Da seiva da palmeira nasce a aguardente típica timorense: tua sabu

"Tua sabu é a nossa água. Sem tua sabu, consideramos a festa sem água”/Foto: Diligente

O Diligente acompanhou o processo de fabrico da bebida. Médico alerta para possíveis adulterações e riscos para a saúde, devido também ao consumo em excesso.

Na madrugada fresca de um fim de semana de janeiro, o orvalho corta o caminho, acompanhado pelo canto dos pássaros, das galinhas e dos cães. A perder de vista, o verde viçoso das montanhas, envolvido pela calmaria do vento a transportar o nevoeiro do fundo até ao cume das cordilheiras.

Já no monte, vislumbro no topo de uma casa o fumo, e aproximo-me. Peço para entrar, usando uma expressão na língua materna (Idaté) dos habitantes locais, “hoe ada”. Uma voz feminina responde “ta ma lau oi” (por favor, entre, em português).

É a voz de Adelaide Soares, 43 anos, dona de casa e agricultora. Sorridente, cabelo bem penteado, arrumava a louça, enquanto o marido, Avelino Pereira, 43 anos, agricultor, sentado, afiava a faca. Cumprimentamo-nos e convidam-me a sentar num banco de bambu.

A habitação que nos abriga é uma casa tradicional, conhecida como bitika na língua materna. Paredes de bambu, telhado de palha e chão de terra batida. Pelo chão, garrafas de plástico de cinco e de trinta litros, baldes e dora ou hilaru (recipientes feitos de bambu para guardar vinho), fechados e bem alinhados.

Localizada numa região chamada Larmera, a moradia faz parte do suco Funar, no município de Manatuto. Foi ali que o Diligente conversou com os cidadãos sobre o processo de fabrico de tua sabu, o saboroso e intenso aguardente timorense.

Tarefas dividas pelo casal com um único objetivo

Avelino e Adelaide, um casal com sete filhos, não precisa de falar, olham-se e já sabem o que cada um tem de fazer. A mulher carrega a lenha. Posteriormente, tira as cascas de uma árvore, (ramek, na língua materna) e põe-nas junto com um resto de seiva. As cascas com a seiva vão ser piladas numa aluha (um tipo de prato tradicional) até se transformarem numa cola. “Esta massa serve para tapar os buracos da panela e evitar a saída do vapor da seiva”, salientou Adelaide Soares, com a cara ensopada em suor, enquanto verifica se a mistura já tem a consistência desejada.

Em simultâneo, Avelino Pereira está a preparar os materiais para ir buscar a seiva. Veste-se de silira rok (impermeável de folhas de bambu, em português, pois estamos na época da chuva), com a hi’u-nau (faca que só utiliza para cortar palmeiras) pendurada à cintura e leva quatro hilarus (garrafas de bambu) ao ombro.

Caminhámos por volta de 30 minutos até chegarmos a um sítio conhecido como Larabutik Tukun, em Larmera. Pergunto-lhe o que vai fazer. “Vais perceber”, responde. O agricultor começa a aproximar-se da wera (escada de bambu, em português), sobe, passo a passo, a uma palmeira, onde, horas antes, havia deixado um recipiente pendurado num ramo marcado por cortes. Retira a garrafa, que encontra-se quase a transbordar com um líquido de cor branca, e então começa a cortar o ramo em pequenos pedaços. “Tiro estes bocados para abrir caminho e evitar que a nova seiva fique presa”, explicou, enquanto descia com o recipiente preenchido com 10 litros de seiva – o suficiente para encher os quatro hilarus. Pergunta-me se quero provar um pouco do material recolhido. Entre risos, respondo que não.

A colheita da seiva ocorre duas vezes por dia, de madrugada e à tarde. Normalmente, cada palmeira pode dar 10 a 20 litros de seiva. No entanto, há palmeiras que produzem mais do que isso, podendo atingir os 40 a 60 litros diários. A seiva cai gota a gota, mas é abundante. O líquido, misturado com as cascas das árvores, forma o tua mutin, bebida alcoólica conhecida como “vinho branco” – a principal matéria-prima do tua sabu.

