Timorenses que vivem em Oé-cusse, na fronteira com a Indonésia, temem perder terras para o país vizinho

Uma parte do terreno em Naktuka pode vir a pertencer à Indonésia caso as novas marcações confirmem delimitação territorial /Foto:Fukun News Timor-Leste

Canos de metal, que servem como pontos de marcação, foram espalhados pela comunidade de Naktuka, em novembro de 2023. Nova delimitação fronteiriça, respaldada pelo primeiro-ministro Xanana Gusmão, pode afetar 270 hectares e áreas correriam o risco de passarem a pertencer à Indonésia. Moradores dizem que não foram consultados e que não sairão das terras. 

No suco Bene Ufe, sub-região de Nitibe, na Região Administrativa Especial Oé-cusse Ambeno (RAEOA), situa-se a comunidade de Naktuka (palavra do dialeto baiqueno), localizada entre a fronteira com a Indonésia e a mais de quatro quilómetros de Citrana Vila, a povoação mais próxima em território timorense. Isolados, sem estradas, eletricidade, escolas e centros de saúde, os habitantes de Naktuka vivem em condições precárias, em casas construídas com bambu e palmeiras. Grande parte dos cidadãos não sabe falar tétum, uma das línguas oficiais de Timor-Leste, apenas baiqueno misturado com indonésio.

A agricultura é a principal fonte de rendimento e sobrevivência dos moradores da comunidade – pessoas amigáveis, do tipo que sorri para toda a gente.

No entanto, em novembro de 2023, o facto de as autoridades de Timor-Leste e da Indonésia terem colocado 70 canos de metal na região, sem consulta prévia, indignou a população: se as instalações forem confirmadas como pontos de marcação para delimitar o território, Naktuka pode perder 270 hectares de terra arável, de acordo com as medições da comunidade.

“Consideramos Naktuka como o nosso prato, sangue e força. Instalaram indicações nas nossas terras e precisamos de explicações, uma vez que já é o tempo de fazer várzeas”, ressaltou Júlio Cuno, agricultor em Naktuka.

Um tratado assinado por Holanda e Portugal ainda no século XIX (1859) serviu de referência para a definição da fronteira entre Timor-Holandês (Timor Ocidental) e Timor Português (Timor-Leste) – território no qual a comunidade de Naktuka está inserida. Durante a ocupação indonésia, entre 1975 e 1999, a delimitação territorial manteve-se.

“Alguns Ema boots (governantes) disseram que, mesmo que vivamos em Naktuka, não sabemos nada sobre a fronteira. Podemos ser analfabetos, mas sabemos que Naktuka é a nossa terra. As várzeas, hortas e plantações são de Timor-Leste”, diz em baiqueno outro agricultor, Domingos Falo, 60 anos.

A várzea é a única fonte de rendimento do pai de três filhos. O arroz é vendido às famílias em Oé-cusse. Uma saca de 25kg custa 12 dólares americanos. “Se o nosso Governo decidir que Naktuka pertence à Indonésia, não vamos criar problemas, mas continuaremos a utilizar o terreno para cultivar. Quando as pessoas nos chamarem à atenção, vamos dizer que Naktuka é a nossa terra”, garantiu Domingos Falo.

Os canos que servem como pontos de marcação: comunidade diz que instalação foi feita às escondidas /Foto: Diligente

Os moradores da região, apesar de inconformados com as instalações dos canos, ainda têm a esperança de que as autoridades os retirem. O ambiente é de ansiedade e medo – o que também impede os cidadãos de simplesmente fazerem desaparecer os materiais do chão.

A comunidade só deu conta das marcações em meados de dezembro de 2023, quando começaram a circular informações dos objetos no solo: os cidadãos souberam porque pessoas que acompanharam a colocação dos materiais decidiram contar o que se estava a passar.

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Antes, o poço estava na horta da comunidade de Naktuka, mas depois de a equipa instalar os pontos de marcação, o agricultor viu-se obrigado a mudar a sua cerca/Foto: Diligente

 “Disseram-nos que era um segredo da nação. Quando a equipa nos pedia os canos, levamo-los, furamos a terra e instalamo-los”

As marcações nos terrenos dos agricultores foram instaladas por uma equipa técnica de Delimitação da Fronteira Terrestre e alguns jovens do suco de Bene Ufe. David Manaca era um deles. Recebeu a tarefa de acompanhar os profissionais por parte da autoridade da sub-região de Nitibe. “Na altura [novembro de 2023] fomos proibidos de falar. Disseram-nos que era um segredo da nação. Quando a equipa nos pedia os canos, levávamo-los, furávamos a terra e instalávamo-los. Apenas cumprimos ordens”, contou.

