Em diferentes épocas e sociedades, a perceção sobre saúde mental esteve associada tanto à ausência de doenças mentais quanto a comportamentos que não desafiavam as normas e padrões socioculturais vigentes. Atualmente, especialistas e profissionais de saúde concordam que a saúde mental é um conceito amplo que envolve um conjunto de fatores que influenciam o equilíbrio emocional, psicológico e social de uma pessoa.
Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), a saúde mental não se restringe a uma mera ausência de problemas, mas sim a “um estado de bem-estar em que o indivíduo realiza suas capacidades, supera o stress normal da vida, trabalha de forma produtiva e frutífera e contribui de alguma forma para a sua comunidade.”
A saúde mental está relacionada com a forma como lidamos com situações de stress, vivenciamos as emoções, estabelecemos relações interpessoais, enfrentamos desafios no trabalho, fazemos escolhas e as demais situações do quotidiano. Dificuldades, ansiedades, preocupações, tristezas e outras emoções fazem parte da vida. A saúde mental reflete as nossas habilidades para enfrentar esses desafios de maneira construtiva e adaptada, e não na ausência deles.
Mas o que significa doença mental?
O significado de doença mental também muda conforme o contexto histórico e sociocultural. Alguns transtornos mentais como a depressão e a ansiedade, já foram (e ainda são) confundidos com fraqueza moral ou falta de autocontrolo. Há sociedades que valorizam as pessoas que apresentam determinados sintomas psicóticos por entenderem que elas são representantes do mundo sobrenatural. Esta mesma pessoa em outra sociedade poderá ser considerada “louca”, sofrer discriminação e ser marginalizada. A homossexualidade pode ser vista como um crime ou doença; para outras sociedades, é percebida como uma entre as diversas formas de manifestação da sexualidade humana. Para um determinado grupo social, os transtornos mentais podem ser entendidos como um castigo dos deuses e dos espíritos, levando as pessoas a sentirem vergonha e não procuraram tratamento; em outras sociedades esses mesmos transtornos são tratados e estudados abertamente.
Como perceberam, no parágrafo anterior, substituí a expressão “doença” por “transtorno mental”. Isto se deve a uma diferença no que essas duas palavras expressam, e ajustar o léxico pode ajudar-nos a evitar preconceitos e mal-entendidos. Aqui vamos divagar um pouco. Caso o texto fique cansativo, sugiro saltar estes parágrafos e ir direto para a próxima secção. De maneira resumida, a doença é um prejuízo no estado de equilíbrio do organismo associado a condições que possuem causa e sintomas definidos e que podem ser identificadas por meio de exames clínicos. Por exemplo, a dengue é causada por um vírus, transmitido por um mosquito, tem sintomas específicos e pode ser detetada e tratada. A Doença de Alzheimer é outro exemplo, consequência de uma degeneração progressiva do tecido cerebral, pode causar depressão, ansiedade, perda de memória, problemas de comunicação, dores físicas, entre outros sintomas.
As síndromes são um conjunto de sintomas e sinais que caracterizam um estado mental específico, com múltiplas causas e consequências que podem estar interligadas, não sendo possível identificar a origem exata. Um exemplo é a Síndrome de Down: embora saibamos que essa condição está associada à alteração do cromossomo 21, que possui três cópias ao invés de duas em todas as células do corpo, ainda não conhecemos as causas dessa alteração genética. A Síndrome de Down não tem cura, pois não é uma doença, mas uma maneira diferente dos cromossomos se agruparem.
O transtorno mental, por sua vez, é o termo utilizado pelos profissionais da saúde para aquilo que comummente chamamos de doença mental. Conforme o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5-TR) e a Classificação Internacional de Doenças (CID-11), um transtorno mental “é uma síndrome caracterizada por uma perturbação clinicamente significativa na cognição, regulação da emoção ou comportamento de um indivíduo, refletindo uma disfunção nos processos psicológicos, biológicos ou de desenvolvimento subjacentes ao funcionamento mental.”
