Deputados e organizações de direitos humanos apelam ao Presidente da República para rejeitar indultos a condenados por crimes de violação e abuso sexual de menores. Consideram que tais perdões podem reabrir feridas nas vítimas e comprometer a confiança no sistema judicial. O tema gerou um intenso debate sobre justiça e proteção de crianças.
No dia 3 de dezembro, o jornal Independente publicou uma notícia segundo a qual que o ex-padre norte-americano Richard Daschbach, condenado por abuso sexual de crianças, tinha sido indultado pelo Presidente da República, José Ramos-Horta. Apesar de o próprio jornal ter desmentido a informação no dia seguinte, a notícia gerou uma onda de reações entre deputados e membros da sociedade civil, reavivando o debate sobre a concessão de indultos a condenados por crimes graves, em particular aqueles relacionados com abuso sexual de menores.
Em 2021, o coletivo de juízes condenou o ex-padre a penas que, no total, somavam mais de 37 anos de prisão, sendo o cúmulo jurídico fixado em uma pena única de 12 anos. Começou a cumprir pena em Becora a 22 de dezembro do mesmo ano e foi transferido para a prisão de Gleno em fevereiro de 2023.
O Vaticano, por decisão do Papa Francisco, expulsou Richard Daschbach do sacerdócio após este ter confessado ter abusado sexualmente de várias menores que estavam ao seu cuidado no orfanato que dirigia, Topu Honis, em Oé-Cusse.
Em Timor-Leste, nas comemorações de datas importantes, o Governo envia ao Presidente da República listas de reclusos elegíveis para indulto ou comutação de pena. De acordo com o artigo 5.º da Lei N.º 20/2023, os diretores dos estabelecimentos prisionaistêm legitimidadepara propor reclusos para estas medidas de clemência.
Cristiano Salsinha, diretor do estabelecimento prisional de Gleno, afirmou ao Diligente que, em novembro, submeteu uma lista de dez reclusos ao Presidente da República, incluindo o ex-padre Richard Daschbach.
O diretor explicou que, dos dez reclusos na lista, três foram condenados por violações e abusos sexuais de menores, enquanto os outros sete cumprem penas por homicídios graves. Acrescentou ainda que estes reclusos “são idosos e sofrem frequentemente de problemas de saúde”.
Segundo ele, o gabinete jurídico do Presidente da República entrevistou os reclusos na prisão de Gleno, incluindo Daschbach. Depois disso, “fomos orientados a escrever uma carta propondo também o ex-padre. Nós sabemos que isso não deveria acontecer, mas foram orientações superiores”, confessou.
Salsinha destacou que não tem intenção de favorecer condenados por crimes de violação ou abuso sexual, mas afirmou que cabe ao Presidente da República tomar a decisão final. “Por questões de saúde e vulnerabilidade, encaminhámos os nomes, mas a decisão é da exclusiva competência do Presidente”, disse.
O indulto é uma prerrogativa do Presidente da República, conforme o artigo 85.º da Constituição. Embora ouça o Governo, a decisão não é vinculativa. Segundo o Decreto Presidencial n.º 121/2024, José Ramos-Horta concedeu, no âmbito do 49.º aniversário da proclamação da independência de Timor-Leste, indultos a três reclusos: Arica da Silva, Ana da Silva Ximenes e Casimiro de Jesus Santos.
Recorde-se que há cerca de um ano, a decisão de José Ramos-Horta de conceder indulto às ex-governantes Emília Pires e Madalena Hanjam, condenadas por participação económica em negócio, gerou forte polémica e acusações de imoralidade. A concessão baseou-se numa nova Lei do Indulto, promulgada a 12 de dezembro de 2023, que eliminou critérios como o cumprimento de um terço da pena e o bom comportamento na prisão. Juristas e ativistas acusaram o Parlamento Nacional de ter alterado a lei com o objetivo de beneficiar aliados políticos e alertaram para o impacto desta medida no enfraquecimento do sistema judicial e na promoção da corrupção no país.
Entre as críticas, destacou-se o apoio explícito do Primeiro-Ministro Xanana Gusmão a Emília Pires, que havia fugido à justiça e cuja condenação foi considerada injusta por Ramos-Horta. O Presidente justificou o indulto com razões humanitárias, referindo-se à doença da ex-ministra, e com a sua contribuição histórica para a independência e gestão financeira do país.
No entanto, ativistas e a oposição acusaram o Governo e o Parlamento de conluio, considerando a decisão um golpe contra a justiça e uma legitimação da impunidade para as elites políticas, apelando à revisão da nova lei de indulto no Tribunal de Recurso.
O atual Primeiro-Ministro, Xanana Gusmão, visitou o ex-padre na prisão de Becora, por ocasião do seu 86.º aniversário, em janeiro do ano passado, gerando forte polémica, especialmente após a publicação de fotografias do encontro na página de Facebook “Xanana ba ema hotu”. Esta atitude foi amplamente criticada por ativistas e cidadãos, que a consideram desrespeitosa para com as vítimas.
O Provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, classificou a visita como “uma cena triste”, alertando para a mensagem errada que pode transmitir à sociedade e às vítimas.
O psicólogo Elvis do Rosário destacou que ações como aquela podem reabrir as feridas das vítimas, enfraquecendo a sua confiança nas instituições. Não foi a primeira vez que Xanana visitou Daschbach, tendo já estado com ele em 2021, durante o período em que cumpria prisão domiciliária, o que também gerou controvérsia na altura.
