Ko’a bani: tradição ancestral, quase esquecida, de produção de mel e de velas

Colmeias no topo das árvores: extração dos favos é feita pelo ailale, que deve ter força mental para aguentar as ferroadas das abelhas/Foto: Página oficial do presidente da República, José Ramos-Horta

Prática acontece duas vezes por ano. O Diligente acompanhou todo o processo, desde a colheita dos favos à transformação nos produtos.

O relógio marca as 10h da manhã, uma voz masculina brada entusiasmada a recomendar na língua materna (Idate) dos habitantes locais do suco Funar, posto administrativo de Laclubar, no município de Manatuto: “bi siluha sala osi lo ai-benun amik” (não se esqueçam de passar pela nossa árvore, em português).

A voz pertence a Filomeno de Jesus, 60 anos, um haha nain (pessoa que faz pedidos à natureza). De cabelo totalmente grisalho e bem penteado, sentado à frente de casa, prepara a kalui (nome dado à corda, de cerca de 100 metros, utilizada para transportar os favos de mel do cume da árvore para o chão). “Faltam poucos dias para a colheita”, diz.

A prática, conhecida como ko’a bani, é uma atividade ancestral que acontece duas vezes por ano. A primeira é a bani tinan (abelhas do ano, numa tradução literal), que ocorre no mês de março, e a outra, denominada bani loro (abelhas da época seca), acontece em maio. Nos restantes meses, devido à inexistência de flores que contêm o pólen, o alimento das abelhas, não há colheita.

Através da ko’a bani produz-se o bani-ben ou água doce cor de laranja (mel, em português) e a lilin-timor (vela timorense, no idioma de Camões), feita a partir dos favos de abelhas. Contudo, ainda hoje, grande parte dos cidadãos apenas têm conhecimento sobre o mel, pois nos mercados ou nas ruas, vende-se mais mel do que as velas.

Onde se podem encontrar as colmeias?

Em Timor-Leste, as colmeias de abelhas podem ser encontradas em buracos na terra, em troncos de árvores caídas ou no topo de árvores. A extração dos favos é feita por um ailale (nome atribuído à pessoa que faz a colheita). Avelino Pereira, 43 anos, é um deles.

Qualquer um pode ser um ailale, frisou Avelino Pereira, desde que aguente as picadas das abelhas, pois a colheita é um trabalho manual, feito sem grandes equipamentos de proteção. No entanto, quando se trata de subir a árvores com 100 metros de altura para alcançar as colmeias é feito um ritual, em que o haha nain à natureza para que não aconteça nada de mal durante o processo.

“Além disso, quando se está lá no alto, é preciso ter mentalidade forte para resistir às picadas das abelhas”, lembrou o ailale.

Preparação

Ao pôr do sol de 12 de março, Filomeno de Jesus reuniu-se com o ailale e Miquelina das Neves, de 69 anos, e outros familiares, numa casa com paredes de bambu, telhado de zinco e chão de terra batida, em Funar, para combinar o dia da colheita e reunir os equipamentos necessários para a atividade.

Filomeno e Avelino juntam  a kalui, o hilaru (recipientes de bambu), tali toi (uma corda com aproximadamente dois metros, usada para amarrar as mãos do ailale), wai hu’u (ramo feito de pequenos galhos e ervas verdes embrulhados) – que vai ser queimado para o fumo afastar as abelhas durante o ko’a bani –, um chapéu feito com fitas dos sacos de arroz para evitar que a cara do ailale seja picada pelas abelhas e, claro, o tua sabu e tua mutin (aguardente e vinho braco ou seiva da palmeira, em português).

Enquanto isso, Miquelina prepara a areca, bétel, e cal num luhu (cesto feito de folhas de palmeira), além de alguns produtos locais, como inhame, mandioca e arroz. “Vamos cozinhar as abelhas novas para comer com estes alimentos”, detalhou, ao mesmo tempo que ouvia a recomendação de Filomeno, “bua amela mahatik” (dorme e sente o sonho, tradução literal em português), para logo depois se despedirem. Filomeno quis dizer a Miquelina para dormir e ter bons sonhos, pois, segundo a crença timorense, se tiverem pesadelos, terão de cancelar a atividade.

O ailale pede aos membros que vão primeiro à colheita que não se esqueçam de deixar pelo caminho galhos com folhas na extremidade para que os que vêm atrás saibam que há pessoas à frente. O costume é denominado lata ai-rok, no idioma local.

