Liberdade de Imprensa em queda livre: Timor-Leste desce 19 lugares no ranking mundial

“Se o índice da liberdade de imprensa caiu, é porque o da democracia também caiu — e o da corrupção subiu”/Diligente

Timor-Leste caiu do 20.º para o 39.º lugar no Índice Mundial da Liberdade de Imprensa em 2025. Intimidação a jornalistas, interferência política direta nas redações, autocensura, censura disfarçada de orientação editorial e silêncio perante abusos de poder estão a comprometer seriamente a democracia no país. Jornalistas, organizações e o próprio Provedor alertam: a imprensa está sob ataque — e o jornalismo crítico em risco de extinção.

Timor-Leste sofreu uma queda acentuada no Índice Mundial da Liberdade de Imprensa de 2025. O país passou do 20.º para o 39.º lugar entre 180 países, segundo a avaliação da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF). A descida reflete um ambiente cada vez mais tenso para o exercício do jornalismo, marcado por interferências políticas, autocensura e limitações à liberdade editorial.

A pontuação global de Timor-Leste caiu de 78,92 para 71,79 pontos, com quebras significativas nos indicadores político, económico e social.

O indicador político foi o que mais se deteriorou, passando de 76,09 para 61,44 pontos, colocando Timor-Leste na 44.ª posição no que respeita à pressão política sobre os media. A interferência das autoridades nos órgãos de comunicação e a instrumentalização de subsídios estatais estão entre os fatores que mais contribuíram para esta descida.

No campo económico, a pontuação recuou de 65,36 para 50,61 pontos. A crescente concentração da propriedade dos media e a forte dependência de receitas publicitárias foram identificadas como entraves à independência editorial.

Também o indicador social sofreu uma quebra relevante, de 85,71 para 75,85 pontos, evidenciando uma menor tolerância da sociedade ao trabalho jornalístico e maior pressão pública sobre os profissionais da comunicação.

Em contrapartida, o indicador legislativo registou uma ligeira subida, de 73,08 para 78,51 pontos, refletindo algum progresso legal na proteção da liberdade de imprensa. O indicador de segurança manteve-se relativamente estável, com uma ligeira descida de 94,35 para 92,54 pontos, indicando que, apesar da pressão institucional, os jornalistas continuam geralmente seguros no exercício físico da profissão.

Reações institucionais e críticas à interferência política

O Presidente do Conselho de Imprensa (CI), Otélio Ote, manifestou preocupação com o recuo no ranking, sublinhando que, apesar da queda, Timor-Leste continua a liderar na região do Sudeste Asiático. “Este ranking reflete a perspetiva das organizações internacionais de monitorização. Enquanto entidade reguladora e defensora da liberdade de imprensa, iremos analisar cuidadosamente os cinco critérios principais — político, social, legislativo, económico e segurança — para compreender os fatores que mais contribuíram para esta queda”, afirmou.

Francisco Simões, representante dos jornalistas no CI, classificou a descida como uma “notícia preocupante” para todos os que defendem um jornalismo livre e responsável. “É um resultado triste para os jornalistas e ativistas que trabalham arduamente na promoção da liberdade de imprensa. Esta descida deve-se especialmente à atuação de membros do Governo, em particular do Secretário de Estado da Comunicação Social, que tem exercido controlo direto sobre os meios estatais e usado subsídios como forma de pressão.”

Simões criticou ainda a intervenção do poder político nos órgãos públicos de comunicação, como a RTTL e a TATOLI, lembrando que, já durante o VIII Governo, em 2024, o índice tinha sofrido um abalo.

Zevónia Vieira, presidente da Associação dos Jornalistas de Timor-Leste (AJTL), afirmou que a associação já antecipava uma descida. “Suspeitávamos que tivesse descido para a 30.ª posição, mas afinal foi para a 39.ª. Ficámos tristes, porque há governantes que tentam limitar a liberdade de imprensa, como se verificou durante despejos administrativos em que jornalistas foram impedidos de fazer a cobertura.” Segundo Zevónia, os indicadores político, económico e sociocultural foram os que mais influenciaram a avaliação.

Casos concretos de pressão, censura e intimidação

Entre os episódios mais mediáticos de 2024 que contribuíram para a queda no ranking estão várias situações de confronto entre o poder político e jornalistas.

