Primeiro-ministro esbofeteou um assessor durante uma reunião pública em Oé-Cusse. Para juristas, trata-se de um crime. Para a vítima, foi um gesto paternal. Caso desperta posições divergentes, reações institucionais e análise sobre os códigos sociais que perpetuam a violência e o autoritarismo em Timor-Leste.
“Levanta-te!”, gritou o primeiro-ministro do IX Governo Constitucional de Timor-Leste, Kay Rala Xanana Gusmão, durante o encontro com a população de Oé-Cusse, no dia 29 de abril de 2025. A ordem foi dirigida ao assessor do presidente da Região Administrativa Especial de Oé-Cusse -Ambeno (RAEOA), Agostinho Caet. O assessor obedeceu, o povo aplaudiu. Xanana não gostou: “Oi! Não batam palmas! Quem bater palmas, venha aqui à frente!”. A autoridade impôs-se, e o silêncio caiu sobre os presentes.
Seguiram-se palavras duras e gestos ainda mais pesados. “Olhem para ele! Se calhar é inteligente. Mas é um grande preguiçoso!”, disse o primeiro-ministro, antes de desferir três estaladas na cabeça do assessor. “Não pensa em Oé-Cusse!”, exclamou, dando-lhe uma palmada na testa. “Só pensa no seu corpo!”, concluiu, com nova palmada. O assessor manteve-se de pé, com a cabeça baixa.
No vídeo, Xanana justifica as palmadas como uma forma de alertar os líderes de Oé-Cusse para a necessidade de trabalhar pelo desenvolvimento das zonas rurais. Sublinhou que o progresso está concentrado apenas em Pante Makassar, zona integrada na ZEESM, enquanto localidades como Passabe — onde decorreu o encontro — continuam sem investimento nem atenção.
Segundo os jornalistas no terreno, Xanana não deu palmadas apenas ao assessor da RAEOA, mas também a outras pessoas de Oé-Cusse que exercem cargos no Governo e no Parlamento Nacional, incluindo um deputado em funções da bancada do CNRT.
Xanana continuou a repreensão, invocando o passado de luta: “Dizem que sofreram durante 24 anos. Agora têm de trabalhar! Foi por isso que viemos cá hoje.” Ordenou então que o assessor se sentasse, utilizando uma frase e um gesto que associou ao modo como a sua mãe o corrigia. A cena, em vez de ser encerrada, foi apontada às crianças como exemplo a seguir. “Aprendam com isto”, recomendou o primeiro-ministro, transformando a agressão num episódio pedagógico.
A ação gerou reações imediatas e divididas. O Provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, considerou que se tratou de um ato de violência física, ofensivo à sensibilidade pública, especialmente perante as crianças, mulheres e adultos presentes. Também o jurista Sérgio Quintas classificou o gesto como crime de ofensa à integridade física simples, previsto no artigo 145.º do Código Penal. “É um crime semipúblico, o que significa que só pode haver processo se houver queixa da vítima. Encorajo o cidadão agredido a apresentar queixa à polícia ou ao Ministério Público, porque o corpo é um bem jurídico protegido”, declarou.
No entanto, o próprio assessor recusou essa leitura. Agostinho Caet afirmou que não considera o gesto como um crime, mas como um incentivo à melhoria. “Para mim, foi como um pai a ensinar-nos a trabalhar pelo povo. Este país foi comprado com sofrimento, suor, ossos e sangue do povo”, afirmou, demonstrando sentir-se lisonjeado por ter sido o alvo da repreensão. “Não senti nada, estou bem. Quem acompanha o primeiro-ministro sabe que esse tipo de atitude já é habitual.” Acrescentou ainda: “Sinto-me orgulhoso e feliz por ter sido corrigido e incentivado.”
Questionado sobre a possibilidade de outros líderes seguirem o mesmo exemplo, Caet não quis tomar posição clara. “Não posso justificar que este ato é o mais correto, mas isso depende de cada líder na forma como ensina os seus subordinados. A melhor forma é relativa.”