“Se a ponta do galho estiver virada para a frente , significa que alguém já passou por ali e está à nossa frente. Contudo, se as folhas estiverem viradas para nós, significa que quem passou por ali, voltou para trás por algum motivo”, explicou o ailale.

Ao encontro das colmeias

Felizmente, não houve pesadelos. Na madrugada fresca do dia seguinte, às 6h da manhã, por entre os chuviscos matinais, dois cavalos com almofadas no lombo transportam todos os utensílios necessários para a colheita, alimentos, duas garrafas de dez litros de tua sabu, dois litros de tua mutin e outras garrafas vazias. “Hole edi”, diz o ailale (vamos arrancar, em português).

Partem para Kekur – região que faz parte de Funar. O orvalho corta o caminho dos viajantes, que se fazem acompanhar pelo canto dos pássaros, o ruído das árvores embaladas pelo vento e o seu burburinho. Pelo caminho, o verde das montanhas desponta.

Eis então que um galho com folhas na extremidade é encontrado na estrada de terra e lama. Para confirmar se a tradição está certa ou não, uma pessoa do grupo do ailale liga para um membro do grupo de Filomeno, que partiu primeiro: confirma-se que o ramo foi deixado intencionalmente, como manda o costume.

Após cerca de dez quilómetros desde o início da caminhada, com subidas e descidas, chega-se a Kekur: são quase 15h. Ficamos alojados numa casa tradicional, de madeira, com telhado de ervas verdes, tapetes de folhas e almofadas feitas de raízes das árvores, conhecida como tetebele (casa que não é bem construída e usada por um curto espaço de tempo). A tetebele serve para os proteger do calor e para abrigar as mulheres enquanto preparam a comida. Com os dois grupos reunidos na habitação, contam-se 20 pessoas. Foi em Kekur que o Diligente acompanhou o processo de ko’a bani.

Pedido à natureza e extração

Na madrugada do dia seguinte, inicia-se o pedido à natureza, conduzido por Filomeno de Jesus. Saem todos da tetebele para acompanhar o ritual. No chão, uma pedra dentro de uma pequeno círculo de madeira destaca-se: é ali que a cerimónia deve acontecer. O ambiente é de silêncio, já que para falar com a natureza, ninguém deve fazer barulho, exceto os animais. Miquelina colocou ao lado da pedra o luhu (cesto feito de folhas de palmeira) com areca, bétel e cal.

Filomeno acendeu uma vela e derramou um pouco de tua mutin em cima da pedra. Explicou que não colocou tua sabu, se não “a picada das abelhas pode ser quente como a aguardente”. Posteriormente, faz, em língua materna, uma reza para pedir a bênção e proteção da natureza: “ne ha’e di’in nora la’aran lamain ti ami, tante ami enia bi solen bi let dar, mesa ai nora larek na’in, beni ita odi asudi ro” (dá-nos caminho leve, pois não somos outras pessoas, somos donos desta árvore, por isso encontramo-nos, em português).

Cerca de 15 minutos depois, termina o ritual. Avelino Pereira, o ailale, vestido com uma t-shirt preta, calções cinzentos, pés descalços, o chapéu com rede ao pescoço, hilaru (garrafas de bambu) ao ombro, uma faca e a kalui à cintura parte para a floresta. Ao observar uma colmeia no alto de uma árvore (ai-benun, no idioma local), amarra o pulso direito com a tali toi (corda para juntar as mãos da pessoa que vai subir à árvore).

“Se não conseguir abraçar o tronco, devido à sua dimensão, então tenho de juntar com a tali toi. Para prender, depende da pessoa que vai subir, pois há pessoas têm mais flexibilidade de trabalhar com a mão esquerda. É importante que consiga abraçar o tronco”, argumentou o ailale, enquanto começou a cortar o tronco da árvore, criando pequenas escadas para poder subir.

Em simultâneo, coloca primeiro o pé direito no início da escada e começa a lançar a kalui do lado direito para o esquerdo do tronco. Passo a passo, o ailale alcança a colmeia, corta-a e envia um pedaço à natureza, como sinal de respeito.

Posteriormente, o ailale dá continuidade à extração: há mais colmeias no alto da árvore. O grupo que aguarda no chão, por sua vez, começa a entoar um cântico tradicional, conhecido como aheruk wani – que significa cântico das abelhas, em português. Este ritual pretende, para além de motivar o ailale para que consiga apanhar todas as colmeias, acalmar as abelhas para que não se enfureçam.

