A violência na educação em Timor-Leste: “Bater para ensinar?”

Na ESTV-GTI lecionam 76 professores e estudam cerca de 1.400 alunos/Foto: Diligente

Alguns professores e o diretor da Escola Secundária Técnica Vocacional-Grupo de Tecnologia e Indústria (ESTV-GTI), em Díli, acreditam que agredir os alunos é uma forma válida de os ensinar, ignorando a lei. Ministério da Educação condena a conduta e especialista cita necessidade de melhorar o sistema educativo.

“O professor deu-me bofetadas na cara. Tentei defender-me e esquivar-me para não ser atingido, mas depois ele tentou com as duas mãos e acertou-me. Gritei, mas continuou a bater-me. Gritei de novo, de dor, mas ele não quis saber. Deu-me um murro no peito e queixo. Quase caí. Mesmo assim, o professor achou que eu estava a gozar e continuou a agredir-me até que me expulsou da sala”.

O relato ainda assustado pertence a José Alípio Gusmão, 17 anos, aluno do segundo ano do departamento de automotivo da Escola Secundária Técnica Vocacional-Grupo de Tecnologia e Indústria (ESTV-GTI) e que esta semana se tornou conhecido nas redes sociais pelos piores motivos. As imagens da agressão que sofreu às mãos do professor circularam na internet e dividiram a opinião pública.

O jovem contou ao Diligente que a situação aconteceu na aula de língua indonésia. Quando o professor entrou na sala, às 10 horas, do passado dia 27 de fevereiro, chamou os alunos um a um para entregarem o trabalho de casa. Ao chegar a sua vez, José Alípio foi à frente para entregar o seu, mas professor não aceitou e disse que não ia avaliá-lo, pelo facto de o estudante, momentos antes, alegadamente ter feito barulho. “Primeiro, ele quis bater-me com uma vassoura de bambu e palmeira, mas eu respondi-lhe que na nossa cultura é proibido bater com estes materiais. Então ele bateu-me com as mãos”, partilhou José Alípio.

Nuno Gomes (nome fictício), aluno da mesma turma, contou que não é a primeira vez que esta situação acontece, mas desta vez resolveram filmar. “Graças ao vídeo que fizemos, as pessoas ficaram a saber o que acontece aqui. Estamos traumatizados.” O aluno acrescentou que já tinham apresentado queixa do docente a alguns pais e ao diretor da escola, mas ninguém tomou nenhuma providência.

A mãe do jovem agredido soube da situação através do vídeo e ficou revoltada. “Quando vi, fiquei sem forças, quase desmaiei. Os professores devem ensinar, mas não têm o direito de bater no meu filho. Se ele sofresse alguma consequência grave por causa da agressão, o que aconteceria? O professor tem de ser responsabilizado,” lamentou Olga de Jesus Lopes, de 59 anos.

A 28 de fevereiro, à tarde, a mãe de José Alípio foi chamada à escola para se encontrar com a Inspeção-Geral da Educação e com o diretor da ESTV-GTI. Quando chegou, foi recebida pelas palavras de alguns professores que tentavam justificar o ato do colega: “Se nós não tivéssemos sido agredidos pelos nossos professores, hoje também não seríamos professores”, disseram. Outros enfatizaram que se os pais não educam em casa, os alunos faltam ao respeito aos docentes na escola e, por isso, eles têm o direito de lhes bater, normalizando o sucedido.

Olga Lopes, apesar de estar sozinha, enfrentou os docentes . “Como mãe, fico muito triste e revoltada por ver um professor a bater no meu filho. Vou avançar com um processo para que não aconteça a mais ninguém”, respondeu.

A dona de casa contou que depois de o vídeo ter sido divulgado, as autoridades a contactaram para averiguar o caso, que já está registado na Provedoria dos Direitos Humanos e Justiça (PDHJ).

Na ESTV-GTI, que é localizada em Becora, Díli, lecionam 76 professores e estudam cerca de 1.400 alunos.

“Fiquei descontrolado. Bati-lhe não com a intenção de o matar, mas para o educar”

Pedro da Conceição, professor de língua indonésia que agrediu o estudante, argumentou que o jovem lhe faltou ao respeito e desvalorizou o seu papel. “Ele fez barulho e depois sentou-se de costas para mim. Chamei-o à atenção, mas ele não me ouviu. Depois de receber os trabalhos dos outros alunos, chamei-o para o ensinar. Fiquei descontrolado. Bati-lhe não com a intenção de o matar, mas para o educar”, afirmou.

Corroborando a opinião de Pedro da Conceição, Júlio de Carvalho, professor de Física na mesma escola, considera que toda a ação sempre tem uma reação, e que “se os pais não educam os filhos em casa e a responsabilidade recai toda sobre os professores, às vezes, quando estamos sobrecarregados, perdemos o controlo e agredimos os alunos malcomportados.”

