Teodora, uma mulher com problemas mentais, morreu eletrocutada após subir a uma torre de eletricidade em Díli, sob o olhar passivo da polícia e da comunidade. A inação dos agentes pode configurar crime de omissão de auxílio, enquanto a falta de apoio do Estado expõe a vulnerabilidade de pessoas com doenças mentais em Timor-Leste.
Teodora de Jesus, de 31 anos, mãe de dois filhos e com problemas mentais, morreu eletrocutada no passado domingo, 9 de fevereiro, depois de subir a uma torre de eletricidade em Díli.
O incidente foi filmado e partilhado nas redes sociais, mostrando a inação dos agentes da Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL), que estavam no local mas não intervieram. Em vez de impedirem que a mulher subisse à torre ou tomarem medidas de segurança, os polícias limitaram-se a assistir.
Segundo o Código Penal de Timor-Leste, a conduta da polícia pode ser enquadrada como crime de omissão de auxílio, previsto no artigo 227.º, que estabelece que quem, podendo prestar assistência a alguém em perigo de vida, se abstiver de o fazer, pode ser punido com até um ano de prisão ou multa.
A jurista Núncia Pascoela, da JU,S Jurídico Social, reforça que os agentes da PNTL têm um dever adicional de proteção e que a sua inação constitui uma violação dos princípios básicos da sua profissão. “Os agentes policiais presentes no local tinham um dever específico de intervir. Não há justificação para a omissão. No entanto, como este crime é semipúblico, a abertura de um processo judicial depende de uma queixa da família da vítima.”
A legislação timorense também é clara sobre o papel da polícia em situações de emergência. O artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 44/2020, sobre o Regulamento de Disciplina da PNTL, determina que os agentes devem “enfrentar com coragem os riscos inerentes às missões que lhes sejam determinadas” e “estar sempre disponíveis para prestar auxílio em situações de catástrofe ou calamidade pública”. Neste caso, a polícia falhou nos seus deveres.
O comandante da PNTL de Díli, superintendente-chefe Orlando Gomes, reconheceu a negligência dos agentes e ordenou a abertura de um processo disciplinar interno. “Se a família apresentar queixa, o processo pode avançar enquanto decorrem o inquérito interno e as eventuais sanções disciplinares”. Além disso, o comandante anunciou que a PNTL pretende realizar formações internas para reforçar a coordenação dos agentes e evitar falhas semelhantes no futuro.
O Provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, considera que a atitude dos agentes configura negligência grave e exige uma investigação rigorosa. “Independentemente das razões, os polícias presentes são responsáveis. Existem medidas administrativas e disciplinares que devem ser aplicadas.”
Para o psicólogo Alessandro Boarccaech, a PNTL deve rever os seus protocolos de intervenção e a sua filosofia de trabalho, avaliar a eficácia da formação e a competência dos seus agentes, e colaborar com profissionais de outras áreas, como a saúde mental, para garantir respostas mais adequadas.
A Fundasaun Mahein lamentou a situação e apelou à PNTL para criar uma unidade especializada na formação dos seus agentes, garantindo que saibam como atuar em casos semelhantes.
Nelson Belo, diretor da organização, responsabilizou o Governo por não fornecer equipamentos adequados que permitam aos polícias intervir corretamente em situações que envolvam pessoas com deficiência mental.
“Agora podemos comentar e culpar-nos uns aos outros, mas isso não vai trazer a pessoa de volta. Se houver indícios de crime, o caso deve ser levado a tribunal. No entanto, o mais importante agora é pensarmos em como evitar que isto se repita”, afirmou.
Para evitar tragédias semelhantes, recomendou que o Parlamento Nacional exija mais investimento na formação dos agentes da PNTL e que o Ministério do Interior capacite a polícia para um melhor atendimento a pessoas com deficiência mental.
Recorde-se que, na passada semana, a 6 de fevereiro, ocorreu mais um caso de atuação da PNTL contra uma pessoa com problemas mentais em Timor-Leste. Desta vez, agentes da PNTL agrediram brutalmente um homem de 45 anos, identificado como LG, no município de Viqueque, depois deste ter alegadamente tentado incendiar uma viatura do Estado. O vídeo da agressão tornou-se viral, gerando indignação e críticas severas à atuação da polícia.
