Tragédia no 20 de maio: quem matou Ronaldinho?

“Quero saber a verdade. Entrego o caso às autoridades para que encontrem a causa da morte e responsabilizem o autor” /Foto: DR

Ronaldinho Ximenes, de 23 anos, morreu após ser atingido no peito durante confrontos entre jovens no posto administrativo de Cailaco, em plena cerimónia do 23.º aniversário da Restauração da Independência. A polícia nega ter disparado contra o jovem e a autópsia poderá esclarecer a causa da morte. O caso está a ser investigado.

O jovem foi atingido no peito durante confrontos entre grupos rivais, que terão perturbado a cerimónia do 23.º aniversário da Restauração da Independência, realizada no campo da administração de Cailaco. Os disparos, alegadamente realizados por agentes da PNTL no local, causaram pânico entre os participantes, e Ronaldinho acabou por sofrer um ferimento grave. Foi evacuado pela família para o Hospital Referencial de Maliana, mas não resistiu aos ferimentos.

O cadáver foi transportado para Díli às 19h de terça-feira, acompanhado por agentes da polícia, e encontra-se no congelador do HNGV para a realização da autópsia.

Carlito Maubada, pai da vítima, relatou ao Diligente que, durante o confronto, ouviram-se tiros, mas não se sabia ao certo em que direção a polícia estava a disparar. “De repente, alguém correu até mim para dizer que o meu filho tinha sido atingido. Em choque, corri para o local e vi o meu filho caído no chão, com muito sangue a sair. Sentei-me a chorar e gritar por ajuda. A comunidade veio e levou-o para o hospital”, contou.

Durante o transporte para o Hospital de Maliana, o jovem ainda estava consciente e pediu à família que segurasse nos seus pés e que o carro andasse devagar. “Mas ele não conseguiu dizer quem o atingiu ou se foi a polícia quem disparou, porque já estava sem forças”, relatou o pai, entre lágrimas.

No hospital, foi realizada uma cirurgia de emergência, mas os médicos informaram que os pulmões de Ronaldinho estavam gravemente danificados e que ele tinha perdido muito sangue. Não conseguiram salvá-lo.

O pai garantiu que o filho não estava envolvido nos confrontos. “O meu filho não estava a lutar. Ficou no local, e foi aí que alguém o atingiu com um tiro ou uma faca. Isso é o que ainda não sabemos.”

Segundo Carlito, os jovens de Cailaco já trocavam ameaças anteriormente. “O meu filho não sabia de nada. Veio de Díli no sábado só para participar na cerimónia. Foi uma vítima inocente.” Ronaldinho era o terceiro de seis irmãos e frequentava um curso de língua coreana em Díli.

O porta-voz do Comando-Geral da PNTL, superintendente João Belo dos Reis, declarou em conferência de imprensa, realizada na quarta-feira, que é prematuro concluir que Ronaldinho foi morto por disparos da polícia. “Só o resultado da autópsia poderá determinar se a morte foi causada por arma de fogo ou outro objeto contundente.”

O porta-voz confirmou que houve disparos efetuados por agentes da polícia durante os confrontos. “A nossa equipa nacional, juntamente com a do município de Bobonaro, está no terreno a investigar. Se se comprovar que houve uso indevido de arma por parte de algum agente, será responsabilizado segundo a lei.”

Segundo informações recebidas pelo Comando-Geral da PNTL, os jovens envolvidos pertenciam a dois Grupos de Artes Marciais que, na noite do dia 19, tentaram provocar conflitos. Durante a cerimónia oficial, voltaram a confrontar-se, o que levou à intervenção da polícia. Como resultado, um jovem ficou gravemente ferido e, após ser hospitalizado, morreu.

O diretor da Direção Nacional de Investigação Criminal (DNIC) classificou o comportamento dos jovens como criminoso, sem disciplina nem espírito de nacionalismo. “Num momento solene para o país, demonstraram vandalismo.”

