O amarelo luminoso da manga espalhada no asfalto contrasta com o olhar sombrio de Sónia, menina de 12 anos, vendedora de manga e sobrevivente do acidente que, em outubro do ano passado, tirou a vida a Frenki, o irmão de 8 anos, cujo único sonho era ter umas chuteiras para jogar futebol.
Meses depois do acidente que roubou a ainda curta existência do irmão mais novo, Sónia carrega no coração as marcas da tragédia daquele dia. Não se esquece do sangue que viu a sair da cabeça e nariz do irmão, uma imagem traumatizante que a impede de conseguir voltar a vender nas ruas.
Uma história trágica que poderia ter acontecido e poderá voltar a acontecer a qualquer uma das inúmeras crianças que trabalham diariamente nas ruas da capital do país.
Mais de 52 mil crianças timorenses, entre os cinco e 17 anos, são sujeitas diariamente a algum tipo de trabalho infantil. São dados do estudo da Comissão Nacional contra o Trabalho Infantil (CNTI), que fez o levantamento do número de crianças trabalhadoras em Timor-Leste, de 2016 a 2022.
Carregam “pentolan” (almôndegas para venda ambulante), ovos cozidos, fruta e bandeiras de Timor-Leste. São pequenas, maltrapilhas, magras e frágeis. Sob o ardente sol timorense, percorrem sozinhas, todos os dias, longas distâncias a pé, na ânsia de vender os produtos que levam consigo. Exibem nos seus rostos uma expressão de desânimo. Porém, o sorriso que, de quando em vez, esboçam demonstra que ainda preservam alguma da inocência própria das crianças e que é delas por direito.
O trabalho infantil é reflexo de um país onde quase metade da população ainda vive na pobreza
Nas zonas centrais, nas portas das casas, nas praias, nas escadarias do Cristo Rei, no topo do Cristo Rei. As crianças trabalhadoras de Timor-Leste estão por todos os lados das ruas de Díli.
A presença explícita dos menores pelas ruas da capital timorense e em diversos municípios é um fenómeno que vem já de há muito tempo. Revela-se como um reflexo cruel da crítica condição socioeconómica do país, onde quase metade da população ainda vive na pobreza.
Crianças que carregam a responsabilidade de sustentar as famílias
Leonardo Eco tem 12 anos e Anno tem 11. Duas crianças timorenses que de criança não têm muito mais do que a idade registada nos documentos de identificação. A infância é-lhes roubada, dia após dia, pela dura realidade dos seus contextos familiares.
Naturais de Oecusse-Ambeno, estudaram apenas até ao 5.º ano. No ano passado, os livros da escola deram lugar à venda ambulante para ajudar a família. Tiveram de vir para Díli, onde, quando não estão nas ruas a trabalhar, tentam encontrar um pouco de paz nos momentos de sono em qualquer berma de estrada, muro ou banco de mota.
Leonardo é o terceiro de seis irmãos. Mora com o pai, trabalhador na construção civil, e o irmão mais velho, que faz almôndegas para vender, numa casa alugada por 50 dólares americanos por mês em Kampung Alor, Díli. A mãe, dona de casa, ficou em Oecusse.
Com uma expressão tímida e um chapéu preto na cabeça que o protege do sol, o menino, que sonha ser professor, conta-nos que sai de casa todos os dias às 10h da manhã para regressar apenas depois de anoitecer, já perto ou depois das 20h. Para 10 horas de trabalho, leva consigo “20 dólares americanos de ‘pentolan’ para vender. Se eu tiver sorte, vendo 15, mas, muitas vezes, volto para casa só com 8 dólares no bolso”.
“Queria parar (de vender). Mas depois penso que a minha família precisa de dinheiro. Tento mandar, todos os meses, 200 ou 250 dólares para a minha mãe”
Durante as longas horas de trabalho, é muitas vezes obrigado a enfrentar o bullying de outras crianças que o rebaixam pelo facto de ter 12 anos e já estar a vender na rua. “Queria parar (de vender), mas depois penso que a minha família precisa de dinheiro. Tento mandar, todos os meses, 200 ou 250 dólares para a minha mãe”.
Anno é o filho mais novo. Com quatro irmãs, tornou-se muito cedo o “homem da família” quando o pai faleceu em 2021. Tal como Leonardo, também a mãe de Anno continua a morar em Oecusse-Ambeno, onde é professora primária. Anno vive com o tio em Aitarak-laran, perto do Palácio Presidencial.
Começa a jornada de trabalho às 7h, todos os dias, e só volta para casa geralmente às 21h. Percorre quilómetros na companhia dos chinelos velhos que traz nos pés para vender ovos cozidos e, em média, não consegue muito mais do que 3 dólares americanos de “rendimento” diário. Muitas das crianças com o mesmo trabalho de Anno nem chinelos têm para os “proteger” do asfalto a ferver.