A Provedoria dos Direitos Humanos e Justiça (PDHJ) classificou a ação como uma grave violação dos direitos humanos e exigiu medidas contra os agentes envolvidos. O jurista Roberto Ximenes das Neves destacou que a PNTL não respeitou os princípios do Estado de Direito e abusou da sua autoridade.
Apesar da pressão pública, o comandante da PNTL de Viqueque justificou o uso da força, argumentando que o suspeito resistiu à detenção. O caso foi encaminhado ao Ministério Público, mas tanto a PDHJ como o jurista consideram que a maior violação não foi a tentativa de dano ao Estado, mas sim a violência policial contra um cidadão vulnerável.
Infraestruturas elétricas perigosas e falta de resposta da EDTL
Outro fator crítico na tragédia de Teodora foi a falta de segurança na infraestrutura elétrica. A PNTL afirmou que tentou contactar a EDTL para desligar a eletricidade, mas não obteve resposta a tempo.
O Diligente tentou contactar a Eletricidade de Timor-Leste (EDTL) para obter esclarecimentos sobre a demora na resposta ao pedido de assistência e sobre as condições de segurança da infraestrutura elétrica, mas, até ao momento, não obteve qualquer resposta.
Segundo o psicólogo Alessandro Boarccaech, este é um problema estrutural. “A precariedade da infraestrutura elétrica representa um perigo constante para a população. A EDTL tem a obrigação de criar mecanismos de resposta rápida para emergências como esta.” O psicólogo sugere que a EDTL reformule os seus protocolos de segurança, melhore a infraestrutura da rede elétrica e estabeleça um canal direto de comunicação com as autoridades policiais.
“Já pedi à família e aos serviços sociais para a levarem para Laclubar, mas nada foi feito. Uma vez, ela teve um surto e a polícia levou-a para a Pradet, mas depois deixaram-na voltar”
Testemunhas falam sobre a inação da polícia e a falta de assistência à vítima
A chefe da Aldeia de Bidau Toka Baru, Anita de Almeida, que presenciou o incidente, afirmou que tentou convencer Teodora a descer do poste de eletricidade, mas sem sucesso. “Fui falar com ela e disse que, se descesse, lhe compraria um cigarro, mas ela recusou. Continuei a chamá-la, mas não quis de maneira nenhuma. Na estrada, muitas pessoas observavam, juntamente com a polícia.”
Questionada sobre a falta de ação das autoridades e da comunidade para salvar a vítima, Anita de Almeida explicou que o medo do risco elétrico impediu qualquer intervenção. “A eletricidade já tinha mostrado falhas antes, com faíscas e apagões. Estamos na época da chuva, ninguém entende de eletricidade e todos estavam com medo, inclusive eu. Por isso, limitaram-se a observar.”
A chefe da aldeia revelou que pediu ajuda à polícia para contactar a Eletricidade de Timor-Leste (EDTL), mas a resposta demorou a chegar. Durante esse tempo, Teodora ficou cerca de 10 minutos na base do poste, sem que ninguém se aproximasse para a ajudar. Depois, subiu até ao topo, onde tocou no fio elétrico, caiu e morreu.
Sobre a inação dos polícias, Anita afirmou que “parecia que estavam com medo da eletricidade, por isso apenas observavam, assim como a comunidade. Cada um cuidava da própria vida, então ninguém se aproximou.”
Também contou que Teodora tinha um histórico de comportamento errático, andando frequentemente pelas ruas sem roupa, bloqueando estradas, destruindo objetos e tirando mercadorias dos vendedores. No entanto, por ser conhecida na comunidade, as pessoas simplesmente aceitavam e não tomavam medidas.
“Já pedi à família e aos serviços sociais para a levarem para Laclubar, mas nada foi feito. Uma vez, ela teve um surto e a polícia levou-a para a Pradet, mas depois deixaram-na voltar. Não sabemos se a Pradet tem um plano para dar assistência a estas pessoas, porque nunca nos deram explicações.”
