Machismo nas músicas timorenses: quando a arte diverte uns, mas ofende outros

"Os jovens escrevem músicas patriarcais não por paixão, mas por lucro. Criam para um mercado que exige conteúdo que rebaixa e explora as mulheres"/Foto: DR

Movimentos de defesa dos direitos humanos e artistas veteranos condenam novos músicos timorenses que retratam as mulheres como objetos sexuais nas suas canções. Há quem já fale em boicotar artistas que não respeitem a dignidade feminina.

“Martinha… Coitada, tu não és bonita. O teu rosto parece um macaco. As tuas pernas escuras parecem as de um javali. O teu umbigo mesclado parece uma pitão. O teu rosto lembra a Sika falecida (matebian), mas ainda queres usar roupas curtas.”  — Cesário Sousa

“Não tenhas medo de desligar a luz, a alma sai quando eu entrar. Baby, ohh… Mamã, esta noite quem manda sou eu. Mamachita, corpo violão, tremendo, abusada, gosta de provocar na discoteca. Mamachita esqueceu o namorado e deixou tudo para trás esta noite. Agora quem controla sou eu. Eu é que te controlo. Deves ter cuidado, porque esta noite tenho de te comer às escondidas.”  — Paulino Vieira do Carmo

Estas são apenas algumas das letras de músicas em Timor-Leste que muitos consideram “bonitas”, mas que, na realidade, desrespeitam, difamam e discriminam as mulheres. O tema ganhou força depois de um concerto realizado numa universidade privada em Díli, onde um jovem artista subiu ao palco e cantou uma música considerada ofensiva para os direitos e liberdades das mulheres.

Ativistas e artistas veteranos defendem que canções com conteúdos discriminatórios não devem ser apresentadas em concertos, pois não contribuem para a educação da sociedade. Apontam a falta de sensibilidade artística e o forte peso do sistema patriarcal como raízes para a criação de músicas com tendências machistas.

“As letras reforçam o patriarcado”

Emília Moniz, do movimento Feminista Revolucionária, afirma que retratar as mulheres como objetos sexuais nas músicas não é uma novidade — acontece em muitos países —, mas isso não justifica nem normaliza a prática. “Todos vivemos num sistema patriarcal que continua muito forte”, explica.

Segundo Emília, a indústria musical, dominada por homens, reforça nas suas letras valores patriarcais e papéis de género tradicionais, nos quais as mulheres são colocadas numa posição submissa. “Não é só em Timor. No mundo inteiro, os temas das músicas ainda são decididos por homens, e muitas vezes refletem esse olhar desigual.”

Acrescenta que artistas do passado também contribuíram para este problema: “Mesmo com letras suaves, culpavam as mulheres por traições e sofrimentos amorosos. A mulher estava sempre em posição inferior.”

Na era da independência, muitos jovens artistas timorenses foram influenciados por músicas internacionais que sexualizam as mulheres. Emília lamenta a falta de conhecimento sobre os impactos do patriarcado: “Os jovens escrevem músicas patriarcais não por paixão, mas por lucro. Criam para um mercado que exige conteúdo que rebaixa e explora as mulheres.”

A ativista também sublinha que músicas com mensagens feministas não se tornam virais, pois os homens não as consideram interessantes. “A sexualização nas letras é uma forma de violência de género e assédio”, alerta a jovem ativista Imaculada Gouveia Leite. Segundo ela, os novos artistas não têm conhecimento sobre os direitos humanos e não entendem que a música pode (e deve) educar.

“Hoje fazem músicas que julgam e ridicularizam as mulheres”

Fiche Piedade, do movimento Rosas Mean, recorda que, no passado, a música foi uma ferramenta para lutar contra opressões. Agora, diz, há letras que pressionam e diminuem as mulheres, até abordando temas íntimos como a menstruação. “Não percebo qual é o objetivo disso.”

Fiche sublinha que a música deve também ser um meio de consciência social: “Hoje, muitos artistas julgam as mulheres e usam a tecnologia para ganhar fama fácil, sem pensar nas consequências.”

Sobre as letras românticas, Fiche afirma que muitas culpam sempre as mulheres, quando, na realidade, elas são vítimas de relações enganosas. Lamenta ainda a normalização de letras que tratam mulheres embriagadas como presas fáceis. “Mesmo sendo tua namorada, se ela estiver bêbada, deves respeitá-la. Por que fazer disso uma música?”