Tal como Eco, Anno também sofre bullying de outras crianças por ser tão novo e estar a trabalhar nas ruas. Mas mais difícil de compreender do que a crueldade inocente dos mais novos são as ameaças de roubo que conta sofrer, muitas vezes, por parte dos adultos.
Com as vendas, tenta enviar, pelo menos, 50 dólares todos os meses à mãe e às irmãs, que continuam em Oecusse. Mesmo assim, não perde o sonho de conseguir dinheiro para poder comprar um uniforme, sapatos, cadernos e lápis e continuar a estudar no próximo ano. Estudar para ser polícia e, quem sabe, um dia ter nas suas mãos o “poder” de proibir uma ilegalidade, aos dias de hoje, ainda ignorada pelas forças policiais que a deviam impedir.
O desrespeito à Constituição
Segundo as alíneas a e b do artigo 18.º, da Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL), as crianças “têm direito à proteção especial por parte da família, da comunidade e do Estado, particularmente contra todas as formas de abandono, discriminação, violência, opressão, abuso sexual e exploração”.
Já a Declaração sobre Princípios e Direitos Fundamentais ressalta que todos os países membros da Organização Internacional de Trabalho (OIT) – em que Timor-Leste está incluído – devem respeitar e promover os quatro princípios e direitos fundamentais no trabalho, entre eles, a “abolição efetiva do trabalho infantil”.
A OIT considera a desigualdade social, a ausência de uma educação pública de qualidade e a falta de políticas públicas que promovam o planeamento familiar como alguns dos fatores que mais contribuem para a existência de crianças a trabalhar.
De acordo com a mesma organização, o trabalho infantil intensifica problemas psicológicos contribui para um baixo rendimento escolar prejudica a socialização, a preparação para o mercado de trabalho e o desenvolvimento intelectual da criança e futuro adulto.
O trabalho infantil constitui, portanto, uma violação dos direitos humanos fundamentais por impedir que a criança se desenvolva de forma plena e viva adequadamente a sua infância.
Como atuam as autoridades
A CNTI apresentou, já este ano, seis recomendações para a erradicação do trabalho infantil em Timor-Leste numa reunião com o Ministro Coordenador dos Assuntos Económicos, Joaquim Amaral.
A criação de um sistema de assistência social para famílias carenciadas e de um plano de ação nacional contra o trabalho infantil, com a alocação de um montante adequado para ajudar as crianças, a sensibilização para o impacto negativo do trabalho infantil, bem como a criação de escolas totalmente gratuitas, que incluam transportes para as crianças e um serviço de atendimento para órfãos são as recomendações feitas pela CNTI.
“Estas sugestões pretendem contribuir para a eliminação do trabalho infantil. Se quisermos erradicar o trabalho infantil, temos de agir rapidamente”, afirmou o Presidente da CNTI, Aniceto Leto Soro, que acredita que o número de crianças trabalhadoras possa começar a diminuir assim que Governo implementar estas recomendações.
Por sua vez, a proibição às crianças viajarem sozinhas de Oecusse-Ambeno para Díli é outra das medidas tomadas, desta feita, pelo Instituto para a Defesa dos Direitos da Criança, também para eliminar o trabalho infantil.
Para o chefe da Unidade de Monitorização da Violação dos Direitos das Crianças, Isaías Carvalho Pereira, antes de a comunidade e o Governo assumirem responsabilidades, o papel mais importante cabe às famílias, que “têm obrigação de cuidar das crianças”. A erradicação do trabalho infantil “tem de ser um trabalho conjunto entre muitas instituições e organizações não governamentais”, mas depende também muito da ajuda das próprias famílias.
O Parlamento Nacional aprovou, este mês, a primeira lei para proteção de crianças e jovens em Timor-Leste
O Ministro Joaquim Amaral garantiu que vai incluir as recomendações da CNTI no plano de ação do Governo para que, em conjunto com a Comissão, se erradique o problema no país, realçando que “para o eliminar, o órgão executivo e os parceiros de desenvolvimento têm de criar uma legislação que proíba as crianças de trabalhar em Timor-Leste”.
Entretanto, o Parlamento Nacional já aprovou, no passado dia 7 de fevereiro, por unanimidade, a primeira lei para proteção de crianças e jovens em Timor-Leste.
O documento define os “requisitos e condições específicas para as intervenções por entidades civis, administrativas e judiciais” para proteção da vítima. Estabelece ainda a “legitimidade da intervenção” nos casos em que “os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto da criança ou jovem ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento”.