“O Estado é que deveria pensar nas pessoas com problemas mentais. Se não pode ajudar, pelo menos deveria protegê-las”
Teodora: uma vida marcada pela exclusão
A história de Teodora é a de milhares de outros timorenses marginalizados. Vivia com a família e os seus dois filhos, mas era conhecida por andar longas distâncias a pé, de Tibar a Bidau, de forma errática. Derrubava objetos, falava sozinha e interagia de maneira imprevisível com estranhos.
Embora a família acreditasse que ela sofria de doença mental, nunca recebeu um diagnóstico oficial nem qualquer tipo de acompanhamento médico ou psicológico. A sua trajetória de vida revela o abandono sistemático das pessoas com deficiência mental em Timor-Leste.
A mãe da vítima, Amélia de Jesus, afirmou que, no domingo, por volta das 15h, Teodora ainda estava em casa, mas saiu e, às 18h, a comunidade informou que estava no topo de um poste de eletricidade.
“Ela costumava sair de casa e vaguear durante o dia, mas sempre voltava à noite. Quando começou a subir ao poste, algumas pessoas tentaram chamá-la, mas não conseguiram convencê-la a descer.”
Amélia pediu ajuda à polícia e às pessoas que assistiam, mas ninguém interveio. “Quando muitas pessoas a observavam, isso só a incentivou a continuar a subir. Mas ninguém ajudou. Depois de tocar no fio elétrico e cair, a polícia proibiu-nos de nos aproximarmos do corpo, dizendo que tinha sido ela própria a causar a sua morte.”
Apesar da negligência policial, a mãe da vítima não pretende apresentar queixa. “O Estado é que deveria pensar nas pessoas com problemas mentais. Se não pode ajudar, pelo menos deveria protegê-las.”
Amélia também revelou que a filha nunca recebeu qualquer tipo de apoio governamental para o seu tratamento. “Ela nunca recebeu dinheiro nem ajuda médica, até ao dia em que morreu.”
“Temos limitações para acolher pacientes com transtornos mentais agressivos ou abandonados. Trabalhamos com as famílias para que os mantenham em casa, mas muitas vezes, por falta de apoio, acabam por ser deixados à própria sorte”
O que diz a Pradet sobre o acompanhamento a doentes mentais?
O coordenador do programa de assistência à saúde mental da Pradet, Nicolau Vicente Ximenes, lamentou a falta de apoio às pessoas com deficiência mental, prevenindo que vivem constantemente em risco sem assistência adequada da família, da comunidade e das autoridades.
“Essas pessoas não só estão vulneráveis como também podem representar um risco para si mesmas e para os outros, especialmente quando demonstram comportamentos agressivos. É essencial que haja colaboração entre as comunidades e as famílias para garantir que tenham acesso a tratamento e medicação.”
Criada em 2002, a Pradet é uma organização local que presta assistência a pessoas com problemas mentais, oferecendo apoio por meio de reabilitação psicossocial, assistência comunitária e combate ao estigma. No entanto, Ximenes explicou que muitas pessoas confundem o papel da Pradet com o de um hospital.
“A Pradet não é um hospital. Não temos medicamentos nem uma clínica. O nosso trabalho é social, de assistência e acompanhamento. Encaminhamos pacientes para o IQ Care no Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV), mas depois precisam de regressar às suas famílias, pois não temos instalações para os manter.”
De 2002 a 2024, a Pradet assistiu 1.889 pessoas com problemas mentais em sete municípios de Timor-Leste. No entanto, Ximenes destacou que a falta de instalações adequadas é um dos maiores desafios.
“Temos limitações para acolher pacientes com transtornos mentais agressivos ou abandonados. Trabalhamos com as famílias para que os mantenham em casa, mas muitas vezes, por falta de apoio, acabam por ser deixados à própria sorte. Há necessidade de um espaço transitório onde possam receber tratamento antes da reintegração familiar.”
Atualmente, o IQ Care no HNGV tem apenas 12 camas, insuficientes para atender à demanda. A Pradet apela ao Ministério da Solidariedade Social para que crie espaços adequados para acolher estas pessoas e lhes proporcionar o tratamento necessário.
