Ameaças sistémicas contribuem mais para violência do que politização de grupos de artes marciais e rituais

GAM KORKA numa sessão de treino Foto: Ministério da Juventude, Desporto, Arte e Cultura

Em Timor-Leste, episódios de violência, principalmente em períodos eleitorais, são regularmente associados ao aumento de elementos de Grupos de Artes Marciais e Rituais (GAMR) na política. A Organização Não Governamental Fundação Mahein considera “legítimas” as preocupações relativamente às atividades destes grupos, mas realça que na base da violência estão ameaças sistémicas como a “pobreza”, a “corrupção” ou “a insatisfação com os partidos tradicionais” e que a politização é um fenómeno que “permeia toda a sociedade e suas instituições políticas”.

“Os GAMR começaram a ter maior presença na política como consequência da insatisfação dos cidadãos relativamente à governação dos grandes partidos. A população considera que os governantes só trabalham para os seus interesses, em vez de servir o povo. Muitas pessoas, nas áreas rurais, sentem-se excluídas do processo político e queixam-se de não terem oportunidades de trabalho. Estas lacunas criaram oportunidade para os líderes e membros destes grupos formarem partidos ou apoiarem estruturas políticas já existentes”, concluiu a Fundação Mahein (FM) num estudo, apresentado este mês, sobre as implicações para a segurança nacional, da politização de grupos de artes marciais e rituais.

Só nas últimas eleições parlamentares do dia 21 maio, que deram a vitória ao Congresso Nacional para a Reconstrução de Timor-Leste (CNRT), concorreram um total de 17 forças políticas.

Para Duarte da Costa, 59 anos, comerciante, um país tão pequeno como Timor-Leste, com apenas um milhão e trezentos mil habitantes, “não pode ter tantos partidos, porque nenhum consegue ganhar com maioria” o que obriga a “formar coligações onde cada partido defende os seus próprios interesses políticos, travando assim o desenvolvimento do país”.

Apesar de destacar que o recrutamento dos GAMR tem aumentado, a FM considera que “essas atividades apresentam riscos moderados à segurança e à estabilidade em Timor-Leste”, em comparação com “ameaças mais significativas, como a fraca implementação da lei, a corrupção na administração pública, a pobreza e a insegurança, bem como a sustentabilidade financeira do Estado”.

Num país em que mais de 70% da população é jovem, “muitos não conseguem terminar o ensino secundário ou não têm dinheiro para continuar os seus estudos na universidade, então recorrem aos grupos de artes marciais na esperança de encontrar oportunidades de emprego”, realça Rufina da Costa, 23 anos, estudante de Saúde Pública na Universidade da Paz (UNPAZ). Como exemplo, refere o grupo de artes rituais 77 que, na sua opinião, “ajuda os jovens a conseguir oportunidades de trabalho no estrangeiro”.

No mesmo sentido, José Maria Soares, 25 anos, estudante do 4º ano da Faculdade de Direito da UNTL (Universidade Nacional de Timor Lorosa’e) corrobora que “como os partidos grandes só dão empregos às elites e não criam oportunidades para os jovens, estes acabam por se juntar e apoiar os grupos de artes marciais que lhes prometem oportunidades de trabalho”.

Em declarações à Lusa, no final do mês de abril, e a poucas semanas de o país ter ido a votos, no dia 20 de maio, também o Presidente da República, José Ramos-Horta, manifestou estar preocupado relativamente ao tema, ao afirmar que Timor-Leste “está a assistir à partidarização de grupos de artes marciais que, com a capa da democracia, de eleições, se instalam nas instituições do Estado”.

Conflitos gerados por grupos de artes marciais ou violência estrutural?

Relativamente a episódios de violência, desordem e instabilidade, a Fundação Mahein alerta que “não são apenas da responsabilidade de membros dos GAMR”. Muitos destes incidentes associados amiúde aos grupos de artes marciais, “surgem de disputas localizadas entre indivíduos de diferentes comunidades, principalmente nos casos de pessoas que pertencem a grupos étnicos distintos”, que se podem “agravar ou intensificar” quando membros dos GAMR se envolvem em defesa de algum dos lados.

O relatório alerta que a “culpabilização pública” destes grupos pode contribuir para o aumento de “incidências de violência” ao tornar os GAMR mais suscetíveis “à manipulação por elites que desejam provocar tensões sociais com fins políticos”.

Relativamente aos rumores de que os conflitos entre grupos de artes marciais envolvem interesses partidários, o vice-presidente do plano estratégico do Partido Democrático, Cristopher Henri Samsun, defende que “se uma pessoa cometer um crime, é um ato pessoal, que nada tem a ver com a organização. Não podemos generalizar, correndo o risco de causar o pânico na população”.

Também o secretário-geral do Partido Unidade Desenvolvimento Democrático (PUDD), Aleixo Ximenes Monteiro, lamenta que quando há distúrbios, as pessoas apontem o dedo aos GAMR. “Essas pessoas deviam saber que as artes marciais têm regras, quando um dos membros de algum grupo causa conflitos é sancionado.”