A PNTL criou uma equipa para investigar o caso. Carlito Maubada afirmou que inicialmente não queria autorizar a autópsia, mas decidiu cooperar após os agentes explicarem a importância do procedimento. “Quero saber a verdade. Entrego o caso às autoridades para que encontrem a causa da morte e responsabilizem o autor.”

João Belo dos Reis disse que a investigação será baseada em depoimentos de testemunhas. “Se alguém testemunhou que um agente usou arma indevidamente, serão tomadas medidas disciplinares.”

O porta-voz lembrou que os polícias têm o direito de usar armas em legítima defesa, mas só com justificação válida. “Não podemos assumir que todo uso de arma é ilegal. Se o agente estiver em risco de vida ou alguém próximo, pode usar a arma para se defender.”

O comandante-geral da PNTL, comissário-geral Henrique da Costa, ordenou o apoio da Unidade Especial da Polícia (UEP) e da DNIC à investigação conduzida em Bobonaro. A autópsia foi solicitada formalmente pela PNTL e o resultado será entregue ao Ministério Público e encaminhado ao tribunal.

Nilton Tilman, chefe do Departamento Forense do HNGV, confirmou que o corpo deu entrada no hospital às 19h de terça-feira e foi submetido à autópsia esta quarta-feira. “Os resultados podem sair em três a sete dias. Houve um adiamento técnico para garantir a fiabilidade da autópsia.”

Tilman esclareceu também que a cirurgia feita no Hospital de Maliana teve como objetivo salvar a vida do jovem, não localizar o objeto causador da lesão. “Esse tipo de análise é feita pela nossa equipa especializada.” Acrescentou que a equipa forense do HNGV utilizará todos os seus conhecimentos, métodos e esforços para contribuir para a investigação sobre a causa da morte de Ronaldinho.

O HNGV e a PNTL continuam em comunicação com o objetivo de reunir todas as evidências. “Ainda não temos uma conclusão final. Todas essas versões só poderão ser determinadas através da autópsia e da investigação no terreno”, afirmou Tilman.

Na sequência do confronto ocorrido em Cailaco, que envolveu membros de Grupos de Artes Marciais, o Primeiro-Ministro, Xanana Gusmão, anunciou que o Governo vai tomar medidas para encerrar definitivamente as atividades desses grupos em Timor-Leste.

“A comemoração dos 23 anos da restauração da independência decorreu de forma positiva, apesar de ainda persistirem episódios de violência nalguns locais. Se analisarmos bem, verificamos que os problemas continuam a ter origem nos Grupos de Artes Marciais. Por isso, o Governo irá tomar uma posição firme para encerrar estas atividades, porque estão a prejudicar os nossos jovens”, afirmou Xanana Gusmão, em declarações à imprensa, esta quinta-feira, à margem de um encontro com o Presidente da República, José Ramos-Horta, no Palácio Presidencial de Aitarak Laran.

O Chefe do Governo considerou que estes grupos são responsáveis por promover divisões entre os jovens. “Somos primos, mas ele é do PSHT e eu sou do 77. E por causa disso, deixamos de nos entender, porque já estamos divididos”, exemplificou. Acrescentou ainda que o Governo tem recebido relatórios das autoridades de segurança que apontam para múltiplos casos de agressões físicas e confrontos envolvendo estes grupos.

Em abril deste ano, o Conselho de Ministros aprovou um projeto de resolução que prolonga, até dezembro de 2025, a suspensão do ensino, aprendizagem e prática de artes marciais. A medida determina ainda o encerramento de todos os locais e instalações afetas aos grupos de artes marciais, com o objetivo de reforçar a paz social em Timor-Leste.

