A Boneca de Ataúro, uma cooperativa têxtil que muda a vida das mulheres

Virgínia Soares (a primeira da direita) com a equipa da cooperativa Polivalente Boneca de Ataúro/Foto: DR

A Boneca de Ataúro é uma cooperativa têxtil desenvolvida por algumas mulheres de Ataúro, ilha a cerca de 25 quilómetros a norte da costa de Díli, com mais de 10 mil habitantes, que enfrentam problemas relacionados com a falta de condições básicas, como eletricidade, estradas, saúde e emprego.

Para remar contra a maré, um padre missionário iniciou este projeto com o ideal de que pertencesse a todos os que nele trabalhassem e fosse casa para quem precisasse de trabalho – nomeadamente as mães que não conseguiram estudar e financiar os estudos dos filhos ou os jovens que abandonaram a escola.

Os produtos da cooperativa, que emprega atualmente 43 mulheres e dois homens, já chegaram à Austrália, Portugal e recentemente ao Japão. Somente para a Austrália, desde 2018, já foram exportados mais de mil produtos.

Para saber mais detalhes sobre este projeto, o Diligente entrevistou Virgínia Soares, presidente da Boneca de Ataúro, que nos contou como surgiu esta iniciativa, que tem contribuído para a melhoria da vida das mulheres da ilha.

Virgínia fez parte do primeiro grupo, em 2006, mas saiu para terminar o ensino secundário. Antes de reintegrar o projeto, tinha criado, em 2008, um grupo de moda, chamado Moda de Ataúro, constituído por cinco elementos.

No ano seguinte, a Direção Nacional das Cooperativas organizou uma formação para o seu e outros grupos de mulheres, que se juntaram e formaram uma cooperativa. Em 2016, Virgínia assumiu o cargo de presidente, que mantém até agora.

A Boneca de Ataúro, neste momento, possui parcerias com a Fundação Oriente e o Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral (CIDAC), ambos em Portugal, e também com as escolas católicas australianas Emanuel College e Mont Sant Angelo, em Melbourne e Sidney, respetivamente.

Para Virgínia, integrar a cooperativa permitiu-lhe conhecer e ganhar coragem para lidar com muitas pessoas diferentes, mas também tomar decisões em grupo.

Como surgiu a iniciativa da Boneca de Ataúro?

A iniciativa é de um padre missionário italiano, Luís Fornasier. Veio a Timor-Leste e percebeu que as mulheres de Ataúro não tinham fonte de rendimento. Todos os dias, íamos trabalhar para o campo e depois mergulhar no mar. Por isso, o padre convidou uma designer da Suécia para dar um curso de desenho básico, de 2006 a 2009, a quatro mulheres.
Em 2009, o curso transformou-se na cooperativa Polivalente Boneca de Ataúro, com 25 mulheres de Ataúro. A produção acontece em Ataúro, mas, por a ilha estar longe e separada pelo mar, pensámos em ter uma loja na capital. Em 2018, com o apoio do Market Development Facility (MDF), conseguimos abrir a nossa loja em Díli.

Como foi o processo de encontrar os primeiros produtos? Os materiais são de Timor-Leste?

Os principais materiais são o fio, que compramos na loja Timor Diak, os tais de todos os municípios, que podemos encontrar no mercado de tais em Colmera, o tais tradicional de Ataúro, rapin-hirik, que obtemos de um grupo na própria ilha, e usamos sumaúma para o enchimento das bonecas. Normalmente, abastecemo-nos duas a quatro vezes por ano. Também recebemos encomendas, muitas vezes da Austrália.

Porquê o nome “Boneca de Ataúro”?

Porque foi este o nosso primeiro produto, a boneca de tais, que representa a cultura de Timor-Leste. A ideia foi de uma desenhadora da Suíça, Ester Piera, que estudou as condições do nosso país e como atrair a atenção dos turistas.
Outros produtos são brinquedos, malas, mochilas, carteiras, materiais educativos e objetos decorativos. A cooperativa chama-se Polivalente Boneca de Ataúro, porque temos muitas atividades. Temos a costura, a restauração e a pousada Manukoko Rek, em Ataúro. Temos também uma loja em Díli para facilitar a venda.

Bonecas e mochilas encomendadas por países como a Austrália, Portugal e Japão/Foto: Diligente

Como é o processo de produção de materiais?

No caso da boneca de tais, por exemplo, começamos por cortar o tecido, o que depende do modelo. A maioria do processo é feito manualmente e trabalhamos juntas para conseguir coser as bonecas. Há pessoas para desenhar o modelo das bonecas. Outras preparam o cabelo da boneca com uma máquina de costura manual.
Ao mesmo tempo, outro grupo de pessoas costura a roupa, outro coloca a sumaúma dentro do tecido para fazer as mãos e os pés e o resto borda os olhos, o nariz e a boca. No fim, montam-se todas as peças e, depois de a boneca estar pronta, vestimo-la.

Como é que a iniciativa se mantém?

Para se manter a cooperativa, a qualidade é muito importante. É o foco da produção. Não nos importamos muito com a quantidade, mas tentamos sempre criar produtos únicos para não deixar os clientes aborrecidos.