Em conversa com o Diligente, o jovem afirmou ainda que, recentemente, um jornalista de um órgão de comunicação social foi ao posto da Unidade da Polícia de Fronteira (UPF) para fazer cobertura sobre a situação em Naktuka, mas a UPF, a mando da equipa técnica, não permitiu que o profissional se deslocasse ao local.

David Manaca partilhou que depois de montar os canos, ouviu membros do grupo a conversarem sobre como as novas marcações iriam permitir o desenvolvimento em Naktuka, através da instalação de linhas de eletricidade, estradas, clínicas, escolas e casas, permitindo também aos militares indonésios (TNI- em indonésio) e UPF fazerem patrulha até a esses pontos.

Quando percebeu que os objetos no solo poderiam servir para delimitar o espaço territorial, o jovem partilhou a informação com outras pessoas. “Não queremos que o nosso terreno pertença à Indonésia. A população do suco de Bene Ufe vai passar fome, uma vez que a maioria das famílias depende destes terrenos”, observou David Manaca.

Raimundos Coben, outro jovem que também fez parte da equipa, explicou que foram selecionadas dez pessoas da comunidade local para acompanhar a colocação das marcações. “As autoridades não disseram nada aos habitantes do suco Bene Ufe”, enfatizou.

O rapaz afirmou estar receoso que estes novos pontos de indicação definam a fronteira entre Timor-Leste e a Indonésia, pois  a várzea, que adquiriu e ainda não utilizou, passará a pertencer ao país vizinho. No entanto, mesmo que isso se verifique, assegura que vai cultivar o terreno para sustentar a família.

Informou ainda que os jovens que falaram sobre os canos foram intimidados pela equipa técnica. “Ameaçaram prender-nos, mas não roubei dinheiro ao Estado. Sou um agricultor e não tenho medo de partilhar estas informações, porque este terreno é o sustento da minha família”, salientou.

Da equipa técnica, fizeram parte o chefe técnico e negociador, Roberto Soares, alguns militares indonésios e timorenses, membros da UPF, civis e um representante da comunidade local.

“Não quero vender os vossos terrenos, porque não recebo dinheiro por isso”, diz primeiro-ministro Xanana Gusmão

A assinatura do acordo da fronteira terrestre entre Timor-Leste e Indonésia deveria ter decorrido no passado dia 26 de janeiro, mas os Governos dos dois países acabaram por adiar. Pressões vindas da sociedade civil, partidos de oposição e da população, devido à situação em Naktuka, podem ter influenciado na questão.

O primeiro-ministro e chefe negociador da Fronteira Terrestre e Marítima de Timor-Leste, Xanana Gusmão, foi a Oé-cusse no passado dia 1 de fevereiro para dialogar com a comunidade sobre a polémica relacionada com as marcações, confirmando que os canos são, de facto, para delimitar espaços territoriais. Para facilitar a compreensão dos habitantes, esteve presente uma tradutora.

Xanana Gusmão explicou que, durante o V Governo Constitucional, quando também era primeiro-ministro, se comprometeu com o presidente da Indonésia na ocasião, Susilo Bambang Yudhoyono, a não expulsar os cidadãos do país vizinho que cultivavam alimentos em Naktuka.

O líder timorense disse ter ido a Oé-cusse em 2014 e convidado os lian nains (donos da palavra) e habitantes da região de Naktuka para fazer um ritual, no sentido de pedir autorização aos antepassados para a permanência dos agricultores indonésios na área. “Os lians nains disseram que os nossos bisavôs aceitaram e, por isso, não os podíamos expulsar [as pessoas da Indonésia], uma vez que também são gerações de Oé-cusse”, argumentou.

Xanana Gusmão afirmou que a negociação da fronteira se baseia em acordos internacionais e que Naktuka pertence a Timor-Leste, mas a população que vive em zonas fronteiriças partilha as mesmas crenças, língua e tradições.

“Consultámos a comunidade e os nossos antepassados. Todos aceitaram, então avançamos com o processo. Agora, a população não aceita, mas por mim não há problema, as futuras gerações podem resolver isso”, sublinhou, lamentando que as pessoas o condenem e achem que vendeu território timorense à Indonésia, violando a Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL).

No encontro em Naktuka no início deste mês, Xanana Gusmão disse ainda que iria enviar uma carta ao presidente da Indonésia, Joko Widodo, para cancelar o processo de delimitação da fronteira. “Não quero vender os vossos terrenos, porque não recebo dinheiro por isso. Vocês resolvem o problema com o Governo da Indonésia. Quando houver dificuldades, eu não as vou resolver. Vocês decidem”, comunicou à multidão que o ouvia, momentos antes de se retirar. A população presente demonstrou incómodo com a postura do líder timorense.

