Na pele de Carlos Pereira: o homem que transforma pneus em sustento e independência

Carlos Exposto Pereira com as suas bacias de pneus reciclados em Audian/Foto: Diligente

Com 73 anos, Carlos Exposto Pereira carrega nas costas seis bacias feitas de pneus reciclados e percorre as ruas de Díli, determinado a sustentar a sua família com o fruto do seu próprio trabalho. Para ele, a vida não depende da caridade ou da sorte, mas sim da confiança nas próprias mãos. 

Numa manhã de quinta-feira, sob um céu nublado e com as ruas de Díli já agitadas pelo movimento das pessoas e dos transportes, encontramos Carlos a caminhar pela estrada de Audian. No ombro, cinco bacias de pneus reciclados. Na cabeça, um chapéu para se proteger do sol. Nos pés, chinelos gastos pelo tempo e pelos quilómetros percorridos. A idade avançada não o impede de seguir em frente. Com ânimo, coragem e persistência, ele continua a sua rotina diária, vendendo os seus produtos para garantir o sustento da família e pagar os estudos dos filhos.

Há mais de 46 anos, Carlos dedica-se à produção e venda de bacias feitas a partir de pneus reutilizados. O que para muitos pode parecer apenas um trabalho comum, tem um impacto ambiental significativo: ele dá uma nova vida a pneus que, de outra forma, se tornariam lixo e poluição nas ruas da cidade.

Residente em Bidau Massaur, Carlos sai de casa todos os dias às oito da manhã para vender as suas bacias pelas ruas de Díli. Se num bairro ninguém compra, continua a caminhar até outro, sem medir esforços nem contar os quilómetros percorridos.  “Tenho de ir até Tasi Tolu e Tibar. Se ficar sentado em casa, ninguém nos dá dinheiro”, diz com um sorriso no rosto.

Os pneus que utiliza vêm de uma oficina em Becora, onde os seus amigos lhe oferecem cerca de 15 unidades por mês. Em troca, Carlos costuma oferecer-lhes uma ou duas bacias como agradecimento. O resto segue para venda, e todo o trabalho de corte, modelagem e montagem é feito por ele, sozinho, em casa.

Numa boa semana, consegue produzir até cinco bacias por dia, mas isso depende da sua disposição e da precisão necessária no corte. Quando o cansaço aperta, reduz a produção para duas. Afinal, cada bacia exige um trabalho minucioso: cortar, virar o pneu do avesso, modelar com uma faca, fixar com pregos e reforçar a estrutura com um aro de ferro. O resultado é um produto resistente e duradouro, útil para diversas funções no quotidiano das famílias timorenses.   

A arte de transformar pneus em objetos úteis não foi inventada por Carlos. Ele aprendeu o ofício há muitos anos com um militar indonésio que trabalhava com reciclagem. “No início, apenas observava. Depois, ele começou a ensinar-me e disse que, se quisesse ganhar a vida, devia procurar pneus velhos e transformá-los. Esse trabalho ninguém manda ninguém fazer, cada um tem de ter a sua própria iniciativa”, recorda.

Desde então, nunca mais parou. O tempo passou, os desafios aumentaram, mas Carlos continua firme.

No seu bairro, outrora havia três pessoas que faziam este trabalho. Hoje, ele é o único que resta. Os outros já faleceram, e ninguém mais quis aprender a arte de transformar pneus velhos em bacias novas.

As suas bacias são vendidas a preços acessíveis: 25 dólares as grandes, 10 dólares as médias e 8 dólares as pequenas. Todos os dias, sai de casa carregando seis bacias – duas grandes e quatro pequenas – e percorre a cidade à procura de compradores. Nem sempre a venda corre bem, mas Carlos não se deixa abater.

“Sinto cansaço e, às vezes, dores fortes nos ombros, mas o dinheiro obriga-me a caminhar. Se ficarmos em casa, quem virá ajudar-nos? Hoje em dia, até para alguém dar um dólar, precisa pensar muito. Quem realmente se preocupa connosco somos nós mesmos.”  Nos melhores dias, ganha até 25 dólares. Noutros, volta para casa de mãos vazias.

Com a voz serena e um olhar de quem já viu e viveu muito, Carlos explica que o segredo para ultrapassar as dificuldades da vida é simples: paciência.  “Muitas vezes, queria descansar, mas a necessidade obriga-me a trabalhar de manhã até à noite. Temos de nos movimentar para manter o sangue a circular. Se ficarmos sempre parados, o corpo adoece”, diz, rindo-se.

A venda de bacias de pneus é a única fonte de rendimento da família. Um dos seus filhos estuda na Indonésia, e todos os meses Carlos envia-lhe 100 dólares. Outros filhos frequentam um curso de língua coreana para tentar emigrar e trabalhar na Coreia do Sul.

O idoso lamenta a falta de oportunidades de emprego em Timor-Leste, que obriga muitos jovens a procurar uma vida melhor no estrangeiro. Segundo dados de 2021 da ONG La’o Hamutuk, o desemprego atinge 27% da população ativa.

“A educação é essencial. Só ela pode mudar a vida das pessoas. Por isso, como pais, temos de fazer o nosso melhor para incentivar os nossos filhos a estudar e procurar um futuro melhor”, afirma com convicção.

Quem percorre as ruas da capital já se cruzou, certamente, com Carlos Pereira. A sua silhueta curvada pelo peso das bacias tornou-se uma imagem familiar. Se num bairro as pessoas não compram, segue para outro. A vida não lhe permite desistir.  “É assim que buscamos a vida. Se não nos esforçarmos, ficamos sem dinheiro e passamos fome”, diz.

Todos os dias, ao sair de casa, recebe sempre o incentivo da esposa, que lhe dá coragem para continuar. Apesar das dificuldades, nunca perdeu o ânimo.

Curiosamente, Carlos nunca recebeu qualquer pensão para idosos. Não porque não tenha direito, mas porque nunca tratou da documentação.  “Não procuro receber a pensão. Apenas faço o meu trabalho, enquanto ainda posso. Se quiserem dar-me, que deem. O chefe do suco já falou comigo sobre isso, mas não liguei”, conta com indiferença.

Em Timor-Leste, considera-se que a terceira idade começa aos 60 anos. De acordo com os dados do censo de 2022, o país tem uma população de 1,3 milhões de habitantes, dos quais 75 mil têm 60 anos ou mais, sendo 34,8 mil homens e 40,2 mil mulheres.

Carlos Pereira é o retrato vivo da resiliência e da independência. Não espera que ninguém o ajude, nem conta com o apoio do Estado. Acredita apenas no seu trabalho e nas suas próprias mãos.

Enquanto as forças lhe permitirem, continuará a caminhar pelas ruas de Díli, carregando as suas bacias e o peso de uma vida inteira dedicada ao esforço e à dignidade do trabalho.

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