Embora não negue “os riscos das atividades do GAMR para a ordem pública e estabilidade”, no relatório da FM, conclui-se que há outros fatores mais determinantes para a instabilidade política em Timor-Leste, nomeadamente “o histórico de conflitos passados, a competição entre elites políticas, instituições frágeis e falhas no processo de construção do Estado”.

Líderes de partidos políticos desmentem partidarização das artes marciais

“Toda a gente sabe que o Klibur Oan Haburas Asuwain (Korka) se transformou no Partido Kmanek Haburas Timor Oan (KHUNTO). E também estamos todos conscientes de que o Presidente do Partido Unidade Desenvolvimento Democrático (PUDD) é, ao mesmo tempo, Presidente do grupo de artes marciais Kera Sakti (originário da Indonésia), realça o presidente da Comissão Reguladora das Artes Marciais (CRAM), Fernando António da Costa, quando questionado sobre a politização crescente dos grupos de artes marciais (GAM).

O presidente da CRAM refere ainda o nome de três membros do Governo recém-eleito, todos membros do grupo de artes marciais e rituais PSHT (Persaudaraan Setia Hati Terate, em indonésio). O vice-primeiro-ministro e ministro coordenador dos Assuntos de Desenvolvimento Rural, Mariano “Assanami” Sabino (presidente do Partido Democrático), o ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, Bendito Freitas, do Congresso Nacional da Reconstrução de Timor (CNRT) e o ministro do Comércio e Indústria, Filipus Nino Pereira. “Mesmo que agora estejam mais afastados das atividades desses grupos por causa dos cargos políticos que ocupam, não deixam de fazer parte dos mesmos.”

Para evitar que os membros e líderes de grupos de artes marciais e rituais “se aproveitem das organizações para formar partidos e exercerem cargos de poder”, o dirigente do CRAM reforça que já enviou ao Parlamento Nacional, em abril deste ano, “um esboço de lei intitulado regime da organização e a prática de desporto das artes marciais com o objetivo de erradicar o conflito de interesses entre as artes marciais e o Estado”, que não chegou a ser aprovado antes do final da anterior legislatura.

Questionado sobre o esboço de lei que proíbe os líderes dos GAMR de exercer cargos no Governo e no Parlamento Nacional, o dirigente do PD, Henri Samsun, é categórico: “o CRAM não pode matar o direito constitucional dos cidadãos participarem em associações ou organizações. Isto é um direito fundamental, político e social. Não deve haver uma lei que venha contrariar o direito constitucional”.

Reforça que “nas eleições parlamentares, não há ninguém que vote nos GAMR, todos os eleitores votam nos partidos que querem. Por isso, não faz sentido dizer que as artes marciais são instrumentalizadas ou partidarizadas para ganhar votos”.

Para o secretário-geral do Partido Unidade Desenvolvimento Democrático (PUDD), Aleixo Ximenes Monteiro, “ultimamente, as pessoas especulam sobre a politização dos GAMR para confundir o público”. “O PUDD “legalizou-se no notariado não como grupo de arte marcial, mas como partido político aceite pelo tribunal e publicado no jornal da República.”

Ximenes Monteiro vê na resolução do CRAM de proibir os líderes das artes marciais de atuarem em cargos políticos, “uma tendência política que contraria a constituição” da República Democrática de Timor-Leste (RDTL). “Esta lei viola o direito dos cidadãos que querem fazer parte de partidos políticos ou de qualquer organização. A pessoa que escolhe apoiar o partido PUDD, fá-lo enquanto cidadão, não como membro de um grupo de artes marciais.”

No artigo 46.º da Constituição, pode ler-se que “todo o cidadão tem o direito de participar, por si ou através de representantes democraticamente eleitos, na vida política e nos assuntos públicos do país” e “o direito de constituir e de participar em partidos políticos”.

O secretário-geral do PUDD lamenta ainda que, na última campanha política, para as eleições legislativas, as pessoas tenham generalizado a ideia de que o partido estaria a utilizar o KERA SAKTI para fins eleitorais. “Se isto acontecesse, o PUDD teria vencido as eleições, porque essa organização de artes marciais tem muitos membros, mas a lei interna dos grupos de artes marciais não permite que haja aproveitamento dos partidos políticos para ganhar votos”.

Ximenes Monteiro reforça que o partido foi fundado “por veteranos, intelectuais e outros cidadãos, não por elementos de grupos de artes marciais”. Embora ateste que “há uma fatia significativa de elementos dos GAMR nos partidos políticos e no Governo”, aponta como uma falácia a ideia de que estes são formados, única e exclusivamente, por membros de grupos de artes marciais.

Também o adjunto secretário-geral do partido Kmanek Haburas Unidade Nasional Timor Oan (KHUNTO), Zeto Patrício, corrobora a opinião do dirigente do PUDD. “Se uma pessoa quer pertencer a um grupo de artes marciais é uma decisão pessoal, mas envolver-se na política é algo profissional que contribui para o bem-comum.” E conclui com um exemplo na primeira pessoa: “as pessoas associam o KHUNTO ao grupo de artes marciais KORKA, mas por exemplo eu sou militante do KHUNTO e faço parte do grupo de artes marciais PSHT. O próprio PSHT tem responsáveis que apoiam o PLP, como por exemplo o Pedro Noronha, enquanto outros elementos do grupo apoiam o CNRT”.

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