Vinte e dois anos de restauração da democracia: o caminho de Timor-Leste

População de Timor-Leste é de aproximadamente 1,3 milhões de habitantes (censo de 2022)/Foto: DR

Com o intuito de tentar perceber os avanços e os desafios do país durante este período, o Diligente conversou com representantes de diferentes entidades da sociedade civil.

Vinte e dois anos para a humanidade representa uma vida jovem e uma idade produtiva. Mas o que significa este período para um país? Para Timor-Leste, que restaurou a sua independência a 20 de maio de 2002, estes anos ainda são considerados insuficientes para aumentar os indicadores sociais da nação.

Atualmente, os setores da saúde e da educação enfrentam problemas sérios. Há falta de medicamentos e de profissionais (médicos e professores), e infraestruturas precárias. Segundo dados do Banco Mundial, apenas 30% da população em idade laboral possui emprego formal (com contrato de trabalho), ou seja, a maioria dos cidadãos apta para trabalhar está na informalidade ou desempregada.

Quanto à qualidade de vida dos timorenses, o Índice de Desenvolvimento Humano mais recente demonstra que grande parte dos cidadãos sobrevivem com 1,60 dólares por dia, muito abaixo da linha da pobreza internacional: 2,15 dólares por dia.

A sociedade civil observa que a impossibilidade de melhoria da vida dos timorenses se deve, em grande medida, à inexistência de uma continuidade de programas ou projetos de um Governo para o outro, resultando em gastos sem retorno. De acordo com a Organização Não Governamental La’o Hamutuk, desde 2005, quando se introduziu o Fundo Petrolífero, esses recursos financiaram 82% do Orçamento Geral do Estado – o que corresponde, em números absolutos, a 15 mil milhões de dólares americanos.

Apesar dos valores vultosos, quase metade da população vive na pobreza e o nanismo afeta 46,7% das crianças de 0 a 5 anos.

A produtividade do país ainda é baixa: 34,6%, segundo o relatório trimestral de 2023 sobre a segurança alimentar, do Ministério da Agricultura e Pescas. A produção agrícola anual é de 49,1 mil toneladas, enquanto o consumo é de 142 mil toneladas por ano, obrigando a importar os bens de consumo. Timor-Leste tem 80 mil hectares de áreas com potencial para produção de arroz e 200 mil hectares para o milho, mas apenas 30 a 40 mil hectares de cada são utilizados.

Por outro lado, também é possível identificar importantes avanços: a malária foi erradicada, a expetativa de vida subiu de 55,5 anos (2004) para 69 anos, a eletricidade já contempla praticamente todo o país, há mais infraestruturas nos municípios, há mais postos de saúde descentralizados, há eleições livres, há mais participação feminina no Parlamento Nacional, há grande potencial económico para ser aproveitado com a adesão à ASEAN, há mais escolas e universidades e há uma população maioritariamente jovem que – cada vez mais – se mobiliza para provocar as mudanças estruturais que a nação precisa.

Com o intuito de tentar perceber os progressos e os desafios de Timor-Leste desde a restauração da democracia, o Diligente conversou com representantes de diferentes entidades da sociedade civil, que atuam em questões socioeconómicas (La’o Hamutuk), justiça e direitos humanos (AJAR), segurança (Fundação Mahein), meio ambiente (Conservation International), infraestruturas (Luta Hamutuk) e género (Feminista Progressiva).

“O IX Governo é recente, mas os governantes têm sido governantes há muito tempo. Devem ter uma visão para mudar, não para proveito próprio. Os desafios mostram que os líderes não querem aprender com as experiências de outros governos e que não há sustentabilidade de políticas de governação”

Mariano Ferreira, pesquisador, há 15 anos, de assuntos da agricultura, terreno e economia na La’o Hamutuk/Foto: Diligente

“Depois de 22 anos de restauração da independência, noto algumas mudanças positivas: Díli parece uma grande cidade, há estradas que ligam a capital aos municípios, há mais infraestruturas e existem centrais elétricas e hospitais em Díli e nos municípios.

O que precisamos de resolver são os problemas nos setores sociais e económicos. Nos setores sociais, encontram-se os indicadores como a taxa de pobreza, o nanismo nutricional e o acesso à educação. Enquanto na economia, o desemprego, a taxa de emprego informal, insuficiência de produção agrícola, o défice orçamental, o baixo rendimento doméstico e o pouco investimento nos setores produtivos, como o turismo e a indústria.