“Se a produção aumentar, tenho de colocar garrafas maiores para poder acumular tudo e só posso recolher de manhã e à tarde”, confidenciou o pai de setes filhos, numa voz trémula, devido ao peso das quatro garrafas de bambu que transportava ao ombro no regresso a casa.

Produção de tua sabu e pagamento da família

Chega a casa por volta das 8h00, Avelino Pereira tira todas as tampas das garrafas. O espaço fica embrenhado pelo forte cheiro do tua mutin.

Num grande recipiente, cozinha-se mandioca, inhame, folha de abóbora, piripiri, rebento de bambu, lasuruk, bibutalinan e uta-lali (nomes dos diversos tipos de cogumelos, no idioma local). Com uma colher, a matriarca coloca a mistura num prato de bambu, acompanhados com tua mutin e tua sabu, para abrir o apetite. “Ta aka’as oi lai baer, hali serbisu oler” (vamos dar força à barriga para trabalharmos, em português), diz Adelaide Soares.

Enquanto esvaziávamos os pratos e os copos, a lenha começava a formar brasas. Adelaide vai buscar a panela onde cabem 50 a 60 litros e coloca-a em cima do fogão tradicional de barro e fecha-a com uma tampa. Vai começar a produção do tua sabu, que é a versão aquecida do tua mutin.

Produção do tua sabu/Foto: Diligente

A tampa tem um orifício para acomodar um tipo de cano feito de bambu de aproximadamente 15 centímetros de diâmetro, por onde sai o vapor do tua mutin. Quase na extremidade, um outro cano de bambu, mais fino, encontra-se acoplado na posição horizontal, envolvido na ponta por um material do mesmo tipo, porém maior, “para garantir que não rebenta, uma vez que o vapor do tua mutin é muito quente”, explicou Avelino Pereira. No final dessa estrutura, há uma abertura: é por aí que pingam as gotas da bebida aquecida.

As brasas começam a aquecer o tua mutin e a mulher tira a espuma para que não danifique a panela. “O tua mutin já tem gás, se não tirarmos a espuma, a panela pode partir”, argumentou, enquanto orientava um dos filhos para buscar uma garrafa de um litro a fim de guardar as gotas de tua sabu. “Não deixes as gotas caírem, isto é dinheiro”, enfatiza Adelaide Soares.

“Normalmente, produzimos 50 a 60 litros de tua mutin e tiramos dez a 13 litros de tua sabu, se aumentarmos a quantidade, diminui a presença de álcool e as pessoas não gostam de beber”, acrescentou a matriarca, enquanto limpava o suor da testa, devido ao calor das brasas.

Naquele dia, o processo de destilação correu das 9h às 18h. Normalmente, a produção classifica a bebida em primeira, segunda e terceira classe. Apesar de não haver nenhum teste de laboratório para analisar a percentagem alcoólica, a maioria dos produtores baseia-se no tempo de cozedura do tua mutin para deixar a bebida mais ou menos forte. O líquido de primeira classe, mais alcoólico, é chamado de tua ulun.

As dificuldades na produção e na venda do álcool típico timorense

Um dos maiores desafios que os produtores enfrentam é a falta de lenha, já que para produzir tua sabu, é preciso ter muitas brasas. “Caminhamos muito à procura de lenha”, partilhou Adelaide Soares.

Outra dificuldade tem a ver com o clima: na época de seca, a palmeira produz bem o tua mutin e há mais rendimento. Contudo, na época da chuva e vento a produção é escassa.

Em relação ao preço do produto, Avelino Pereira explicou que cada garrafa de cinco litros de tua sabu, classe dois, custa sete dólares americanos, enquanto que a mesma quantidade de tua ulun sai por 25 dólares americanos. “Estes valores são os praticados quando os clientes compram no lugar de produção”, disse o agricultor.