O projeto já participou em exposições. Podia contar-nos um pouco?

Sim. Participámos na exposição realizada pelo Ministério do Turismo sobre as cooperativas. Em 2009, a cooperativa foi a Portugal com 20 exemplares de produtos, porque existíamos há pouco tempo. Fomos a Macau em 2017 e 2018 com mais de 70 exemplares de produtos. No ano seguinte, viajámos até à Austrália, onde realizámos uma exposição com cerca de 100 decorações de parede.

Quando o grupo participou em exposições no estrangeiro, qual foi a reação das pessoas?

Em Macau, tivemos muitos visitantes portugueses que já conheciam A Boneca de Ataúro. Porém, na Austrália, os visitantes ficaram admirados depois de verem a nossa marca “Hand made em Ataúro, Timor-Leste” e perguntaram “Onde fica Timor-Leste? Timor-Leste tem produtos de qualidade”. As pessoas sentiram-se satisfeitas por participarmos no evento com novos produtos.
Percebemos que ficaram também muito curiosos sobre Timor-Leste. Então, mostrámos o mapa e indicámos a localização. Para mim, foi um momento feliz por ver que os estrangeiros quiseram saber mais sobre o nosso país. Explicámos aos visitantes que Timor-Leste é um país que restaurou a independência em 2002 e que o nosso grupo é de uma ilha considerada isolada, mas que tem um mar tão bonito e agradável para mergulhar. Falámos desta forma para levar as pessoas a visitar o nosso país. Na altura, os visitantes compraram muitos produtos.

A cooperativa dá formação à comunidade?

A nossa cooperativa foca-se na produção e, quando precisamos de contratar mais pessoas, damos oportunidade à população para participar nas formações para que depois possa trabalhar no nosso grupo. Além disso, dinamizamos formação para os grupos organizados pela nossa cooperativa. O objetivo da formação é melhorar as competências dos membros dos grupos para criarem autoemprego.
A cooperativa também oferece formação ao grupo das jovens no suco de Makili, em Ataúro, que recicla roupas em segunda mão que já não podem ser usadas. Em vez de deixar que estraguem o ambiente de Ataúro, transforma-as em produtos úteis como lençóis, cortinas, fronhas e outros.

Quais são as dificuldades enfrentadas na atividade de produção?

Quando temos um negócio, claro que sempre enfrentamos muitas dificuldades. O primeiro é como exportar os nossos produtos para o estrangeiro, porque para enviar os artigos que produzimos para outros países, a taxa é muito elevada. Além disso, a matéria-prima em Timor-Leste também é cara. Às vezes, os visitantes questionam o preço, mas este depende da quantia que gastamos para obter as matérias-primas como os Tais, os fios, tecidos, entre outros.

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A Boneca de Ataúro contribui para o empoderamento das mulheres de Ataúro/Foto: Diligente

A outra dificuldade é o transporte de matéria-prima de Díli para Ataúro e de produtos de Ataúro para Díli. A ilha de Ataúro é um pouco longe de Díli e precisamos de viajar por via marítima e, às vezes, não há barcos. Lamentamos também a falta de atenção e de apoio do Governo para cooperativas como a nossa, que existe há mais de uma década.

A cooperativa recebe apoio de alguma organização?

Para o nascimento da cooperativa, recebemos o apoio, em 2008, do Instituto Camões, que nos convidou a participar numa exposição da Fundação Oriente, durante um mês. Recebemos o apoio da organização MDF, da USAID e do Ministério do Turismo de Timor-Leste. A Secretaria de Estado das Cooperativas ofereceu-nos, no ano passado, dez máquinas de costura e um computador.

Quais são as perspetivas da organização?

Para o futuro, esperamos que o trabalho continue e que tenhamos mais visitantes, tanto estrangeiros como locais. Temos um plano de cinco anos em que a cooperativa está aberta a qualquer grupo ou instituição que queira trabalhar connosco.
É um programa educativo, uma residência artística, em que os artistas que queiram partilhar o seu conhecimento podem fazê-lo. Nós oferecemos casa e comida durante um a três meses, dependendo da proposta, em troca de conhecimento.
Estamos a trabalhar também na parte de marketing, melhoria e alargamento dos nossos estabelecimentos para poder recebermos mais pessoas.

Qual foi a reação da comunidade?

No começo, as pessoas ficaram surpreendidas e duvidaram da iniciativa, porque achavam que não era nada importante, mas, depois, ao verem que conseguimos avançar, criar o nosso próprio trabalho e que os produtos são lindos, começaram a visitar a nossa loja.

Desde o início, quais são os resultados ou impactos mais positivos obtidos?

Conseguimos criar postos de trabalho para as mulheres de Ataúro, que, por sua vez, conseguiram enviar os filhos para a escola. Saímos de um lugar isolado e temos uma carreira. Antes, os maridos não apoiavam as mulheres por acharem que o projeto não era importante. Porém, depois de perceberem que as mulheres beneficiam a economia familiar com este trabalho, começaram a apoiá-las.

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