Muitos jovens, em idade laboral, trabalham no estrangeiro como recursos humanos não qualificados. Eles ganham, mas não muito e não é sustentável. A pergunta é, se os jovens vão embora, quem vai desenvolver o país? O Estado deve pensar em formá-los, de modo a poderem ser recursos humanos qualificados e conseguirem melhores empregos tanto no país como fora.

A educação é fundamental para esta finalidade, mas vemos que a sua qualidade, principalmente das instituições de ensino públicas, é questionável. Problemas de infraestruturas, água e saneamento, falta de livros, bibliotecas, laboratórios e tecnologia, entre outros. Já o nanismo, caso não seja combatido, vai prejudicar a capacidade cognitiva e a produtividade das gerações futuras.

Ainda não usamos nem metade do potencial dos nossos terrenos agrícolas. O Governo deve investir na agricultura e aumentar a produção, porque temos mais procura do que oferta. Se conseguíssemos aproveitar metade dos terrenos disponíveis, conseguiríamos ter comida suficiente e até exportar. Isso implica também mais investimento na indústria. Em 2008, apostámos muito para aumentar a produção agrícola, comprámos bastantes tratores, mas não resultou, porque as pessoas não sabem usar e tão-pouco cuidar destes recursos. Este ano, o Governo continua a comprar tratores, já distribuiu alguns pelos municípios, mas sugiro que adeque os recursos humanos, para que a falha não se repita.

O défice orçamental continua a ser enorme por termos muitas despesas com salários, subsídios e pensões e por não haver uma diversificação económica. Por exemplo, o turismo, depois de 22 anos, nunca apresentou mudanças.

Quanto à pergunta do porquê de haver mais aspetos negativos do que positivos, mesmo que tenha sido utilizado muito dinheiro, penso que se deve a dois motivos: por termos o Fundo Petrolífero (que é uma graça) e por não haver continuidade de programas de um Governo para o outro.

Cada Governo vem com a sua política, o seu interesse e a sua ambição, mas, no fim, não vemos resultados. O Plano Estratégico de Desenvolvimento 2011-2030, por exemplo, acabou por ser apenas um sonho.

O Fundo Petrolífero pode tornar-se numa maldição, se só gastarmos sem cautela. Até os aspetos positivos que mencionei acabaram por ser um desafio. As estradas boas de Díli para os municípios são o resultado de empréstimos, que caso não sejam pagos, e se o dinheiro do Fundo acabar, serão uma ameaça para a nação.

O IX Governo é recente, mas os governantes têm sido governantes há muito tempo. Devem ter uma visão para mudar, não para proveito próprio. Os desafios mostram que os líderes não querem aprender com as experiências de outros governos e que não há sustentabilidade de políticas de governação.”

“Como sociedade civil, fundada em 2005, trabalhámos para monitorizar os projetos de infraestruturas do Estado e identificámos várias irregularidades em mais de 100 projetos, desde 2007 até 2023. Muitos projetos foram adjudicados diretamente a veteranos ou simpatizantes dos partidos que estavam no governo, ou a familiares, o que resulta em manipulação de preços e aumento de custos”

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Diretor-executivo da Luta Hamutuk, José Alves da Costa/Foto: Diligente

“Em 2007, observámos que o OGE aumentou significativamente, chegando até 1 bilião de dólares. Naquela altura, o Executivo começou a investir nas infraestruturas básicas, como água potável, estradas, escolas e hospitais. Estes programas fazem parte do projeto de desenvolvimento das infraestruturas municipais.

Como sociedade civil, fundada em 2005, trabalhámos para monitorizar os projetos de infraestruturas do Estado e identificámos várias irregularidades em mais de 100 projetos, desde 2007 até 2023. Muitos projetos foram adjudicados diretamente a veteranos ou simpatizantes dos partidos que estavam no governo, ou a familiares, o que resulta em manipulação de preços e aumento de custos.

Frequentemente, há atrasos nos pagamentos, abandono de projetos, trabalhos de companhias que não estavam em conformidade com contratos e pagamentos feitos antes de terminar as obras. Este favorecimento também se verifica no recrutamento de funcionários públicos, em que as pessoas que pertencem a determinado partido ou os familiares dos governantes são sempre selecionados sem passar por concursos públicos. Denunciámos estas irregularidades, porque violam os direitos do povo. A falta de desenvolvimento das infraestruturas prejudica os direitos humanos, afetando a economia e outros direitos básicos da população. Todos os atos irregulares cometidos pelos governantes violam os direitos dos cidadãos. A persistência desses problemas sociais decorre de políticas incorretas e má gestão dos sucessivos governos ao longo de 22 anos.”

