A Pontiana vai apanhar-te!

Pontiana, pintura de Gabriela Carrascalão

Numa sociedade onde o mistério e a realidade se entrelaçam, até os mais céticos são invadidos por um medo ou fascínio perante a presença sobrenatural feminina. Em Timor-Leste, são muitos os relatos de quem diz já a ter visto.

Um espírito, um fantasma, uma força ou simplesmente uma presença sobrenatural feminina, que de tempos em tempos se faz notar. Em Timor-Leste, a figura é conhecida como Pontiana, uma espécie de entidade, ou assombração, que, em diferentes contextos, surge diante de homens e mulheres – para o desespero ou fascínio de ambos.

No país, não são poucas as pessoas que juram já terem tido encontros com ela. Como é o caso da universitária Cristalina Boa Vida Ximenses, de 20 anos.

“Vi a Pontiana, pela primeira vez, na casa de uma vizinha, quando voltava da Igreja. Estava uma velha, sentada na varanda, com cabelo comprido a tapar a cara. Olhos totalmente brancos e a cabeça virada para cima. Não consegui ver o corpo todo, só a cabeça. Fiquei paralisada, não me consegui movimentar. Gritei muito, mas ninguém ouviu. Depois desmaiei. Quando acordei, já estava em casa. Alguns amigos encontraram-me”, conta a estudante do Departamento de Ciências da Computação no Díli Institute of Bussiness (DIT).

A jovem partilhou que, em 2021, quando frequentava o terceiro ano do ensino secundário técnico vocacional, em Becora, ela e os colegas ouviram dizer que a escola estava assombrada por espíritos malignos, incluindo a Pontiana.

Depois de uma árvore, considerada a morada de espíritos, ter sido cortada, as pessoas passaram a deixar oferendas (comida e dinheiro) no local. Por curiosidade, Cristalina Ximenes e os colegas de turma tiraram os donativos para testarem a reação dos “fantasmas”. Na altura, também tentavam evocar um espírito feminino na casa de banho. Para tal, deixavam papéis com as palavras sim e não e um lápis no meio. Faziam perguntas e esperavam que o lápis se mexesse, comprovando a presença de seres sobrenaturais.

Porém, nenhum “espírito” apareceu. Não satisfeita, a jovem foi pesquisar na internet sobre como evocar a Pontiana e deparou-se com explicações de que era necessário realizar uma espécie de meditação. Durante o processo, o sinal de que a entidade estava por perto seriam os arrepios pelo corpo. “Então, uma noite, experimentei fazer isto no meu quarto. De repente, arrepiei-me, assustei-me e fugi para o quarto da minha irmã”, disse a universitária.

Desde então, a estudante começou a ver a Pontiana quase todas as noites. “Às 21 horas, ouvia sempre o sino a tocar, mesmo que houvesse muito barulho. Uma vez, vi-a em cima de uma árvore, ao lado da casa de banho, vestida de branco, com cabelos compridos à frente da cara e a abanar os pés”, detalhou. Nos encontros, rápidos, nenhuma palavra era trocada. Assim como aparecia, a Pontiana voltava a desaparecer. A jovem relatou nunca ter sido maltratada pelo “espírito”, mas confidenciou que sente medo e, por isso, não gostaria de continuar a vê-lo.

Para tentar pôr fim à situação, em novembro de 2022, os pais de Cristalina Ximenes realizaram alguns rituais. Um deles consistiu em lavar os olhos da filha com a primeira água da chuva (no início da época das chuvas) e levá-la a uma curandeira, que, com rezas, afastaria o “fantasma”.

Contudo, a magia não funcionou. Sempre que vai aos municípios, Cristalina Ximenses diz ver a Pontiana. Em janeiro deste ano, em Baucau, quando estava à boleia numa motorizada, diz ter sido tocada nas costas pelo “espírito”. “Ao passar nas pontes, também a vi: muito alta, vestida de branco”, partilhou.