“Fali mama o tatan mauleruk fali eh, fali mama o tatan buileruk fali eh”, diz a letra em mambae (idioma falado pelos moradores do município de Aileu) – embora o cântico possa ser interpretado de forma genérica, o significado mais comum é de que o ailale deve ser como um macaco para poder chegar a todas as colmeias que estão no topo da árvore.

Quando o mel e os favos estão prontos para serem levados pela corda até ao chão, o ailale avisa os ajudantes. Após responderem que estão prontos, inicia-se o transporte do recipiente de bambu cheio de favos de mel.

No chão, depois de encher algumas garrafas, os ajudantes fazem movimentos na corda, como sinal para o ailale de que o procedimento foi concluído. O ailale puxa a kalui, acompanhada pela garrafa de bambu vazia para encher com mais favos. O movimento repete-se até o processo de colheita estar terminado.

“Cada favo pode ter no máximo cinco litros de mel, mas se for extraído tarde, às vezes, um favo só dá dois litros”, frisou o ailale, que acabou de apanhar 24 colmeias numa ai-benun.

Depois de acabar, os ajudantes e o ailale, numa só voz, entoam uma outra canção, no sentido de se despedirem das abelhas. “Ai-funan mosu mai, ami mos mosu. Ai-funan retira, ami retira” (as flores surgem, nós também aparecemos, as flores retiram-se, nós afastamo-nos, em português).

Processo de produção do mel e da lilin timor

Terminada a extração, o grupo começa a amassar os favos de mel. Algumas pessoas, porém, tiram os ferrões do inseto da pele do ailale. De acordo com os familiares, se o corpo do Avelino Pereira ficar inchado, devem colocar sobre as feridas, de modo a amenizá-las, mel ou água quente, para estimular a circulação sanguínea.

Miquelina ficou responsável por dividir o mel pelas garrafas, enquanto Filomeno acendia uma fogueira para cozinhar as abelhas novas. A mulher enche 19 garrafas com cinco litros de mel cada.

Os favos amassados são cozinhados para retirar o resto do mel. No procedimento, nada é desperdiçado. Após alguns minutos, Miquelina pede para que tirem a panela com favos do fogão e os coloquem em cima de algumas ervas, até secarem. Enquanto isso, Avelino preparava um recipiente pequeno de bambu com cerca de 20 centímetros de diâmetro e o pavio.

Os favos secos são novamente colocados na panela, até ficarem semelhantes a água grossa. “Venham aqui buscar hiruk-wer (refere-se à água dos favos cozinhados) para colocar no recipiente”, solicita o ailale aos ajudantes.

É esta água que, após solidificar dentro dos recipientes, se transforma na lilin-timor (vela timorense, em português).

De acordo com Filomeno de Jesus, os processos de colheitas em março (bani tinan) e maio (bani loro) até à produção de mel e da vela são iguais. Contudo, há uma diferença na cor e sabor.

“Se for a bani tinan, o mel é menos doce e mais escuro. A bani loro tem uma cor mais clara, menos doce e tem um aroma espetacular”, explicou Filomeno de Jesus.

Tradição em risco de esquecimento

Um dos maiores desafios que os colhedores de favos de mel enfrentam atualmente é a falta de retorno financeiro. Avelino Pereira relatou que, apesar de ser um trabalho bastante difícil, a compra do produto não é regular.

Relativamente às velas timorenses, acrescentou que “quase não há pessoas a comprá-las”, uma vez que o país tem importado velas da Indonésia, e a eletricidade já chega a muitas famílias.

Em relação ao preço do produto, Avelino Pereira explicou que cada garrafa de cinco litros de mel, seja de bani tinan ou bani loro, custa 20 dólares americanos. “Estes valores são os praticados quando os clientes compram no lugar de produção”, disse. Se comprarem em Díli, o preço aumenta.

Outra dificuldade tem a ver com a falta de coragem e de conhecimento dos jovens, já que “muitos deles não sabem subir às árvores e têm medo das picadas das abelhas”, destacou o ailale.

Perante este cenário, a tradição corre o risco de se perder, alertou Avelino Pereira. “Enquanto eu estiver vivo, porém, farei a colheita dos favos de mel. É uma forma de honrarmos os antepassados, e parte da minha identidade”, concluiu o ailale – talvez, um dos últimos de Timor-Leste.

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  1. Gostei imenso!
    Que o Maramok vos de melhores dias e vos ajude.
    Ai, ja levei mais uma picada de abelha. Acho que por ser intrusivo neste processo.

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