A 23 de abril de 2024, o secretário de Estado para a Comunicação Social, Expedito Dias Ximenes, interveio diretamente na redação da Rádio e Televisão de Timor-Leste (RTTL, E.P.) para exigir alterações numa peça jornalística crítica ao Primeiro-Ministro Xanana Gusmão. A investigação conduzida pelo Conselho de Imprensa concluiu que esta atuação violou o artigo 40.º da Constituição timorense, que garante a liberdade de expressão e de informação.

Segundo o CI, Expedito entrou na redação acompanhado do presidente da RTTL na altura, José António Belo, e ordenou que fosse removida uma referência ao facto de Xanana não ter cumprimentado membros do Governo à chegada ao aeroporto. Após supervisionar a edição da notícia, abandonou o local. Os jornalistas da RTTL denunciaram de imediato o episódio como censura.

O porta-voz do CI, Amito Araújo, condenou veementemente a intromissão política e informou que o caso seria encaminhado às mais altas instituições do Estado, não excluindo a possibilidade de sanções. Já Zevónia Vieira, presidente da AJTL, classificou o episódio como um claro exemplo de violação da liberdade de imprensa, sublinhando que Expedito, por ter sido membro do CI, tinha plena consciência da gravidade do seu ato. “O público tem o direito de saber o que se passa. Esta tentativa de censura é inaceitável”, afirmou.

Expedito Ximenes, por sua vez, rejeitou que tenha havido censura e justificou a sua presença na RTTL como uma tentativa de “corrigir” e “esclarecer” a informação divulgada. A justificação foi recebida com ceticismo pelas organizações de defesa da imprensa.

A 3 de setembro de 2024, duas jornalistas timorenses — Antónia Martins, do Diligente, e Suzana Cardoso, da One Media Timor — foram impedidas de exercer livremente a sua profissão durante a cobertura de ações de despejo levadas a cabo pela SEATOU. Antónia foi detida por agentes armados da PNTL e levada para a esquadra, apesar de se ter identificado como jornalista. Já Suzana viu o seu telemóvel confiscado por um funcionário da SEATOU, que apagou todas as imagens da operação, sem qualquer intervenção por parte da polícia. A AJTL denunciou publicamente os acontecimentos como uma grave violação dos direitos humanos e da liberdade de imprensa, e anunciou que iria apresentar queixa contra a PNTL e a SEATOU ao Ministério Público.

Este episódio, ocorrido poucos dias antes da visita do Papa a Timor-Leste, foi amplamente condenado pela Associação dos Jornalistas e considerado um ato de intimidação contra profissionais da comunicação social. Para a AJTL, o incidente evidenciou a necessidade urgente de formação das instituições estatais sobre o papel dos jornalistas numa democracia. A resposta institucional incluiu um pedido de desculpas por parte do Secretário de Estado da Comunicação Social, Expedito Ximenes, que reconheceu a importância do jornalismo como ponte entre o Governo e a sociedade.

Segundo a AJTL, um dos fatores que também contribuiu para a queda da liberdade de imprensa em Timor-Leste foi a circular emitida em 2024 pela Direção-Geral do Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV), que proibia os jornalistas de fazer cobertura sobre questões relacionadas com tratamentos de saúde e a falta de medicamentos.

Autocensura, subornos e temas proibidos

A autocensura continua a ser um obstáculo à liberdade de imprensa em Timor-Leste. Segundo Otélio Ote, esta prática está muitas vezes ligada à falta de formação dos jornalistas. “Muitos não receberam formação adequada e optam por usar termos ‘seguros’ para evitar ofender certas entidades, sobretudo em matérias críticas ou sensíveis”, explicou.

Francisco Simões acrescenta que o fenómeno também está identificado no relatório da RSF, ainda que de forma pouco detalhada. Para o jornalista, a autocensura não resulta apenas de decisões individuais, mas também de pressões externas. “Há casos em que autoridades contactam diretamente as redações para pedir que certas notícias críticas ao Governo não sejam publicadas.”

Zevónia Vieira alerta ainda para práticas de suborno dentro das redações. “Há jornalistas que aceitam dinheiro em troca de coberturas. Isso compromete a independência editorial e viola claramente os princípios éticos da profissão.” A presidente da AJTL destaca ainda o peso da religião na autocensura: “Sempre que se aborda a Igreja Católica, surgem ameaças ou intimidações. Mesmo sendo um país democrático, a maioria católica tende a interpretar essas reportagens como ataques à Igreja.”