Os transtornos mentais são causados por inúmeros fatores como predisposição genética, stress, privação do sono, baixa qualidade de saúde mental, traumas, uso de substâncias psicoativas, insegurança social, discriminações e agressões, problemas familiares, dificuldades emocionais, entre outros. Entre os transtornos mentais, temos o transtorno afetivo bipolar, o transtorno obsessivo-compulsivo, o transtorno alimentar e a lista segue. A partir de uma compreensão “dimensional” dos problemas mentais, um transtorno pode fazer parte de um espectro mais amplo. Isso significa que vários transtornos mentais podem apresentar características sintomáticas semelhantes, mas com manifestações e níveis de severidade diferentes de uma pessoa para outra. Por exemplo, os transtornos do espectro de ansiedade (ansiedade generalizada, social, de separação, fobias e etc.), transtornos do espectro da esquizofrenia (paranoide, catatónica, residual, entre outras), e o transtorno do espectro autista que pela intensidade, impacto e o tipo de suporte necessário pode ser de nível 1 (leve), nível 2 (moderado) ou nível 3 (severo).
Se esse assunto pareceu complexo, não foi apenas uma impressão sua, ele é realmente complexo. Apenas para ilustrar, o DSM foi publicado pela primeira vez em 1953 e já está na sua 5ª edição revista com descrições de mais de 300 transtornos mentais. Apesar disso, os profissionais da saúde continuam a estudar, a questionar e a desenvolver métodos para compreender melhor os problemas mentais.
O que a cultura tem a ver com isto?
Após este pequeno, mas necessário desvio, podemos voltar ao assunto deste texto e perguntar-nos sobre o que a cultura tem a ver com a saúde mental. As diferentes maneiras de entender a saúde e os transtornos mentais estão diretamente relacionadas com ideologias, disputas de poder, crenças e aos sistemas político, económico, moral, semiótico e religioso, ou seja, com todo o contexto social e cultural de uma sociedade.
A complexa rede de práticas, valores, normas, semioses, estéticas e visões do mundo, frequentemente chamada de cultura, influencia a maneira como pensamos, sentimos e agimos, inclusive, em como percebemos o corpo, a doença, a saúde e a cura.
Por vezes, a cultura pode ser entendida como algo ancestral, infalível e imutável. No entanto, todo sistema cultural é resultado de uma convenção que envolve disputas de narrativas e dinâmicas de poder historicamente contextualizadas. A cultura transforma-se com o tempo, e práticas culturais do passado podem deixar de existir, assim como novas práticas e valores podem ser assimilados como se sempre existissem.
Podemos observar isso na própria história timorense. No passado, era comum as mulheres não usarem a parte de cima da vestimenta, deixando os seios à mostra; hoje em dia, essa prática cultural deixou de ser adequada. Há algumas décadas, o barlaque era a oficialização do casamento e utilizava-se apenas objetos, animais e alimentos nas trocas de bens entre as famílias. Nos dias atuais, o barlaque pode envolver alguns milhares de dólares americanos, e os casamentos também são realizados nas igrejas cristãs, onde os noivos vestem véu, grinalda, fato escuro e luvas. Nicolau Lobato, aos 29 anos, foi primeiro-ministro e líder da resistência contra a invasão indonésia. Atualmente, as pessoas até aos 35 anos são consideradas jovens, sem experiência e encontram poucas oportunidades de protagonismo na sociedade.
Diante dessa plasticidade e diversidade dos sistemas culturais, como podemos determinar se uma prática é apropriada ou inadequada? Para responder a essa pergunta, não precisamos necessariamente comparar culturas e sociedades diferentes. Podemos começar a observar se esses códigos são inclusivos e respeitam a diversidade. Além disso, podemos cultivar uma visão histórica da construção dos nossos padrões culturais, questionar as suas origens e significados, perceber as contradições entre o discurso e a prática e as suas consequências nas nossas vidas e nas dinâmicas sociais.
Saúde mental é uma questão de saúde pública
Conforme o Relatório do Desenvolvimento Humano 2021/2022, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), os níveis de incertezas e angústias têm crescido na população em geral, o que pode causar impactos económicos e sociais, afetando a qualidade de vida e favorecer o surgimento de transtornos mentais. A falta de cuidados com o bem-estar mental, segundo o relatório do PNUD, é a principal causa de incapacidade, sendo que os países, em média, destinam apenas 2% do orçamento da saúde para os cuidados específicos com a saúde mental.