No entanto, há clientes que querem negociar, por isso Avelino Pereira prefere vender o tua sabu no local onde vivem os clientes. Sobe e desce as montanhas, corpos suados, seguem de Funar até Turiscai, Avelino e os seus filhos, com cinco, às vezes com 20 litros de tua sabu aos ombros. Para levar mais quantidade de bebida, usam ainda um cavalo, o transporte terrestre da família, que carrega no lombo entre 30 a 40 litros do aguardente. Viagens difíceis, cujo único objetivo é ganhar um pouco mais de dinheiro.

“Se levamos o tua sabu até ao sítio onde as pessoas vivem, podemos cobrar 11 dólares pela classe dois e 30 pelo tua ulun”, contou Avelino Pereira. O agricultor e a sua esposa despedem-se: “ta ahilas, awa’a lala” (boa viagem de regresso, em português), diz ela.

Presença do tua sabu pelo país

No país, o tua sabu é também conhecido por ai-ben natural (água natural da árvore, em português) pelos consumidores, por saberem que o processo de produção é caseiro e sem adição de químicos.

Sendo assim, é presença assídua em todas as cerimónias rituais, como funerais, inaugurações de casas sagradas, deslutos, casamentos, aniversários, festas de Natal e Ano Novo, entre outras.

A expressão “ameran ilas ou halo oin mahar” (perder a vergonha, apesar da tradução literal – deixar a cara avermelhada – em português), é usada por muitos jovens, por exemplo numa festa, se eles não tiverem coragem suficiente para pedir a uma jovem para dançar. Então, bebem tua sabu para perderem a vergonha.

“Bebo antes de ir para as festas. Uma vez que somos sempre nós, os homens, a convidar as mulheres para dançar e, às vezes, somos rejeitados. Por isso, é melhor ficar ‘bêbedo’ para não sentir vergonha”, confessou Abel Soares, 24 anos, estudante de Gestão Financeira da Universidade da Paz (UNPAZ).

A bebida é vendida em vários mercados do país. Quadros de triplex ou de zinco pendurados na parede de quiosques ou, às vezes, nas casas anunciam “iha ne’e fa’an tua sabu” (aqui vende-se aguardente, em português). Encontramos estas sinaléticas em vários mercados de Díli, em regiões como Taibessi, Balide, Becora, Kuluhun, Comoro, Palapaso, Caicoli, Surikmas, Bidau, Audian e Bedois.

Nas redes sociais, o tua sabu pode ser facilmente encontrado também. A comercialização indiscriminada pode causar problemas, uma vez que se trata de uma bebida alcoólica.

Em entrevista ao Diligente, Kewen Robert Lu Pereira, médico geral da clínica do Bairro Pité, alertou para o consumo da aguardente em excesso poder provocar problemas no fígado, hepatite e outras doenças, além de dependência. “Se o fígado não funcionar como o normal, a pessoa pode correr risco de vida”, sublinhou.

O profissional pediu aos consumidores que reduzam o consumo, uma vez que ainda não há um estudo específico sobre os efeitos do tua sabu para a saúde. Além disso, destacou, “não sabemos, de facto, se os vendedores misturam outras substâncias que podem prejudicar o nosso bem-estar”. Kewen Pereira não recomenda mais do que uma pequena dose por dia.

Por sua vez, Valenti Amaral, 34 anos, trabalhador na perfuração de água, morador na capital, contou que normalmente quando há alguma cerimónia tradicional ou festa na família, o ai-ben natural é requisito obrigatório.

Para o trabalhador, se não há tua sabu nas cerimónias, as festas não são divertidas. “Tua sabu para nós é a nossa água. Não ficamos animados, se não bebermos”, argumentou.

Valenti Amaral contou ainda que toma a bebida regularmente. “O tua sabu ajuda-me a aliviar todo o cansaço. Bebo, acordo de manhã e sinto-me muito confortável. Nunca senti que fizesse mal à minha saúde e penso que nunca vai fazer, porque o tua sabu é produzido naturalmente”, partilhou, ao mesmo tempo que pediu moderação e responsabilidade aos cidadãos, pois “a saúde está nas nossas mãos”.

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  1. 12 milhoes dava para criar uma industria vinicola da tuaca em TL, criando emprego para muito Timorense, vinho para as missas e para afogar as magoas, miracolosamente!

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