Isaías Pereira acredita que o projeto-lei vai servir de “guia” para os pais, a comunidade e o Governo no sentido de salvaguardarem os direitos das crianças. Além disso, observa que a implementação de medidas legais pode também servir como fator dissuasor para os pais ou familiares que colocam as crianças a vender nas ruas. O diploma aguarda agora promulgação por parte do Presidente da República, José Ramos Horta.
O Diligente procurou também obter esclarecimentos junto da Unicef Timor-Leste, que não se mostrou disponível para responder às nossas questões.
Simplesmente escravatura de humano familiar graudo contra humano mais fragil, a crianca.
As criancas sao o FUTURO de qualquer nacao.
Nestas idades elas sao como o mataborrao, absorvem tudo que os marca profundamente os anos vindouros. Os governos ao fim do dia tem de por cobro a esta escravatura. Engracado que o governo passa anos a “ver se chove”, nao mexe uma palha e adoram a palavra erradicar.
Nao e so preciso ter uma lei que proteja as criancas, e preciso atuar URGENTEMENTE.
Acredito que os atuais politicos, principalmente os nascidos nos anos 40, 50, 60, durante o tempo portugues nao andavam nas ruas a vender pissang goreng, mantolo ou mangas.
Eles fizeram juramento para melhorar as condicoes do Povo, o Povo lutou para ter uma independencia e vida melhor. Judas Barrabasses!
Nos ultimos dias o Diligente tem trazido a tona pecas jornalisticas de grande calibre sobre temas de importancia e que nos toca o coracao.
Lixo, liberdade religiosa, poder de compra, escravatura infantil, educacao sexual, etc…
Uma lufada de ar fresco, uma coragem tao grande como a coragem dos Timorenses que lutaram contra o invasor indonesio.
Em portugues com um nivel muito aceitavel, confesso que estou pasmado.
Que o Maromak vos de muita forca e coragem para continuarem. Nao deem treguas!
Grande tristeza. Gera-se lágrimas, ao ler o artigo. Que Deus salve as nossas crianças.
Escravatura Infantil!
Escravatura de uma infancia
Numa altura de grande ressonancia
Escravatura de crianca em abundancia
Crime horrorroso, ganancia
Escravatura do Futuro da nacao
Maldicao
Adultos sem coracao
Com falta de educacao
Desculpa idiotica do “ganha pao”
Gostei da forma como desenvolveram esta reportagem chamando a atenção de toda a sociedade,poderes públicos incluídos, para esta forma de “roubo da infância” que tem de ser encarado como uma pesada hipoteca para o futuro das crianças e de todo o país.
Com a reportagem sobre a desigualdade no acesso a um ensino de qualidade deste jornal vemos como é uma emergência a resolução desta questão social.
Por outro lado, Timor Leste destaca-se por ser a nação com o mais alto índice de natalidade na região do sudeste asiático, o que é uma agravante da pobreza. Penso que sendo um país de católicos conservadores uma política de planeamento familiar aberta e bem conduzida também não será fácil..
Continuação de bom trabalho.
Lamentável toda a situação destas crianças.
O artigo é muito pertinente a traballho infantil, e que é parte de alerta para que a responsabilidade social no país seja mais “em atenção máxima” em relação a assunto em causa.
Apesar disso, queria dizer que o caso deste tipo é mundial não só acontecer no país, Timor-Leste que é um país novo e ainda em vias de desenvolvimento.
Quando olharmos às questões surgidas no país, Timor-Leste são preocupantes mesmo, mas, se fazermos uma profunda análise comparativa com outros lados do mundo, dos quais conseguimos visitar podemos dizer que, talvez, são mais piores que Timor-Leste.
Desejo um bom fim-de-semana a todos.
Claro que há pior, mas Timor Leste é uma república democrática ao passo que nos países em que a situação ainda é mais grave não há direitos humanos constitucionalmente garantidos..
Isto não é desculpa.Não nós devemos guiar pelos melhores?
Sim concordo com a Maria Serralheiro, devemos-nos guiar pelos melhores, pelos padroes mundiais, nao devemos “arranjar desculpas” pelas nossas faltas.
Simplesmente ha sempre lugar para inovacao, para fazer melhor, para fazer uma diferenca!
O nosso papel para proteger nos termos da CRDTL, art.º 18.º. Cabe ao Governo criar as condições mínimas aos nossos povos principalmente os que tiveram vulnerabilidade. De forma a olhar um povo feliz ao nosso redor desta cidade e nos lugares interiores, o desenvolvimento económico tem de estar em condição suficientes que garantem todas as cidadãos para obter uma vida melhor.
É certo que o nosso pais está em curso no desenvolvimento, pelo facto que não nos erradicar o trabalho infantil desde o princípio, fará mais pior para o futuro.
Muito obrigado.