“O despejo de famílias sem criar condições é outra prova da injustiça e discriminação e demonstra que a restauração da democracia não foi para o povo, apesar de ter sido ele que lutou para a alcançar. Depois de 22 anos de independência, a injustiça continua a existir, mas agora é praticada pelos próprios órgãos de soberania timorenses”

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O diretor-executivo Asian Justice and Rights Timor-Leste (AJAR Timor-Leste), José Luís Oliveira/Foto: Diligente

“Não é fácil dizer onde está a justiça de Timor-Leste depois de 22 anos da restauração da democracia, porque é preciso ter em consideração o esforço dos governos desde a independência. O Estado investiu nos órgãos para consolidar a nossa democracia, por isso existem os poderes judiciário, legislativo e executivo. No entanto, durante 22 anos, o Estado ainda não conseguiu assegurar a soberania do país.

A justiça é da responsabilidade de todos, mas os políticos não estão conscientes do princípio ‘todos são iguais perante a lei’, que consta no artigo 16.º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL), e continuam a promover a injustiça e a discriminação. O parlamento atribui salários, regalias e subsídios muito altos às elites, enquanto o salário mínimo dos trabalhadores ainda é miserável, há uma grande discrepância entre o povo e os órgãos do Estado. As condições dos hospitais são precárias, mas os governantes e os membros do Parlamento não se importam, porque quando precisam de cuidados de saúde para si e para os seus familiares recorrem a clínicas privadas ou deslocam-se ao estrangeiro, por isso, não apostam nos serviços públicos de saúde.

O despejo de famílias sem criar condições é outra prova da injustiça e discriminação e demonstra que a restauração da democracia não foi para o povo, apesar de ter sido ele que lutou para a alcançar. Depois de 22 anos de independência, a injustiça continua a existir, mas agora é praticada pelos próprios órgãos de soberania timorenses.

O Estado adotou os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), cujo princípio é ‘não deixar ninguém para trás’, mas, na realidade, o povo continua a ser oprimido, marginalizado e a viver na pobreza, e os ricos continuam a ser cada vez mais ricos. Depois de 22 anos de restauração da democracia, Timor-Leste ainda está longe da justiça.”

“Queria felicitar, primeiro, o povo timorense que comemora 22 anos da restauração da independência. No entanto, em pouco mais de duas décadas, segundo a Fundação Mahein, o Estado de Timor-Leste ainda não produziu recursos alternativos para sustentar o país a longo prazo. Como sabemos, estamos ainda dependentes do petróleo, uma riqueza que Deus nos deu, mas que um dia vai secar e será um grande problema para o país”

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Nelson Belo, diretor-executivo da Fundasaun Mahein/Foto: Diligente

“Queria felicitar, primeiro, o povo timorense que comemora 22 anos da restauração da independência. No entanto, em pouco mais de duas décadas, segundo a Fundação Mahein, o Estado de Timor-Leste ainda não produziu recursos alternativos para sustentar o país a longo prazo. Como sabemos, estamos ainda dependentes do petróleo, uma riqueza que Deus nos deu, mas que um dia vai secar e será um grande problema para o país.

O povo, neste momento, vive na insegurança, uma vez que o Governo usa militares e a polícia para o ameaçar, como aconteceu com os casos de despejos administrativos em vários pontos da capital. O Estado danificou casas de famílias, sem preparar condições para os lesados. É uma invasão e tortura psicológica contra o povo, que viveu momentos de medo e pânico. Na nossa perspetiva, o Governo atual é um Governo de crise, que toma medidas sem ter consideração pelos cidadãos.

Temos muitos problemas que afetam o povo: a falta de medicamentos nos hospitais e centros de saúde, escolas públicas sem condições, falta de professores, entre outros. Além disso, a malnutrição continua a aumentar, tal como o número de casamentos precoces, o que contribui para o aumento da pobreza. Muitos jovens, em idade laboral, não estudam e estão desempregados, porque não há mercado de trabalho e acabam por se envolver em conflitos. O crime organizado e a pesca ilegal continuam a acontecer. Durante duas décadas, o Estado ainda não resolveu estas questões que ameaçam a segurança nacional.

Relativamente ao setor da defesa e segurança, está a desenvolver-se, mesmo que o progresso seja lento. O Governo timorense mostra vontade de produzir recursos humanos qualificados, através da cooperação com outros países. Quanto às infraestruturas, temos as condições mínimas, mas se compararmos com outras nações da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), ainda precisamos de desenvolver este setor.