“Quando olhei para a parte de baixo do bambu, vi uma mulher vestida de branco, sentada em cima de uma bananeira e com os pés na jaqueira. Estava imobilizada, parecia uma estátua, e era muito bonita, única e inigualável, sem comparação com qualquer outra no mundo”

Outras aparições

A Pontiana surge de maneira diferente para homens e mulheres. Para os primeiros, manifesta-se como uma mulher bonita para os seduzir, antes de revelar a sua verdadeira aparência aterrorizante e os atacar. Já para as grávidas, seria como como um ser medonho que quer matar os fetos.

O jornalista Agapito de Deus, 35 anos, diretor do Lafaek News, contou ao Diligente que viu a Pontiana, em 2021, quando voltava para casa, em Dare, depois do trabalho (na altura era jornalista no Timor Post). Eram quase 22 horas, chovia muito e, no caminho, havia uma planta de bambu.

“Quando passei pelo local, comecei a ouvir o pipilar de um pássaro e senti um cheiro intenso a rosas. O barulho perseguia-me. A estrada era íngreme e estava enlameada. A motorizada avariou, tentei ligá-la, mas não consegui. Empurrei-a, mas senti que algo a puxava para trás”, afirmou.

Em seguida, o jornalista disse ter avistado um pássaro no meio do bambu e sentiu uma brisa estranha. Ficou arrepiado e assustado. De repente, viu uma luz, “como se fosse a luz lunar”. Sentiu que estava em outro lugar, num lugar estranho.

“Quando olhei para a parte de baixo do bambu, vi uma mulher vestida de branco, morena, com cabelo liso e longo, sentada em cima de uma bananeira e com os pés na jaqueira. Estava imobilizada, parecia uma estátua, e era muito bonita, única e inigualável, sem comparação com qualquer outra no mundo”, especificou.

Segundo Agapito de Deus, a Pontiana estava a arranjar o vestido e não o viu. Depois riu-se, “um riso encantador”. Passados poucos minutos, a luz começou a desvanecer e desapareceu. “Liguei a motorizada, que funcionou imediatamente, e fui para casa”, disse. Foi a única vez que o jornalista diz ter encontrado a Pontiana.

No tempo indonésio, em 1990, de acordo com Martinha Soi, 54 anos, agricultora, habitante de Lolotoe, Bobonaro, as pessoas consideravam que encontrar o “fantasma” era normal em algumas áreas de região.

Na altura, não havia eletricidade e poucos veículos. A partir das 19h, o movimento era escasso e para ir de uma aldeia para a outra, era necessário atravessar o mato e a escuridão. “Uma vez, quando estava grávida, eu e o meu marido voltávamos para casa, depois de termos estado numa festa em outra aldeia, e vimos a Pontiana a perseguir-nos”, contou.

Uma das histórias que envolvem a lenda é de que o “espírito” pertence a uma mulher que morreu no momento do parto e, por isso, numa espécie de vingança, ataca as gestantes para matar o feto. “Naquela noite, tenho a certeza que a vimos, mas fingimos não ver, porque queríamos chegar a casa sãos e salvos”, disse a agricultora.

Em 1963, a Pontiana era vista por muitas pessoas, em Díli. De acordo com João Soares, agricultor de 53 anos, morador em Gleno, muita gente viu o espírito atrás da casa de um homem sino-timorense.

“Certa noite, o homem foi à casa de banho e, de repente, viu-a. Voltou para a casa de banho, procurou um prego e espetou-lho no topo da cabeça. Naquela noite, ela voltou a ser uma mulher verdadeira. Casaram-se e tiveram uma filha. A filha cresceu. Uma vez, quando a menina estava a catar piolhos na cabeça da mãe, encontrou o prego e disse-lhe. A mãe pediu que o tirasse. A menina assim o fez e a mãe voltou a ser a Pontiana e fugiu, levando a criança”, narrou João Soares. Já o sino-timorense, morreu pouco tempo depois, informou o agricultor.

