A morte de uma baleia-cachalote em Ulmera reacende o debate sobre a falta de protocolos para lidar com estes incidentes em Timor-Leste. Especialistas alertam para os riscos ambientais e sanitários e criticam a ausência de uma resposta rápida das autoridades. Enquanto isso, a população aproveitou a carne do animal, sem garantias de segurança alimentar.
Uma baleia-cachalote com cerca de 12 metros foi encontrada morta no mar de Ulmera, Liquiçá, atraindo a atenção da comunidade local. O episódio, que começou como uma curiosidade, rapidamente levantou questões sobre a causa da morte, o impacto ambiental da sua decomposição e a falta de um protocolo adequado para lidar com estes casos no país.
Antes da remoção pelos bombeiros, muitos moradores aproveitaram a carne para consumo e para a produção de remédios tradicionais. No entanto, especialistas alertam para os riscos sanitários e defendem um tratamento mais respeitoso e sustentável do corpo do animal.
Esta é a segunda vez que uma baleia aparece morta na região. Em 2021, um exemplar de cinco metros foi encontrado na costa, mas as autoridades não conseguiram enterrá-lo a tempo, levando a um grave problema de saúde pública devido à decomposição avançada.
Morte da baleia: sinais de ferimentos e hipóteses
O pescador Deonídio Neves Soares, de 22 anos, contou que a baleia foi avistada perto da costa por volta das 11h da manhã, ainda viva e debatendo-se na água. “Pegámos nos remos e corremos para tentar ajudá-la a sair dali, mas não tivemos força suficiente e voltámos para terra”, relatou. Quando regressaram à tarde, o animal já estava morto.
Segundo Potenzo Lopes, conservacionista de animais, a sobrevivência de uma baleia encalhada depende do seu estado de saúde no momento do encalhe. “Se estivesse saudável, poderia ter sido ajudada a regressar ao mar. No entanto, devido à grande quantidade de sangue perdido, as hipóteses de sobrevivência eram mínimas”, explicou.
A presença de sangue fresco no corpo do animal sugere que pode ter sido atingido por um objeto antes de morrer. Pescadores relataram que, antes de encalhar, a baleia sangrava abundantemente, levantando a suspeita de um impacto violento no mar profundo.
A análise de imagens permitiu estimar que a baleia tinha entre 10 e 12 metros de comprimento, podendo ser uma fêmea adulta ou um macho jovem. “A identificação exata exigiria exames mais detalhados, que não foram realizados”, lamentou Potenzo Lopes.
Atraso na resposta das autoridades e impacto ambiental
A ausência de um protocolo oficial para lidar com encalhes e mortes de cetáceos foi um dos principais problemas apontados. “O país ainda enfrenta dificuldades em termos de recursos e conhecimento técnico nesta área, o que leva a respostas descoordenadas e pouco eficazes”, criticou Potenzo Lopes.
Sem uma resposta imediata das autoridades, muitos moradores aproximaram-se para ver o animal de perto. “Crianças, jovens e idosos foram até à baleia de barco. Alguns de nós até subimos em cima dela. Foi uma experiência nova, tocar numa baleia e brincar em cima de um peixe gigante”, contou Deonídio.
O conservacionista condenou essa atitude e defendeu que, mesmo após a morte, a baleia deveria ter sido tratada com respeito. “Partes do animal poderiam ter sido preservadas para fins educativos e científicos. Um esqueleto de cachalote num museu serviria como ferramenta de ensino para futuras gerações”, sugeriu.
A decomposição de um animal deste porte pode ter diferentes consequências, dependendo do local. “Se a morte ocorre em águas profundas, o corpo serve de alimento para outras espécies marinhas. Mas se encalha na praia, pode gerar mau cheiro e riscos sanitários para a comunidade”, explicou.
Consumo da carne: tradição versus riscos sanitários
Após a morte da baleia, moradores aproveitaram a carne para consumo e para a produção de remédios tradicionais. No entanto, sem qualquer análise científica, os riscos para a saúde são desconhecidos.
Olandino de Araújo, de 31 anos, viajou de Díli para Ulmera para recolher carne do animal. “Aluguei um barco por cinco dólares e entrei na água para cortar a carne. Quero extrair o óleo da gordura da baleia, que pode ser usado para aliviar dores no corpo e cansaço”, contou.
A comunidade começou por remover a camada externa da baleia para extrair a gordura, incluindo os intestinos. José dos Santos, de 59 anos, morador de Ulmera, relatou que várias pessoas usaram barcos para cortar e recolher a carne. “Alguns chineses trouxeram motosserras para retirar as melhores partes. Não levaram para consumo, apenas dividiram com a comunidade”, revelou.
José explicou que a gordura da baleia contém muito óleo, enquanto a carne tem pouco sabor. “Hoje cozinhámos e comemos. A carne é macia, mas a pele é muito dura. Para preparar, é preciso escaldá-la e retirar toda a água antes de temperar e fritar. Depois disso, o sabor fica parecido com carne de búfalo”, descreveu.
Potenzo Lopes alertou que, sem testes laboratoriais, não é possível saber se a carne estava própria para consumo. “A ausência de equipamentos e de procedimentos científicos estruturados em Timor-Leste impede a realização dessas análises”, lamentou.
A movimentação descontrolada de pessoas no local impossibilitou qualquer tentativa de impedir a extração da carne antes que fosse feita uma avaliação adequada. “Em algumas comunidades, como em Lamahera, na Indonésia, o consumo de baleia faz parte da tradição. Mas, em Timor-Leste, este hábito ocorre apenas quando um animal é encontrado morto, sem qualquer garantia de segurança alimentar”, alertou.

Necessidade de um plano de ação para o futuro
A morte da baleia-cachalote em Ulmera reflete não apenas desafios ambientais e científicos, mas também a necessidade urgente de Timor-Leste desenvolver políticas e infraestruturas adequadas para a conservação da vida marinha.
Potenzo Lopes defendeu a criação de um sistema de gestão que envolva cientistas, conservacionistas e autoridades locais para garantir respostas rápidas e eficazes. A formação de especialistas e a implementação de programas de monitorização são essenciais para evitar futuras tragédias semelhantes.
“As baleias-cachalote realizam migrações anuais e é comum a sua passagem pelo mar de Timor, especialmente entre junho e julho. Mas a falta de estudos científicos sobre os seus padrões migratórios impede uma análise mais aprofundada”, explicou.
Em algumas regiões da Indonésia, a caça de cachalotes ainda ocorre, e não se pode descartar que algumas destas práticas afetem populações que migram para águas timorenses. “A morte desta baleia pode estar ligada a esse ciclo migratório, mas encontrá-la tão próxima da costa levanta questões sobre outros possíveis fatores de risco”, afirmou.
“Sem um plano de ação bem definido, casos como este continuarão a acontecer sem uma resposta eficiente das autoridades”, concluiu. Ele reforçou que o investimento em investigação e na sensibilização da população é essencial para equilibrar as tradições locais com a preservação dos oceanos.