas de pedofilia. As notícias sobre Ximenes Belo apareceram no mesmo momento em que, em Portugal, estão acesos o debate e a indignação do povo com aquilo que se sabe sobre os casos de pedofilia na Igreja. As pessoas ligaram o facto de o bispo ter vindo para Portugal em 2002 com a atitude extremamente passiva da Igreja portuguesa relativamente aos seus próprios casos de pedofilia. Não reconheceu que tinha um gravíssimo problema. Portanto, neste contexto, não é só sobre o bispo e a atuação da Igreja e das autoridades em Timor ou no Vaticano. É a atitude da própria Igreja portuguesa que, sabendo, protegeu um pedófilo, que está também, no fundo, sob a proteção do Vaticano, uma vez que foi retirado de Timor para Portugal discretamente, desvalorizando os crimes hediondos que podem estar por trás. Quando falamos destes crimes hediondos, temos de falar nos jovens e crianças que foram vítimas desses abusos. E que, obviamente, se veem a Igreja ou os poderes públicos a desvalorizar o que lhes aconteceu, sentem-se vítimas de mais crimes de silenciamento. Por isso, é necessário falar e nenhuma autoridade democrática pode “pôr isso debaixo do tapete”.
“Se são elementos da própria Igreja, que pervertendo os seus objetivos e missão, se servem de uma posição de poder para abusar dos mais vulneráveis, isto é indesculpável”.
O que pensa sobre o facto de vários líderes timorenses terem defendido Ximenes Belo, dizendo que ele seria bem-vindo em Timor?
Essas declarações são lamentáveis. Não há crime mais hediondo do que um crime contra crianças e jovens indefesos, ainda por cima confiados a uma instituição que é suposto protegê-los. Devemos distinguir, em todas as instituições, incluindo a Igreja, os bons dos maus, mas, em relação à Igreja, as pessoas em princípio confiam, porque é uma instituição que existe para cuidar da humanidade, dos mais vulneráveis. Se são elementos da própria Igreja, que prevertendo os objetivos e a missão da Igreja, se servem de uma posição de poder para abusar dos mais vulneráveis, isto é indesculpável. Quem faz declarações deste tipo não se enxerga e não serve certamente os interesses dos jovens e da população de TL, como não serve, obviamente, em nenhum outro país do mundo. Não se pode continuar a desvalorizar o crime de pedofilia. Eu sei que aqui em Timor há todo um contexto cultural que, muitas vezes, é invocado para tentar justificar que a violação de direitos humanos continue. Não podemos continuar a aceitar este tipo de comportamento. Temos é de combater esta cultura que está errada. Portanto, não aceito que venham com as desculpas dos hábitos culturais para justificar a violação dos direitos humanos ou das mulheres e das crianças.
“Eu sei que aqui em Timor há todo um contexto cultural que, muitas vezes, é invocado para tentar justificar que a violação de direitos humanos continue. Não podemos continuar a aceitar este tipo de comportamento, temos é de combater esta cultura que está errada”.
TL quer seguir o caminho da democracia. No entanto, nenhum órgão de comunicação social timorense abordou a questão do bispo e dos timorenses vítimas de tráfico humano em Portugal. O que pensa em relação a isso?
O assunto do bispo é doloroso, para todos os que acreditaram nele, mas, no caso de crimes tão hediondos como os de abusar de crianças e jovens, custa-me ainda mais que agravemos o sofrimento dessas crianças e desses jovens, enaltecendo o violador e desculpando o crime. Temos de ultrapassar a nossa dor e choque e falar dele. Espero que a imprensa em Timor não se deixe amordaçar. É preciso falar para combater este tipo de crime. Em qualquer país democrático, a imprensa não pode silenciar os problemas da pedofilia, pela sanidade da nossa sociedade. Se vamos tolerar que, em determinados setores, sobretudo naqueles que deveriam ser os mais protetores, haja uma perversão tão sinistra como a pedofilia, estamos a distorcer e a afundar a democracia e o respeito pelo Estado de direito e pela justiça e pelos direitos humanos.
“Espero que a imprensa em Timor não se deixe amordaçar. Em qualquer país democrático, a imprensa não pode silenciar os problemas da pedofilia”.
Como imagina Timor-Leste daqui a vinte anos? Está otimista?
Estou otimista, porque o que vi ao longo destes vinte anos é extraordinário, apesar de todas as limitações, de todos os constrangimentos. O grande desafio é interno, de criar oportunidades para que os jovens não continuem a querer sair do país. É aqui que Timor tem de ser construído. É aqui que os jovens são precisos e que têm de ser equipados para dar um futuro brilhante ao país. A melhor condição que TL tem é a qualidade do seu povo. É um povo admirável, por tudo o que fez durante a resistência, nos tempos mais duros, mais difíceis e também pela organização que se vê hoje. É preciso que haja capacidade de decisão, que é um dos principais problemas. Há quem tenha e há quem não tenha e não queira que outros tenham. O país precisa de decisões de risco e tem de ter ambição estratégica. Espero que rapidamente estes bloqueios sejam ultrapassados. Timor tem recursos que são pouco aproveitados. Alguns estão a ser delapidados por outros. Quem anda aí a pescar na costa não são timorenses. Há muito potencial que ainda está por desenvolver. Timor tem todas as condições para ter um futuro brilhante.
Grande entrevista com perguntas bem pensadas.
Vida longa Dili Gente, que faz!
Toco Lenzi
motociclista brasileiro que ficou 2 anos em Timor
durante a pandemia e que tem um carinho por este país.
Daqui a 20 anos, tudo como dantes, quartel general em Abrantes.
Ha que mudar mentalidades, prioridades, necessidades, a visao do futuro pelos lideres politicia esta atrofiada. Ele tem de uma certa maneira, uma mente atrofiada. O petroleo e o gas em 15-20 anos acaba-se. Ha que criar alternativas, ha que evoluir o turismo, Ha que desampreder, e aprender de novo.
Ha que descentralizar o poder civil, transferir ministerios para o interior para dar ao POVO a oportunidade de se sentir parte do processo. Ha que que divider os males por todas as freguesias, ou sera os bens,
Ha toda uma dinamica que os politicos nao enxergam a nais de 25cm de distancia.
Com isso Dili nao tera que alargar pelas costuras, e sera mais limpa, mais habitavel e mais condigna dos seus habitantes.
O Povo esta farto de “tebedai” de musica para os ouvidos, talvez seja tempo de uma sinfonia de Vivaldi? Mozart, Beethoven?
Os vicious do tempo indonesio, MUST GO!