“Em Timor-Leste, a Pontiana também é usada para justificar as traições. Em 2006, fui assistir ao julgamento do divórcio de uma colega minha de trabalho. O marido é uma pessoa muito conhecida. Quando o juiz perguntou: ´então porque é que enganou a sua mulher? Sabe que cometeu adultério?’ Ele respondeu: ‘Senhor juiz, a culpa foi da Pontiana’”

Já conforme uma fonte que não quer ser identificada, a Pontiana timorense terá nascido no Matebian, em Baucau, e é uma bruxa que, de dia, assume a forma de ave e, à noite, volta a ser mulher – que procura tirar os bebés das mães. A fonte acrescentou ainda que há histórias que envolvem a Pontiana para justificar o adultério.

“Em Timor-Leste, a Pontiana também é usada para justificar as traições. Em 2006, fui assistir ao julgamento do divórcio de uma colega minha de trabalho. O marido é uma pessoa muito conhecida. Quando o juiz perguntou: ´então porque é que enganou a sua mulher? Sabe que cometeu adultério?’ Ele respondeu: ‘Senhor juiz, a culpa foi da Pontiana”, partilhou, entre risos, acrescentando que, muitas vezes, quando um homem timorense trai a mulher, as pessoas comentam que terá sido seduzido pela Pontiana.

De tanto habitar o imaginário coletivo, a entidade também inspira manifestações no mundo da arte, expressas em pinturas (como as obras que ilustram este artigo), canções, poesias e filmes.

As ninfas da Pontiana, pintura de Gabriela Carrascalão

“Como o vento sopra!

Quão escura é a noite!

O gondoeiro acena!

Suas folhas onduladas

cantam!

A canção do vento

Quão escura é a noite!

Lá, longe, muito longe !

No céu negro!

como uma névoa densa

Ouvimos o vento soprar…

desafia   loucamente

o canto da Pontiana !

Como o vento sopra!

A mãe acorda !

Na sua cama de bambu

Abraça o seu filho …

A bruxa não pode! Não

Bruxa não,

não deve roubá-lo.

Alfinete no peito

Mantém-se firme.

A mãe grita…

Vá embora! Vá embora!

Vá embora!

Pontiana, bruxa,

Mulher diabólica!

Ladra de crianças

Vai embora!

Vá embora, Pontiana!

Como o vento sopra!

A canção do vento

Ainda canta …

Ali,

longe, bem longe.

A Pontiana foge.

A mãe canta

A canção do vento

Suavemente… liberto da luta…

a Pontiana fugiu …”

(A canção da Pontiana, poema de Gabriela Carrascalão)

Origem da lenda da Pontiana

A história da Pontiana, de acordo com o antropólogo Alessandro Boarccaech, está difundida na sociedade timorense e adotou alguns elementos do cristianismo. Por isso, não é simples garantir com exatidão a sua origem.

“Em Timor-Leste, algumas comunidades têm as suas próprias histórias de entidades femininas que assombram as pessoas. Assim como na Indonésia temos a Pontianak; no Brasil, há a Mulher de Branco; no México, a La Llorona; no Japão, a Yuki-Onna; a Melusina em alguns países europeus; e a Mulher com a fita vermelha no Mianmar. Cada uma delas é independente das outras e apresenta contextos específicos ao conjunto de valores e visões de mundo das comunidades às quais pertencem”, explicou.

O antropólogo informou que há indícios de que a Pontiana timorense seja uma adaptação da versão indonésia, como, por exemplo, a história ser mais falada em áreas urbanizadas, não estar diretamente associada às Uma Lisan, as semelhanças na estrutura da narrativa e nas características físicas e psicológicas da “entidade”.

Segundo a pesquisadora e escritora holandesa Augusta de Wit, a Pontiana é uma lenda vinda da Indonésia, influenciada pela cultura da Malásia. É uma criatura semelhante ao espírito maligno Banshee (considerada mensageira da morte). Tendo morrido virgem, voava à noite em forma de pássaro e podia ser ouvida a lamentar-se na brisa noturna e a pousar nas árvores da floresta.