Recorde-se que a decisão anunciada agora por Xanana Gusmão insere-se numa política já em curso desde novembro de 2023, quando o Governo decretou a suspensão das atividades dos grupos de artes marciais. A iniciativa foi justificada como necessária para consolidar a paz social, mas tem sido alvo de críticas no Parlamento e por parte da sociedade civil, que acusa o Governo de falta de coerência e de marginalização dos jovens praticantes. A oposição pede mais transparência sobre a aplicação de fundos públicos atribuídos a estas organizações e alerta para a continuação de treinos clandestinos. Apesar de algumas organizações, como a PSHT, verem a suspensão como uma oportunidade de reorganização, várias vozes sublinham a necessidade de políticas públicas inclusivas que ofereçam alternativas reais aos jovens.

Fundação Mahein e PDHJ alertam para uso indevido de armas e ausência do Estado na prevenção de conflitos

O Provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, lamentou a morte do jovem ocorrida em Cailaco e apelou a uma investigação rigorosa por parte da Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL). “Em relação ao caso de Cailaco, só temos, para já, informação geral sobre a morte do jovem. Quero reiterar a necessidade de o Comando da PNTL realizar uma investigação profunda para apurar todos os pormenores”, afirmou.

Guterres considerou que a morte do jovem não deveria ter ocorrido, sobretudo num momento de celebração como o 20 de maio, sublinhando que o episódio revela falhas graves por parte do Estado na proteção dos cidadãos. “A morte do jovem é prova da ausência do Estado na garantia da segurança da população”, afirmou o Provedor.

Na sua análise, esta falha institucional vai além da atuação pontual das forças de segurança. “Nota-se também a incapacidade das autoridades de segurança em identificar fontes potenciais de conflito. Quando não se identificam essas fontes, não se sabe como prevenir”, criticou.

Apesar de as autoridades ainda estarem a investigar o incidente, o diretor executivo da Fundação Mahein (FM), Nelson Belo, afirmou que o uso de armas de fogo por oficiais da polícia e as sanções por disparos indevidos contra civis são regulados por uma combinação de leis nacionais, regulamentos e políticas internas da polícia, com alguma influência de padrões internacionais.

De acordo com o artigo 5.º da Lei da Estrutura Orgânica da PNTL (2004), a polícia só pode usar força, incluindo armas de fogo, para repelir agressão imediata e ilegal em legítima defesa, própria ou de terceiros, ou para superar resistência ilegítima — e apenas após esgotados todos os outros meios e após aviso prévio.

O uso de armas de fogo deve ser estritamente necessário e proporcional à ameaça, normalmente envolvendo perigo iminente de morte ou ferimentos graves.

Belo destacou ainda que o Regulamento da UNTAET n.º 2001/5, sobre Armas de Fogo e Munições, estabelece um controlo rigoroso sobre a posse e uso de armas, com penalizações que incluem multas e até 20 anos de prisão por uso ilegal com perturbação da ordem pública.

Os oficiais da polícia devem cumprir requisitos de licenciamento e formação para o uso de armas de fogo, conforme previsto no Projeto de Lei de Armas de 2008. Este estipula que os agentes devem ser competentes, estar em condições médicas adequadas e receber formação da PNTL.

Nelson Belo reconheceu que existem sanções administrativas dentro da PNTL, incluindo suspensão, penalizações disciplinares ou demissão. Contudo, “a aplicação destas regras tem sido inconsistente, com casos de agentes armados fora do regulamento, o que contribui para incidentes violentos.”

“Os casos anteriores, como o tiroteio em Lahane (2021) e o assassinato de jovens em Kulu-Hun (2018), evidenciam falhas sistémicas na disciplina policial, uso indevido de armas e aplicação frágil das normas existentes.”

Um dos principais problemas, segundo o diretor da FM, é a ausência de um órgão independente de supervisão da polícia. “Falta transparência e confiança pública nas investigações.”

A FM apela a reformas estruturais na PNTL, incluindo “melhoria da formação sobre o uso da força e de armas de fogo, aplicação rigorosa dos regulamentos e criação de mecanismos independentes para investigar e punir condutas impróprias dos agentes.”

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