Neste momento, é necessário que o Governo desenvolva a Política de Segurança Nacional para evitar a politização do setor no futuro. Caso contrário, o desenvolvimento do setor vai depender da vontade do Primeiro-Ministro, do Ministro do Interior ou da Defesa. Precisamos de todos concentrados no Plano de Segurança Nacional para acelerar o progresso do setor.”

“O sistema patriarcal é a raiz da injustiça às mulheres. O único caminho para eliminar essa dominação é através da revolução política e revolução social”

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Ela Variana, ativista do grupo Feminista Progressiva e estudante de Direito/Foto: DR

“Durante os 22 anos da restauração da independência já existem várias entidades, como a Feminista Progressiva, Rede Feto e Alfela, para defender os direitos das mulheres e promover a sua cidadania na sociedade.

Na Feminista Progressiva, temos uma atividade intitulada ‘formação política’, que procura elevar a capacidade das mulheres de ‘ler’ a realidade social e, assim, emancipar-se. Muitas cidadãs em Timor-Leste ainda são inferiorizadas em relação ao homem e estamos a lutar para mudar isso.

O sistema patriarcal é a raiz da injustiça contra mulheres. O único caminho para eliminar essa dominação é através da revolução política e revolução social.”

“É urgente implementar as leis relacionadas ao ambiente. Os cidadãos devem ter consciência para cuidá-lo. A falta de seriedade, não só dos governos, mas de todos, contribui para a degradação contínua da natureza. A sensibilização não funciona muito neste país, as pessoas ouvem e esquecem. A educação deve ser desde criança, dentro da família e nas escolas”

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Manuel Mendes, diretor nacional da ONG Conservation International/Foto: Diligente

“O investimento no ambiente não tem sido significativo, mas vemos que, nos últimos anos, o assunto tem recebido mais atenção. Por exemplo, o Governo recruta mais guardas-florestais para mitigar a degradação ambiental. Comparando com há dez anos, agora há mais organizações que querem investir na economia azul em Timor-Leste.

A Direção Geral das Pescas pensa em controlar o turismo marinho, prevendo que até outubro o Ministro da Agricultura e Pescas assine um diploma ministerial sobre nadar com baleias, para poder ter rendimento. Também falámos em criar um parque da paz transfronteira para promover a economia azul, que espero seja realizado em breve.

A discussão sobre a economia azul já começou há muito tempo, mas ainda não há um plano-mestre que possa aprofundar as estratégias. O atual Governo quer melhorar o sistema de transportes no mar e aprimorar a criação de camarão, peixes, ervas marinhas, algas e mangue nas praias, entre outros.

No entanto, a degradação ambiental continua a acontecer. As pessoas cortam e queimam árvores, deitam lixo em qualquer lado e constroem casas em lugares de risco. Há falta de gestão de lixo. As consequências são as terras áridas, as ribeiras destroem as casas e a sedimentação e o lixo poluem o mar e estragam a biodiversidade marinha. E, em 2021, depois do ciclone Seroja, que provocou a cheia de 4 de abril, o então Governo criou um esgoto que canaliza tudo para o mar de Tasi-tolu. Isso resolve o problema, mas prejudica o habitat dos dugongos.

O Governo deve ter um plano-mestre para ordenar o país e estabelecer um sistema de tratamento de esgotos o quanto antes. Agora ainda não é visível a poluição do mar, pois não temos grandes indústrias que trabalham diretamente no mar, mas, pouco a pouco, os resíduos acumulam-se.

É urgente implementar leis ambientais. Os cidadãos devem ter consciência que é preciso cuidar do ambiente. A falta de seriedade, não só dos governos, mas de todos, contribui para a degradação contínua da natureza. A sensibilização não funciona neste país, as pessoas ouvem e esquecem. A educação deve ser desde criança, dentro da família e nas escolas.

Timor-Leste é conhecido pela sua riqueza, neste caso, do mar, mas o Governo deve preparar as condições básicas para incentivar os setores privados a investirem no turismo ambiental. Em Ataúro, por exemplo, recentemente, 12 investidores de Singapura ficaram interessados em desenvolver iniciativas turísticas lá. Mas vai ser difícil ter retorno, porque não há condições básicas de infraestruturas, como estradas e necessidades fundamentais, como saúde, higiene e acesso a água e eletricidade. É preciso resolver estes problemas, melhorar o transporte, otimizar o porto de Beloi e montar um em Akrema, para não estragar os corais.

Se não forem feitos investimentos para diversificar a economia enquanto ainda há dinheiro, não vamos conseguir investir no futuro. O papel do Governo é resolver os problemas estruturantes, não é, por exemplo, construir um hotel em Oé-cusse, que é o trabalho dos setores privados.”

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