No mesmo dia, contudo, o primeiro-ministro dirigiu-se ao posto da UPF, onde se reuniu com lian nains de Naktuka e autoridades locais do suco Bene Ufe. Neste segundo encontro, Xanana Gusmão deu mais detalhes sobre o procedimento na comunidade: relatou que os canos instalados recentemente não eram marcações finais, mas funcionavam como coordenadas para ligar com GPS e definir a fronteira entre os dois países. “Os pontos de marcação instalados pelos portugueses e holandeses desapareceram por causa da ribeira, então temos de fazer isto para determinar o nosso território”, destacou.

A ribeira, segundo o líder, era o rio que servia de referência para separar os territórios, e que teve o curso alterado.

Os participantes no diálogo disseram que continuariam a confiar em Xanana Gusmão para finalizar a definição da fronteira terrestre.

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A equipa técnica de delimitação fronteira presta esclarecimentos à comunidade de Naktuka e pede que confie no primeiro-ministro: moradores demonstraram incómodo/Foto: Xanana ba Ema Hotu

“As famílias que vivem nesta zona e que cultivam hortas e várzeas são timorenses, não são indonésias”

Segundo o funcionário do Ministério da Agricultura do suco de Bene Ufe, Tomás Nekap, que trabalha desde 1996 até agora em Naktuka, nunca identificou cidadãos indonésios que cultivassem várzeas e hortas na região.

De acordo com os dados da Ministério da Agricultura do suco Bene Ufe a que o Diligente teve acesso, 96.7 hectares de várzeas são utilizados por mais de 270 famílias e beneficiam 1.574 pessoas. Outros 29 hectares de hortas são cultivados por 29 famílias e têm 144 beneficiários. Várzeas são espaços para o plantio de arroz e hortas para o cultivo de vegetais.

Tomás Nekap afirmou que os cidadãos que habitam Naktuka são timorenses do suco de Bene Ufe. “Acompanhei a apresentação do primeiro-ministro, que  disse que não podíamos provocar os cidadãos indonésios que são agricultores em Naktuka. Mas, na verdade, as famílias que vivem nesta zona e que cultivam hortas e várzeas são timorenses, não são indonésias”, enfatizou.

O funcionário considera que as novas marcações podem trazer impacto negativo para a vida da população, sobretudo na questão da segurança alimentar. “A população considera Naktuka como o seu prato. Se uma parte do terreno pertencer à Indonésia, a população vai passar fome”, alertou.

Acrescentou ainda que o terreno em Naktuka é fértil, sendo que anualmente, os agricultores colhem, em média, cerca de quatro toneladas de produtos por hectare.

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O ponto de marcação da fronteira terrestre construído pelo Governo da Indonésia para definir a província Timur-Timur (atualmente Timor-Leste) e a província de Nusa Tengara Timur (NTT) /Foto: Diligente

“Problema nacional”

O diretor da Rede ba Rai, organização da sociedade civil que luta pela defesa do direito de terreno, Pedrito Vieira, reforçou que a comunidade de Naktuka vive da agricultura e da criação de animais e, por esta razão, eventuais decisões políticas sobre o território podem trazer graves consequências para os cidadãos que lá residem. “Esperamos que o Governo de Timor-Leste não entregue as propriedades que sustentam tantas pessoas”, afirmou.

A organização avalia que as equipas de negociadores não trataram o assunto com transparência, fazendo com que todas as decisões e discussões até ao momento fossem às escondidas. “Não sabemos quais são as bases fundamentais que o Governo timorense utilizou para negociar com a Indonésia. Foi tudo feito sob um grande secretismo. Quando falamos sobre interesse nacional, não há lugar para segredos e o Governo tem a obrigação de ser honesto com os timorenses”, realçou.

A Rede ba Rai defende que a sociedade trate  o assunto como um problema nacional e não deixe a população de Oé-cusse enfrentar a questão sozinha.

Enquanto isso, Júlio Cuno, Domingos Falo, David Manaca, Raimundos Coben e demais moradores mantêm a rotina em Naktuka, que em tétum diz-se Ulun Kotu (cabeça decepada, em português). “Não vou perder um metro sequer da terra que é minha. Daqui não saio, nem que me tentem cortar a cabeça”, avisou Júlio Cuno.

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  1. A Convenção de 1904, ratificada em 1908, entre Portugal e a Holanda é explícita quanto a esta fonteira do Oe-Cusse. Diz o seu Artigo III: “O limite entre O’Kussi-Ambeno, pertencente a Portugal e as possessões neerlandesas na Ilha de Timor é formado por uma linha:
    1.º – Partindo do ponto na embocadura do Noel (rio) Besi de onde se avista sob um azimute astronómico de trinta graus e quarenta e sete minutos noroeste, o ponto culminante de Pulu (ilha) Batek, seguindo o thalweg do Noel Besi, o do Noel Niema e o do Bidjael Sunan até à sua nascente;

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