Já o pesquisador norte-americano Raymond Kennedy informa que encontrou histórias indonésias relacionadas com a Pontiana ser uma mulher que faleceu durante o parto. Ambos os registos, contudo, dão conta de que o espírito feminino é de uma beleza singular, que ataca homens e bebés.

A Pontiana existe mesmo?

O facto é que as histórias da Pontiana fazem parte de um conjunto de valores e símbolos que estão presentes na dinâmica social timorense. “Há uma forte componente sobrenatural, moralista, de estar a ser vigiado e de punição, tal como as outras histórias locais”, observou o antropólogo.

Alessandro Boarccaech exemplificou: “se fizermos algo de errado, o crocodilo pode comer-nos; podemos morrer afogados no mar; os espíritos dos antepassados podem castigar-nos; andar em lugares sagrados sem autorização pode causar doenças e até mesmo a morte; as doenças físicas e mentais são maldições ou feitiços; quando algum espírito da natureza não gosta de nós, pode fazer-nos mal”. Essas punições não dependem apenas do comportamento individual, mas também dos erros cometidos pelos nossos pais ou antepassados.

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A Pontiana assustadora, pintura de Gabriela Carrascalão

Como estas crenças estão muito enraizadas na cultura de Timor-Leste, não são poucos os cidadãos que acabam por atribuir sentido aos factos da vida com base em questões que extrapolam o campo da razão.

“As pessoas, em termos psicológicos, culturais, sociais, estéticos, hierárquicos e religiosos, estão imersas neste tipo de narrativa, o que as deixa propensas a interpretar o mundo à sua volta através de valores e símbolos associados ao mundo espiritual. Este processo semiótico condiciona a nossa forma de estar no mundo e cria um ciclo em que a expectativa de adoecer se manifesta concretamente em doenças físicas e psicológicas e, uma vez doentes, confirmamos a crença de que foram os espíritos”, esclareceu o antropólogo.

Neste contexto, Alessandro Boarccaech argumentou que aquilo que as pessoas entendem como realidade, na verdade é uma construção mental.

“Este processo cognitivo e afetivo possibilita que as nossas crenças e expectativas influenciem a perceção e a interpretação dos factos. Desta forma, a crença em espíritos que causam o mal – associada a uma dinâmica social punitiva – pode favorecer o stress emocional, ansiedade, pânico, depressão e afetar o sistema imunológico, provocando sintomas físicos. Podemos adoecer se acreditarmos que algo nos fará mal, mesmo quando não há nenhuma evidência física para tal”, observou o antropólogo.

A maneira como as pessoas percebem e reagem a estas histórias depende de muitos fatores. A faixa etária e o género são alguns deles, mas, segundo Alessandro Boarccaech, também depende do nível de maturidade cognitiva e emocional, dos aspetos culturais e religiosos, do contexto em que a história é utilizada, dos objetivos da mensagem, das características de quem a narra e, até mesmo, das dinâmicas de poder que regulam a sociedade. “As crianças são as mais vulneráveis e impressionáveis por ainda serem imaturas e não distinguirem claramente a fantasia da realidade”, enfatizou.

O antropólogo acrescentou ainda que a maneira como as pessoas se relacionam e os impactos destas histórias têm relação direta com o contexto social e histórico da sociedade. Para lhes atribuir um novo significado, seria necessário um esforço para reorganizar lógicas, sensibilidades e subjetividades locais.

Neste sentido, Alessandro Boarccaech considera, por exemplo, que a educação precisa de intervenções para mitigar um sistema marcado pela punição e pelo pouco estímulo ao pensamento crítico e analítico.

“A dinâmica nas escolas (e nas universidades) contribui para o pensamento supersticioso, para o medo da diferença, para a submissão hierárquica, para uma pedagogia repressora e punitiva, onde os educadores são doutrinadores e os alunos que se destacam são aqueles que repetem os conteúdos de maneira acrítica”, refletiu.

No entanto, até mesmo os mais esclarecidos e críticos confessam que, embora racionalmente não acreditem na Pontiana, temem a possibilidade de, a qualquer momento, serem surpreendidos pela sua presença.

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