A AJTL reafirmou o seu compromisso com a defesa do jornalismo. “Contudo, a associação não pode lutar sozinha. É preciso um esforço coletivo, envolvendo jornalistas, Governo e outras organizações. Se continuarmos a desrespeitar o trabalho dos media, a liberdade de imprensa poderá ficar cada vez mais ameaçada”, alertou Zevónia Vieira.

Vários jornalistas acusam o SECOMS de utilizar a distribuição de subsídios como forma de controlo editorial, favorecendo órgãos alinhados com o Governo. “Há pouca margem para abordar temas como corrupção, abusos sexuais ou direitos humanos”, afirmou Zevónia Vieira.

Francisco Simões apontou ainda o programa “Meet the Press”, promovido pelo SECOMS, como um mecanismo de controlo da agenda mediática. “Quando um órgão de comunicação não segue a orientação imposta, o SECOMS contacta diretamente os responsáveis editoriais”, denunciou.

Em sentido contrário, o Secretário de Estado da Comunicação Social rejeita a existência generalizada de autocensura. “Acho que isso não acontece. O IX Governo garante liberdade de imprensa e nunca houve censura nem autocensura. Quem os manda a fazer autocensura?”. Expedito Ximenes relembrou a existência de regulamentos para a proteção do jornalismo. “A profissão está regulada pela Lei da Comunicação Social e pelo Código de Ética Jornalística. Cada órgão segue as suas próprias normas editoriais.”

O jornalismo está a falhar? — Reflexões e alertas críticos

Com o aumento das pressões, interferências e práticas de controlo, cresce também a preocupação com o estado da democracia em Timor-Leste. A queda no ranking da liberdade de imprensa é mais do que uma estatística: é um sinal de alarme sobre o espaço cada vez mais limitado para o jornalismo livre, crítico e independente no país.

O presidente da Associação de Ajuda à Justiça e aos Direitos Humanos (AJAR), José Luís de Oliveira, durante a discussão aberta “Relação entre liberdade de imprensa, expressão e democracia na era digital”, organizada pela AJTL, hoje à tarde (03/05), frisou que a queda no índice da liberdade de imprensa está diretamente relacionada com outros sinais de deterioração democrática. “Se o índice da liberdade de imprensa caiu, é porque o da democracia também caiu — e o da corrupção subiu”, afirmou. O responsável manifestou preocupação com a possibilidade de Timor-Leste caminhar para uma forma de governação cleptocrática, em vez de democrática. Lembrou ainda o caso recente de um jornalista assassinado na Indonésia enquanto investigava corrupção, para sublinhar os riscos crescentes enfrentados pelos profissionais da comunicação. “Temos de lutar para não seguir esse caminho. Esta queda mostra que já estamos a inclinar-nos nessa direção”, alertou.

No âmbito da mesma discussão aberta sobre a liberdade de imprensa, o jornalista português a trabalhar em Timor, Pedro Brinca, lançou uma provocação. “Por que estamos a debater a posição de Timor-Leste no ranking da liberdade de imprensa, se nem jornalismo verdadeiro temos?”, questionou, criticando o facto de muitos jornalistas seguirem apenas a agenda do Governo.

Pedro Brinca lamentou a ausência de espírito crítico na cobertura de episódios recentes, como a detenção de professores pela PNTL. “Noticiaram apenas o facto, mas ninguém escreveu que isso constitui uma violação dos direitos humanos. O Conselho de Imprensa também não cumpriu o seu papel e nenhum jornalista questionou.”

O jornalista apontou ainda o silêncio da comunicação social perante a decisão da PNTL de proibir a reprodução de música durante o luto nacional pela morte do Papa. “Os jornalistas não perguntaram se a polícia tem legitimidade para emitir esse tipo de regulamentos, quando esse é um papel que compete ao Parlamento Nacional”, observou.

Durante a mesa-redonda “Jornalismo de Causas: o caso Timor-Leste”, realizada esta manhã (03/05) na Embaixada de Portugal em Díli, o Provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, assinalou que o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa deve ser mais do que uma celebração — deve ser um momento de reflexão. “É um dia para lembrar os muitos jornalistas que, em todo o mundo, foram detidos pelo simples facto de fazerem o seu trabalho”, afirmou.