“Caso contrário, a senhora Teodora – mulher, jovem, mãe, com problemas mentais e pobre – será apenas mais uma ‘cidadã’ ou ‘dficiente mental’ numa longa lista de pessoas esquecidas, substituída pela próxima tragédia da semana seguinte”
“Uma tragédia anunciada”
Para o psicólogo Alessandro Boarccaech, a morte de Teodora não foi uma fatalidade, mas sim o resultado de um ciclo de abandono social. “Não foi um acidente inevitável. Foi uma tragédia anunciada. O que aconteceu com Teodora é consequência direta das condições precárias de vida nas comunidades periféricas, da falta de políticas públicas eficazes para a saúde mental, da precariedade da infraestrutura urbana e, acima de tudo, da forma como a sociedade encara os mais vulneráveis.”
Boarccaech alerta para o facto de que este caso não é único. Há inúmeras mortes e episódios de violência que ocorrem em silêncio, sem repercussão mediática, fruto da mesma negligência estrutural e da cultura de desresponsabilização. “Não se trata apenas de uma falha individual da polícia ou da EDTL. O problema é muito maior. Estamos a falar de um sistema que, há anos, perpetua a exclusão, ignora os mais pobres e trata os doentes mentais como invisíveis.”
O Provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, reforça que a morte de Teodora é um reflexo direto da negligência do Estado e da apatia social. “A ausência de políticas públicas eficazes para a saúde mental e a falta de conhecimento das famílias fazem com que pessoas como Teodora vivam em risco constante. Este caso não é isolado. A exclusão e a falta de cuidado são sintomas de uma sociedade que se acostumou a ignorar os mais frágeis.”
Relembra ainda que, no ano passado, uma multidão testemunhou passivamente um ato de violência contra uma mulher na rua, sem intervir.
Virgílio Guterres sublinhou a urgência de o Governo criar centros de acolhimento para pessoas com deficiência mental. Estes centros devem garantir medidas de proteção e proporcionar apoio psicológico adequado.
Defendeu ainda a necessidade de uma educação cívica contínua para recuperar os valores de solidariedade e compaixão. “Não basta rezar os dez mandamentos sem um verdadeiro sentido de solidariedade.”
Alessandro Boarccaech sublinha que a mudança precisa de ir além das infraestruturas e das punições individuais. “Este caso expõe algo muito mais profundo: a forma como a nossa sociedade se relaciona com a vulnerabilidade e a exclusão. Precisamos de uma transformação cultural, política e social para garantir que ninguém mais morra como Teodora.”
Apelou para que as mudanças não se limitem à melhoria da infraestrutura, mas incluam também uma transformação cultural, estética, linguística e de mentalidades. “Enquanto sociedade, temos o dever de questionar as normas e os valores que nos regem e de construir um futuro onde ninguém seja deixado para trás.”
Sublinhou ainda que o Código Penal prevê diversos artigos que podem ser aplicados para responsabilizar criminalmente os envolvidos. No entanto, alertou que centrar a atenção apenas nos indivíduos cria “uma cortina de fumo que esconde as verdadeiras responsabilidades do Estado”, bem como os valores sociais, as práticas culturais e as políticas públicas que continuam a alimentar “ciclos de violência, negligência e exclusão”.
O psicólogo desafia a sociedade timorense a refletir: “que tipo de país estamos a construir? As políticas do Estado garantem qualidade de vida para todos ou apenas para uma elite privilegiada? Qual a ideologia que sustenta as políticas públicas?”, acrescentando que os estigmas sociais, a exclusão e a falta de cuidado com os mais vulneráveis não são falhas isoladas, mas sintomas de um sistema excludente e profundamente adoecido.
“Mantermo-nos indignados com o descaso e com as violências sociais é fundamental. Mas indignação sem ação é estéril. Precisamos de transformar a indignação em ações concretas; só assim poderemos mudar alguma coisa”, frisou o psicólogo.
“Caso contrário, a senhora Teodora – mulher, jovem, mãe, com problemas mentais e pobre – será apenas mais uma ‘cidadã’ ou ‘deficiente mental’ numa longa lista de pessoas esquecidas, substituída pela próxima tragédia da semana seguinte.”
Que triste.
O nosso pais esta de pantanas!
Ha o dever de zelar (duty of care).