O professor acrescentou ainda que o sistema educativo, que foi adaptado da Europa, proíbe que se bata, mas que isto não funciona em Timor-Leste e apenas serve para desvalorizar a posição dos educadores. “Com os timorenses é preciso bater para haver mudanças. Se não batermos, os estudantes vão piorar. Gozam connosco e fazem barulho”, defendeu.

O docente explicou que quando os professores agridem os alunos, “pelo menos alguns ouvem e obedecem.” Segundo Júlio de Carvalho, os próprios pais se dirigem aos professores e pedem para que batam nos seus filhos, para que mudem de atitude, pois não o conseguem fazer em casa.

Apesar de reconhecer que a lei não permite que os professores agridam os estudantes, o diretor da ESTV-GTI, Feliciano de Almeida Belo, faz a ressalva de que os docentes “são seres humanos e têm os seus limites”. “Quando os alunos são indisciplinados, o professor pode perder controlo e bater-lhes. A lei proíbe a agressão, mas, às vezes, são os estudantes que provocam. Os professores não são loucos para baterem nos estudantes sem motivo”, garantiu.

O diretor informou, sem dar maiores detalhes, que vai esforçar-se para efetivar as leis que regulamentam as atitudes dos professores e dos alunos.

Pesquisa revela que 94% de estudantes já sofreram algum tipo de repreensão física em sala de aula

A violência na escola, de acordo com o psicólogo, antropólogo e docente no departamento de Filosofia na Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL), Alessandro Boarccaech, demonstra como a sociedade timorense entende a educação, a hierarquia, o poder e a resolução de conflitos. “A violência e o castigo físico tornaram-se algo ‘normal’ em Timor-Leste. A escola, infelizmente, é apenas mais um lugar onde isto acontece. As crianças vão para a escola não para aprender os conteúdos, mas para aprender a se submeterem à autoridade, a ter medo do castigo, a serem disciplinados e a repetirem o que o professor fala na sala de aula”, observou.

Juntamente com a pesquisadora Márcia Vandineide Cavalcante, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, Brasil), Alessandro Boarccaech publicou, no ano passado, o estudo denominado “A severidade na educação em Timor-Leste”, que analisou a perceção de estudantes universitários sobre a possibilidade do uso de punições físicas pelos professores das escolas primárias e secundárias no país. Participaram na pesquisa 215 pessoas, sendo 130 homens e 85 mulheres. Os participantes, que voluntariamente responderam aos questionários de forma anónima, tinham entre 20 e 25 anos.

Os resultados do estudo revelaram que 94,4% dos participantes já sofreram algum tipo de repreensão física em sala de aula. Entre estes, 80,4% concordaram com a possibilidade de os professores agredirem fisicamente os alunos, desde que seja com o objetivo de ensinar os conteúdos das aulas ou corrigir comportamentos considerados desviantes ou inadequados aos padrões de conduta pré-estabelecidos.

Alessandro Boarccaech destacou que é um equívoco pensar a violência nas unidades de ensino como um problema exclusivo da educação escolar e considera que a agressão física, como recurso legítimo para educar, é uma ideia disseminada em todas as dimensões da sociedade timorense.

No estudo, os pesquisadores exemplificam que há uma “vasta literatura acessível, que faz parte do programa de ensino dos cursos frequentados pelos(as) participantes deste estudo, que advoga não apenas a possibilidade de uma educação menos punitiva, mas indica as vantagens e as metodologias de um sistema educacional mais inclusivo, democrático e menos severo.”

A pesquisa ainda cita legislações que, em tese, deveriam resguardar a integridade física e psicológica dos estudantes, como por exemplo: a Convenção dos Direitos da Criança (da qual Timor-Leste é signatário); o inciso 1 do artigo 18º da Constituição de Timor-Leste (que garante a todas as crianças o direito “à proteção especial por parte da família, da comunidade e do Estado, particularmente contra todas as formas de abandono, discriminação, violência, opressão, abuso sexual e exploração”); o decreto nº 29/2017 (que assegura a alunos(as) “a proteção contra todas as formas de violência, bem como o desenvolvimento de uma educação baseada em um espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade e solidariedade”)e o diploma ministerial nº 4/2018 (que proíbe categoricamente os “castigos ou comportamentos que podem violar a integridade física, psicológica ou sexual dos alunos e de outros membros da comunidade educativa”.

Para mudar a cultura de violência na educação em Timor-Leste, o estudo descreve que apenas um conjunto de leis que coíba os castigos físicos não é o suficiente, mas que deve haver um esforço para aprimorar a comunicação sobre os efeitos destas medidas, conforme a realidade local.