Reações e apelos
O Parlamento Nacional e a Associação HAK (Associação dos Direitos Humanos) apelaram ao Presidente da República para que, no futuro, rejeite propostas de indulto a condenados por crimes de violação e abuso sexual de menores, alertando que tais atos podem reabrir feridas e traumas nas vítimas e suas famílias. Argumentaram ainda que o indulto a estes criminosos compromete a confiança da sociedade no sistema judicial timorense.
A deputada Nurima Alkatiri Ribeiro, da bancada da FRETILIN, descreveu o abuso sexual de menores como “um crime hediondo que destrói a inocência das vítimas e deixa cicatrizes permanentes”. Acrescentou que conceder indulto a condenados por estes crimes “desvaloriza o sofrimento das sobreviventes e compromete a responsabilização”. Nurima apelou para que o Presidente não perdoe crimes graves e que reforce o compromisso com a justiça e a proteção das crianças.
“Se esses indultos forem concedidos, representarão um novo trauma para as sobreviventes e criarão um risco significativo de que outras vítimas, que já enfrentaram esse sofrimento, não tenham coragem de denunciar novamente”, afirmou Nurima Alkatiri durante uma sessão plenária na passada terça-feira, 3 de dezembro.
Nurima sublinhou que a justiça é um dos pilares fundamentais da democracia, destacando a importância de que esta seja imparcial, consistente e firme. Acrescentou que as pessoas condenadas por abuso sexual passaram por processos legais justos e que as sentenças aplicadas refletem a gravidade dos crimes cometidos.
“Conceder indultos a essas pessoas constitui também um grave prejuízo ao poder judicial, enfraquecendo a confiança no Estado de Direito e estabelecendo um precedente perigoso, no qual até os crimes mais graves podem ser perdoados. Além disso, esses indultos podem colocar em risco a segurança pública”, alertou a deputada.
Nurima reforçou que o Estado tem o dever moral e legal de garantir que nenhuma criança permaneça desprotegida. “Esperamos que o Presidente da República mantenha uma posição firme na decisão de que crimes graves não devem ser abrangidos por indultos”, acrescentou. Destacou ainda que as decisões de José Ramos-Horta serão determinantes para o seu legado e servirão como uma bússola moral para o país e para a sociedade.
De acordo com dados do Tribunal Distrital de Díli, só na capital do país foram registados 19 casos de abuso sexual de menores em 2020. Este número duplicou no ano seguinte. Até novembro deste ano, foram contabilizados 17 casos.
Face a esta realidade, a deputada Nurima Alkatiri apelou ao Presidente da República para que rejeite sistematicamente propostas de indulto a indivíduos condenados por abuso sexual, especialmente contra crianças. “Não podemos permitir que o sofrimento das sobreviventes e a coragem que demonstraram ao denunciar os seus casos sejam em vão. Apelo ao Presidente da República para que mantenha um compromisso firme com a justiça no país, protegendo as nossas crianças e todas as sobreviventes”, afirmou Nurima.
A deputada também instou o Governo a reforçar o seu compromisso na luta contra a violência e o abuso sexual, implementando medidas concretas em instituições públicas e privadas, comunidades, escolas, universidades e em todas as esferas da sociedade timorense.
O Fórum de Comunicação para Mulheres de Timor-Leste (FOKUPERS) registou, este ano, 215 casos de violência baseada no género. No mês passado, houve um aumento alarmante nos casos de violência contra mulheres e crianças, incluindo violência sexual, abuso psicológico e agressões físicas.
Durante o mesmo debate, o deputado Luís Roberto da Silva, do KHUNTO, reconheceu que a comutação de penas é um direito exclusivo do Presidente da República. Contudo, sublinhou a necessidade de uma avaliação criteriosa, em colaboração com o sistema judicial e os guardas prisionais, para determinar quem merece receber indulto. “Conceder perdão deve ser um ato baseado no mandato constitucional. No entanto, é lamentável que condenados por abuso sexual de crianças possam ser indultados, pois isso traz novo sofrimento às vítimas e enfraquece a justiça em Timor-Leste”, afirmou.
O vice-diretor da Associação HAK, Antoninho de Lima, explicou que a alteração da lei sobre comutação de penas e indultos pode ampliar a possibilidade de o Presidente da República conceder indultos. Porém, defendeu que em casos graves, como violação e abuso sexual de menores, não deve haver perdão. “Os condenados por crimes de violação e abuso sexual devem cumprir integralmente a pena a que foram sentenciados. Apesar de o Presidente ter o direito de conceder perdão, apelamos para que essa decisão seja tomada com extremo cuidado, considerando o impacto nas vítimas”, reforçou.
Antoninho de Lima também apelou aos diretores dos estabelecimentos prisionais para que não incluam condenados por violação ou abuso sexual de menores nas listas de indulto ou comutação de pena. “É verdade que alguns reclusos sofrem de doenças graves, e, por razões humanitárias, esses casos podem ser considerados. Contudo, é necessário avaliar e ponderar cuidadosamente cada situação”, acrescentou.
Segundo um estudo da Associação HAK, os crimes mais registados são os de violação sexual, com um total de 245 casos, seguidos por 219 homicídios, 45 casos de falsificação de documentos, 26 de dano com violência, 12 de furto agravado, 10 de violência doméstica e outros sete casos de diferentes tipos de crimes.
O relatório da HAK revelou ainda que, até março de 2023, as prisões de Becora, Gleno e Suai tinham uma população prisional de 625 reclusos, dos quais 169 estavam em prisão preventiva e 456 cumpriam penas definitivas.
Onde ha fumo, ha fogo!
Fez-me lembrar o teatro de marionetes, onde os bonecos sao puxados por fios.