A agressão como linguagem simbólica
Para o psicólogo e sociólogo Alessandro Boarccaech, o episódio não é apenas um caso de agressão isolado, mas uma manifestação de um padrão cultural mais profundo. “O que se passou em Oé-Cusse pode ser entendido como uma performance sociocultural, que utiliza uma linguagem repleta de símbolos verbais, visuais e corporais, associados a lógicas ainda muito presentes na sociedade timorense.” Segundo o especialista, neste tipo de lógica mistura-se autoridade com autoritarismo, respeito com submissão, força com agressividade, educação com punição e o ato de cuidar com o de controlar.
Boarccaech defende que este tipo de performance funciona precisamente porque dialoga com crenças e práticas quotidianas. “Quando observamos as relações entre pais e filhos, professores e alunos, líderes e subordinados, percebemos que as dinâmicas de poder se reproduzem de forma semelhante. Quem contesta estas práticas corre o risco de ser punido ou excluído.”
No seu entender, a questão não se resolve apenas no plano jurídico ou moral. “É necessário ir além da análise sobre se tais práticas são certas ou erradas. É preciso compreender o contexto socio-histórico que as sustenta, identificar as ideologias e os valores que moldam a forma como nos relacionamos. Caso contrário, essas práticas continuarão a ser justificadas e reproduzidas.”
Silêncios institucionais e normalização da violência
Apesar da gravidade do episódio e da ampla difusão do vídeo nas redes sociais, a Presidência do Conselho de Ministros recusou prestar declarações ao Diligente, alegando indisponibilidade de agenda. O Parlamento Nacional, através da presidente Maria Fernanda Lay, arquivou o pedido de entrevista, justificando que se trata de um assunto que compete a outro órgão de soberania.
Ainda assim, houve reação no seio da Assembleia. A deputada Maria Angelita Sarmento, do Partido da Libertação Popular (PLP), considerou que o episódio não constitui um bom exemplo em termos de respeito mútuo entre líder e subordinado. “Mesmo que as pessoas, principalmente os militantes do CNRT, vejam isso como normal, esta atitude constitui uma agressão física simples perante o público.” Para a parlamentar, é importante alertar os mais jovens para que não herdem comportamentos negativos. “O Parlamento pode fazer uma censura política, mas isso depende da apresentação de queixa por parte da vítima. Infelizmente, a sociedade ainda tem uma mentalidade passiva para falar contra estas atitudes e, pior, considera-as normais.”
O provedor Virgílio Guterres recorda que este não é o primeiro episódio semelhante envolvendo Xanana Gusmão. Durante a pandemia da Covid-19, o líder político deu uma bofetada pública a uma mulher. Mais recentemente, gritou com uma jornalista que lhe fez uma pergunta sobre a transferência de pacientes para Atambua. Em outro episódio, tocou no corpo de uma jornalista durante uma transmissão ao vivo. A repórter acabou por pedir desculpa publicamente, explicando que, apesar de no vídeo ser evidente que a palmada foi nas nádegas, o toque foi na perna e que se tratou de um mal-entendido.
De acordo com o Código de conduta do Governo, publicado em março de 2024, os membros do Executivo devem adotar um “comportamento digno e idóneo” e tratar os cidadãos “com respeito, diligência e humildade” (artigo 10.º). Os artigos 3.º, 8.º, 13.º e 25.º reforçam as obrigações de integridade, prudência e exemplaridade.
Para o jurista Sérgio Quintas, a violação desses princípios é evidente. “Ética e moralmente, não é correto agredir pessoas, seja em público ou em privado. Noutros países, o mau comportamento de um chefe de Governo pode levar a um impeachment. Aqui, as pessoas veneram Xanana Gusmão como se fosse Deus.” Apelou à sociedade: “Critiquem os atos impróprios para que possam ser corrigidos. Esta terra não pertence a uma só pessoa, mas a todos os timorenses. Não tenham medo!”
O jurista alertou ainda para o perigo de a vítima não se reconhecer como tal. “É preocupante. Quando alguém se sente orgulhoso por ter sido agredido, estamos perante uma inversão de valores. Mas isso também é reflexo da forma como o poder é legitimado culturalmente.”
Até à data de publicação desta reportagem, o primeiro-ministro não respondeu ao pedido de entrevista.
Atualizada: 07/05/2025
Quanto mais me bates mais eu gosto de ti.
Os deuses devem estar malucos!
É traição da sua própria mente só por ter medo de dizer a verdade, ou por ter medo de perder posição. Num estado de direito democrático é uma pura violação ou crime. É neocolonizacao da dignidade humana.