Defende o boicote a artistas com mensagens sexistas e pede mais debates sobre feminismo. “As letras que incentivam o assédio não deviam ser normalizadas. Uma criança pode ouvir, não entender na hora, mas vai reproduzir esse comportamento ao longo da vida.”

“As músicas estão a destruir a dignidade das mulheres”

Jacinto Moreira, jovem consumidor de música, critica a superficialidade dos novos artistas. Defende que a música deve ser poética e provocar reflexão. “Hoje vivemos num tempo em que se destrói a moral absoluta. As músicas que tratam as mulheres como objetos mudam a forma como a sociedade as vê.”

Jacinto apela a mais responsabilidade: “Num país democrático, todos têm o direito de se expressar, mas isso deve ser feito com respeito. Se a sociedade não agir, continuaremos a normalizar algo que não devia ser normal.”

Fiche acrescenta que a falta de literacia é um dos motivos por trás da discriminação. “Não compreendem a essência dos direitos humanos. As músicas machistas tornam-se virais, mas não deviam nem ser chamadas de arte.”

Recomenda que os jovens artistas aprendam com bandas como Klamar, Otopsi e Calvari, que usam a música como ferramenta de pensamento crítico. “Não queremos músicas que são como um calor que arrefece logo. Queremos letras com conteúdo.”

O que diz a associação de músicos?

Paulino Pacheco Magno, vice-presidente da ALMAMOR, lembra que os artistas têm o dever moral de educar a sociedade. “Não aceitamos artistas que desrespeitem as mulheres. Comunicamos aos organizadores de eventos para que não lhes deem palco.”

Contudo, reconhece que, com a era digital, qualquer pessoa pode tornar-se artista e alcançar popularidade, sem haver garantias de qualidade ou responsabilidade. A ALMAMOR promete organizar um seminário para ouvir os músicos e delinear o que se espera da arte musical em Timor-Leste.

Já o artista Jovi Baptista minimiza a questão. Para ele, as músicas refletem a realidade e podem ser provocadoras ou metafóricas. “Algumas expressões são extremas, mas não têm de ser consideradas agressões à sociedade.”

Nuno Seixas, jovem compositor, considera que tudo depende da interpretação do público. “Se a música for boa, nem sempre me preocupo com a letra. Mas sei que certas culturas, como a timorense, são mais sensíveis.”

Ainda assim, acredita que a música pode educar e que os artistas devem usar essa ferramenta para motivar, não explorar: “Em vez de objetificar, por que não dizer: Mulher, és como a minha mãe?”

O artista sénior Anito Matos critica duramente a nova geração, acusando-a de desrespeitar os outros. Pede letras que eduquem e não insultem. “Se for apenas para ofender, não é arte. É crime.”

Aponta também falhas na implementação das leis contra a discriminação e o plágio: “Existem leis, mas não são aplicadas. A ALMAMOR tem de começar a controlar as letras, e as comissões de concertos devem selecionar melhor os artistas.”

“Se não respeita os outros, para quê ser artista?”

Anito recorda que, no passado, também escreveu músicas de combate, mas com o objetivo de inspirar o povo. Agora, apela aos jovens para que usem o talento de forma positiva. “Criem algo de que até nós, artistas antigos, possamos ter orgulho.”

A mensagem dos movimentos feministas, de artistas e ativistas é clara: a liberdade de expressão é um direito, mas não pode servir de desculpa para perpetuar violência contra as mulheres. Boicotar conteúdos machistas não é censura — é resistência contra uma cultura que insiste em silenciar e diminuir metade da população.

O Diligente tentou contactar os dois artistas referidos nesta reportagem. Paulino Vieira do Carmo recusou-se a prestar declarações, enquanto Cesário Sousa não foi possível contactar até ao fecho da edição.

Ver os comentários para o artigo

  1. Em TL o musico macho!

    Em TL o musico macho
    Para ganhar o “tacho”
    Tem de descer “muito baixo”
    Musico do agacho
    Tal e qual o “facho”
    Tem de descer “muito baixo”
    Para apanhar o cacho
    Usa e abusa de borracho
    Desenvergonhado dum cucaracho

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