Para termos uma ideia do impacto económico da baixa qualidade de bem-estar mental, uma pesquisa realizada pela London School of Economics and Political Science em 2019, estimou que o Reino Unido gastou 117.9 mil milhões de libras (aproximadamente 5% do PIB naquele ano), sendo a maioria dos custos com problemas de perda de emprego e cuidados informais relacionados com a saúde mental. Os autores desse estudo ressaltaram que os números são conservadores e não incluem os custos associados à demência, dificuldades intelectuais, faltas, pouca concentração ou baixo rendimento no trabalho, uso indevido de álcool ou outras substâncias, automutilação deliberada ou suicídio.
Medidas de assistência e tratamento dos problemas mentais são fundamentais. Contudo, a promoção da saúde mental é um desafio mais abrangente e coletivo. Por isso, torna-se importante encararmos a saúde mental como uma questão de saúde pública, que envolve mudanças ideológicas, culturais, ambientais e materiais que melhorem a qualidade de vida global das pessoas.
Grupos sociais com altos índices de pobreza, sistema de educação frágil, poucas oportunidades de mobilidade social, habitação precária, desemprego, falta de saneamento básico, nutrição inadequada, atendimento médico insuficiente, medo constante de agressões e opções limitadas de lazer e de acesso à arte (entre outros fatores) apresentam maiores riscos para a qualidade da saúde mental das pessoas.
Da mesma forma, sistemas culturais que abrem espaço para o preconceito de género, xenofobia, dificuldade em lidar com as diferenças, individualismo e competitividade, autoritarismo e um sistema hierárquico rígido, que confundem punição com educação, limitam a manifestação criativa e inventiva, ou que recorrem à agressividade para resolver conflitos, por exemplo, também contribuem para a redução do bem-estar mental individual e coletivo.
Falar de saúde mental e cultura é falar de cidadania
A cidadania procura garantir os direitos fundamentais, a liberdade de expressão, a isonomia diante das leis, a participação ativa nas decisões da sociedade, o respeito pela diversidade, a melhoria do bem-estar social e a promoção dos direitos humanos. Os fatores culturais podem limitar ou estimular a nossa atividade cívica, uma vez que, exercem grande influência na maneira como percebemos os nossos direitos e deveres, no nosso comportamento social e em como entendemos a cidadania.
Práticas culturais inclusivas e sociedades que investem no bem-estar mental contribuem para o exercício da cidadania ao permitir que os indivíduos tenham maior autonomia, sintam-se respeitados nas suas idiossincrasias, integrados socialmente, possam desenvolver as suas habilidades e participar ativamente na comunidade.
Por outro lado, sistemas culturais com práticas que oprimem as pessoas e sociedades que não priorizam a saúde mental como uma política pública de Estado, podem dificultar o exercício pleno da cidadania e contribuir para a manutenção das dinâmicas de exclusão, alienação e violações de direitos básicos.
Se não considerarmos esses múltiplos fatores que influenciam o nosso bem-estar mental, corremos o risco de negligenciar a possibilidade de que a nossa saúde mental (tanto individual quanto coletiva) possa estar em um estado de baixa qualidade, mesmo sem sinais evidentes de transtornos mentais.
Essa falta de consciência pode conduzir-nos a uma dissonância cognitiva coletiva, na qual o discurso sobre a importância da saúde mental pode chocar drasticamente com as práticas diárias e as condições reais de acesso aos direitos básicos, comprometendo o nosso bem-estar psicológico. Assim, podemos estar a viver em uma sociedade onde o sofrimento psíquico passa a ser o “normal”.
Portanto, é importante percebermos que a qualidade da saúde mental não se resume à ausência de problemas mentais e deve ser encarada como uma política pública multidimensional e interministerial (que envolve mudanças culturais, materiais, semânticas, ideológicas, nas relações de poder, na infraestrutura e etc.) que prioriza o bem-estar geral e o acesso aos direitos básicos para todas as pessoas.
Alessandro Boarccaech, psicólogo com especialização em psicologia clínica e da saúde, psicoterapeuta e PhD em antropologia. Professor universitário, coordenador do Centro de Pesquisa em Cultura e Sociedade e editor da revista académica Diálogos da Untl. Autor de diversos livros e artigos científicos entre os quais Os eleitos do cárcere; A diferença entre os iguais; Dicionário Hresuk-Português; Conhecimento local, curandeiros e Psicologia: causas, sintomas e tratamentos dos transtornos mentais em Timor-Leste.