“Deve-se também dar prioridade aos métodos e à qualidade das informações transmitidas, a linguagem utilizada e a relação desses conhecimentos ao contexto timorense. Caso contrário, corre-se o risco de obnubilar a manutenção de determinadas práticas e relações de poder, camuflando-as com uma aparência de mudança e favorecendo aquilo que o pesquisador Michael Apple denominou de modernização conservadora na educação”, aprofunda a pesquisa.

Relativamente ao vídeo em que se vê Pedro da Conceição a agredir José Alípio Gusmão, o psicólogo considera que a intenção do docente é muito clara. “O professor estava a tentar humilhar, magoar fisicamente e a demonstrar poder sobre o aluno. Foi violência e abuso de poder”, observou Alessandro Boarccaech.

O profissional acrescentou ainda que este cenário é consequência dos sistemas educativos nos períodos português e indonésio, altura em que a educação não era inclusiva e se baseava na autoridade do professor – e os castigos físicos eram uma prática comum.

“O problema é um pouco mais complexo. Isto está relacionado com disputas de poder na sociedade, com a manutenção do status quo, com o sistema de dominação e subjugação do povo, com estratégias de controlo social, com a sensação de impunidade, a maneira como as pessoas percebem a diferença e como procuram resolver os seus conflitos. É a lógica de o povo precisar temer o castigo para respeitar as autoridades”, explicou Alessandro Boarccaech. 

Consequências

Perante o incidente na ESTV-GTI, a ministra da Educação, Dulce de Jesus Soares, sublinhou que é incorreto um professor declarar publicamente que agressão física é uma maneira de ensinar. “Se este caso acontecer muitas vezes naquela escola, o Ministério tem de investigar. Isto é muito perigoso e pode ter impacto negativo para o desenvolvimento físico e psicológico da criança. A lei proíbe qualquer forma de violência”, disse. A ministra informou que a Comissão da Função Pública suspendeu o professor e que o caso de agressão física será investigado pelas autoridades competentes.

Lê-se na lei n.º 14/2008, de 29 de Outubro (Lei de Bases da Educação), artigo 3, alínea 2: “a disciplina pacífica é implementada através de estratégias ou técnicas educativas construtivas, como técnicas de disciplina positiva, capazes de promover a disciplina dos alunos sem recurso à violência física e/ou psicológica e que visam apoiar o crescimento dos alunos e o desenvolvimento de todo o seu potencial, preparando-os para se tornarem indivíduos responsáveis, respeitosos, felizes, equilibrados e bem-sucedidos.”

A referida legislação, em seu artigo 38º, alínea 3 consta também que: “é apoiado o desenvolvimento psicológico dos alunos e a sua orientação escolar e profissional, através de serviços de psicologia e orientação, devidamente organizados, que assegurem igualmente apoio psicopedagógico às atividades escolares e ao sistema de relações da comunidade educativa.”

Embora o desenvolvimento psicológico seja essencial para o crescimento dos alunos, muitas escolas públicas não têm acesso a estes serviços, como é o caso da ESTV-GTI, onde José Alípio Gusmão foi agredido pelo professor. “Nunca recebi apoio psicológico na escola. Só falei com os meus pais e colegas”, partilhou o jovem, que confidenciou estar com medo de voltar à escola.

Sem acesso a apoio psicológico adequado, para Alessandro Boarccaech, os estudantes podem enfrentar dificuldades emocionais, mentais e comportamentais. “Isso pode resultar em problemas de aprendizagem, queda no desempenho académico, evasão escolar, comportamentos agressivos na sala de aula e no aumento de problemas de saúde mental mais graves. Além disso, a ausência de serviços psicológicos dificulta a prevenção de conflitos, pode reforçar a negligência aos aspetos emocionais e psicológicos no processo de ensino-aprendizagem, o que tem impacto no bem-estar geral dos alunos, dos professores e demais funcionários da escola”, detalhou o profissional.

Mesmo que as leis estejam em vigor, não têm efeito real na vida dos educadores. Os professores continuarem a legitimar a violência com experiências passadas. Culpar a vítima chamando-a de “malandra” ou que “não respeita”, ou mesmo atribuir estes comportamentos agressivos dos professores a possíveis influências externas, para o psicólogo, apenas cria uma distração e não resolve o problema. “Nenhuma sociedade consegue resolver os seus problemas se não olhar para si própria e assumir a responsabilidade pelas mudanças e pelo bem-estar de todos”, concluiu.

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  1. Bem, os professores em muitos casos preenchem as lacunas dos pais. Eu sou contra todas as formas de violence, sejam onde for, mas vezes ha que o cavalo marinho faz milagres. As falinhas mansas muitas vezes e um desperdicio de saliva!
    Preso por ter cao, preso por nao ter cao.

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