Virgílio Guterres, lamentou que, com raras exceções, o jornalismo timorense funcione mais como “fabricador de consentimento” do que como “despertador de consciências” — expressão inspirada em Noam Chomsky. Segundo o Provedor, muitos órgãos de comunicação social limitam-se a reproduzir versões oficiais e evitam questionar estruturas de poder. “Infelizmente, tirando dois ou três órgãos, não temos jornalismo que desperte consciências.” Reconheceu apenas três órgãos como exemplos de jornalismo crítico e independente: o Diligente, o Neo Metin e o Lafaek News.

Como exemplo, apontou a forma como têm sido tratadas notícias sobre bebés abandonados no lixo, em que os media “culpabilizam a mãe e ouvem apenas fontes legais”, sem investigar causas sistémicas como violência sexual, gravidez indesejada ou abusos dentro das famílias. “Nenhum jornalista vai saber se a jovem foi violada pelo tio ou pelo primo. Nenhum tenta perceber o que está por trás, e o resultado é que a consciência pública não desperta.”

Outro caso que criticou foi o silêncio da imprensa timorense sobre a agressão cometida pelo Primeiro-Ministro, Xanana Gusmão, a um cidadão em Oé-Cusse. “Não houve uma única notícia sobre o caso. Nos espaços públicos, dizem que o Primeiro-Ministro bate porque ama. Mas isto, em termos jornalísticos, é grave. Devia ser escrito.”

Recordou ainda episódios recentes de intimidação contra jornalistas, como a detenção de Antónia Martins e a apreensão do telemóvel de Suzana Cardoso durante a cobertura de despejos em Díli, bem como a notificação do jornalista do Independente pelo Ministério Público e a interferência do SECOMS nas entrevistas ao Primeiro-Ministro. Sobre o caso da nomeação do Presidente da RTTL, sublinhou que “a independência de uma entidade pública começa pela escolha rigorosa do seu responsável máximo. Não se pode nomear pessoas só por serem do mesmo partido.”

A terminar, deixou um apelo direto aos jornalistas: “Muitos reclamam, mas não escrevem. A principal arma do jornalista é a notícia. Escrevam!”

Perante a descida no ranking, o Secretário de Estado da Comunicação Social prometeu ações concretas para inverter a tendência negativa. “Este ano, o Governo irá colaborar com o Conselho de Imprensa para capacitar melhor os membros dos órgãos do Estado, de modo a que compreendam como acompanhar o trabalho dos jornalistas”, afirmou Expedito Ximenes.

Reconhecendo a falta de conhecimento sobre o papel dos media por parte de várias instituições estatais, o Secretário de Estado anunciou também planos de formação para os membros do Estado, em articulação com o Conselho de Imprensa, para garantir o respeito pelas regras da comunicação social e o código de ética jornalística.

Dois incidentes graves em 2025 voltam a ameaçar a liberdade de imprensa

Em 2025, dois episódios envolvendo diretamente o Primeiro-Ministro e o Secretário de Estado da Comunicação Social levantaram novas preocupações sobre o estado da liberdade de imprensa em Timor-Leste.

O primeiro ocorreu a 13 de março, quando Xanana Gusmão gritou de forma agressiva a uma jornalista durante uma conferência de imprensa, obrigando-a a recuar fisicamente, num gesto amplamente condenado por organizações de comunicação e movimentos feministas como intimidação e abuso de poder.

O segundo teve lugar a 24 de abril, quando o Secretário de Estado, Expedito Ximenes, impediu jornalistas de colocarem perguntas ao Chefe do Governo no aeroporto, levantando a mão e repetindo várias vezes que não haveria perguntas. O caso foi criticado por jornalistas, pela AJTL e pelo Conselho de Imprensa, que consideraram o ato como censura e limitação do acesso à informação.

Ambos os episódios refletem um padrão preocupante de desrespeito pelos profissionais da comunicação social e de tentativas de controlo da informação por parte das autoridades. Tendo em conta que Timor-Leste já regista três anos consecutivos de queda no Índice Mundial da Liberdade de Imprensa, importa agora questionar: até que ponto estes novos incidentes poderão agravar ainda mais a posição do país no próximo ranking da Repórteres Sem Fronteiras — e comprometer, em última instância, a saúde da sua democracia?

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