Apesar da legislação e das políticas de educação inclusiva, bem como das promessas do Governo para garantir uma educação de qualidade, a sua concretização continua a ser um mero sonho. O sistema educativo nacional não dispõe de um currículo inclusivo nem de programas de formação em Braille para alunos com deficiência visual.
A educação é um direito fundamental de todas as crianças, independentemente da sua origem, condição física ou social.O artigo 59.º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste reforça o compromisso do Estado em assegurar que todos os cidadãos tenham o mesmo direito de acesso à educação. A obrigatoriedade da educação básica e a igualdade na formação profissional deveriam criar oportunidades para todos alcançarem o sucesso.
Em Timor-Leste, este princípio está refletido na criação de um sistema de educação inclusiva, onde todas as crianças, incluindo aquelas com deficiência física, deveriam poder aceder a uma educação de qualidade. “Educação para todos” significa que todas as crianças, quer vivam nas cidades, quer nas zonas rurais, quer tenham ou não necessidades especiais, devem ter as mesmas oportunidades de aprender e crescer.
A falta de Braille no sistema educativo
O Braille é um sistema de leitura e escrita que permite às pessoas com deficiência visual, especialmente as cegas, aprender, trabalhar e aceder à informação de forma autónoma. Usa pontos elevados dispostos em diferentes combinações para representar letras, números e símbolos, que podem ser lidos ao toque. No entanto, a implementação do Braille no sistema educativo de Timor-Leste enfrenta grandes desafios, devido à falta de recursos e à ausência de um currículo inclusivo.
“Em Díli, há um centro de recursos com uma máquina de impressão em Braille, onde os estudantes podem adaptar os materiais escolares”, explica Joici Arruda Caetano, especialista em educação especial inclusiva. “Mas nos municípios, a realidade é muito diferente, e muitas crianças com deficiência visual não têm sequer a possibilidade de aprender através do Braille.”
Além da escassez de materiais, Joici destaca a necessidade de metodologias alternativas para quem não tem acesso a este sistema. “Se a criança não tem Braille, é importante explorar outras formas de aprendizagem, como a audição e o tato. No processo de alfabetização, por exemplo, podemos trabalhar com materiais táteis e moldes de letras em papel de lixa, para que possam perceber os contornos ao toque.”
A Associação Halibur Deficiência Matan Timor-Leste (AHDMTL) tem sido uma das principais organizações a tentar colmatar esta lacuna. O seu Presidente e fundador, Gaspar Afonso, denuncia a falta de um sistema educativo que facilite a aprendizagem dos alunos com deficiência visual, desde o ensino básico até ao ensino superior. “Depois de frequentar a formação na AHDMTL, os alunos fazem um teste para avaliar o seu nível e poderem continuar os estudos numa escola regular. A 1.ª, 2.ª e 3.ª fases equivalem ao primeiro ciclo do ensino básico, a 4.ª fase ao 7.º ano e a 5.ª fase ao 9.º ano do ensino básico. Contudo, o Ministério da Educação só reconhece a 5.ª fase. Por isso, somos obrigados a coordenar com escolas em Díli, como as escolas Nobel da Paz e Finantil, para que estes alunos possam continuar os seus estudos no ensino secundário. No ano passado, 14 estudantes fizeram o exame de equivalência, coordenado com a Escola Nobel da Paz, e agora alguns já vão para a universidade”, afirmou.
Gaspar Afonso lamenta ainda a falta de compromisso do Ministério da Educação (ME) para implementar um currículo inclusivo: “Já fizemos várias audiências e apresentámos sugestões para lembrar o Ministério da Educação da importância do currículo inclusivo, mas o próprio ME não leva a sério esta questão. Criaram um departamento de educação inclusiva e têm uma política nacional para essa área, mas a implementação não é a ideal, porque o Ministério não aloca orçamento anual para isso”, disse.
Além disso, segundo Gaspar Afonso, várias organizações estão dispostas a apoiar a educação inclusiva em Timor-Leste, mas a falta de resposta do ME tem sido um entrave: “Há organizações que querem apoiar o orçamento da educação para tornar as escolas mais acessíveis, como construir casas de banho adaptadas, mas até agora apenas pediram os desenhos arquitetónicos e o ME não os forneceu, apesar de o financiamento não depender do Ministério”, acrescentou.
Atualmente, a AHDMTL tem 11 professores que ensinam Braille, utilizando equipamento adquirido no estrangeiro. O financiamento provém do Ministério da Solidariedade Social, do Ministério da Educação e de várias organizações internacionais, como a UNICEF, o PNUD, a Embaixada da Nova Zelândia, a Plan Internacional e a União Europeia.
A dificuldade do ensino do Braille
Januário Amaral, formador de Braille na East Timor Blind Union (ETBU) há 17 anos, explica que o ensino e aprendizagem do Braille continuam a ser desafiantes em Timor-Leste: “A aprendizagem do Braille não é fácil. É preciso compreender as fórmulas. Para os meus colegas que estão agora a aprender, o meu conselho é que se foquem nos estudos”, sugeriu.
A ETBU enfrenta ainda a falta de computadores para instalar a aplicação TalkBack, essencial para o ensino do Braille básico. “O computador é essencial para instalarmos a aplicação TalkBack, que ajuda os alunos com deficiência visual a aprender Braille”, salientou.
Januário Amaral sublinhou também que a ETBU já realizou várias reuniões com o ME para exigir a criação de um currículo em Braille, mas sem sucesso. “Sinto-me muito triste, porque as pessoas com deficiência visual total não conseguem aceder à educação em Timor-Leste, sobretudo à literacia básica em Braille”, afirmou.
O impacto na vida dos estudantes
Lúcia Martins, aluna do 11.º ano do Colégio Paulo VI, explica as dificuldades que enfrenta no dia a dia escolar. “Na escola, tenho de me adaptar às condições existentes e às dificuldades de ver claramente o quadro. Tenho de pedir ajuda aos colegas para obter as matérias e tirar notas. Com a minha condição, prefiro usar Braille do que letras normais”, disse.
Lúcia Martins aprendeu Braille na AHDMTL, mas destaca que a falta de um currículo oficial nas escolas limita o seu acesso à educação. “O Ministério da Educação devia implementar um currículo em Braille em todas as escolas de Timor-Leste, para que os alunos com deficiência visual possam ter acesso à educação de forma adequada. Se não o fizerem, como podemos ser considerados inclusivos?”, questionou.
A estudante Teresa Fátima Martins, que frequenta formação na AHDMTL há um ano, refere que o ensino de Braille em Timor-Leste é incompleto. “O Braille não tem sinais completos na área da matemática. Atualmente, só existem cinco sinais básicos, o que dificulta bastante a aprendizagem”, disse.
Além disso, Teresa Fátima Martins alerta para a necessidade de sensibilizar os motoristas de transportes públicos. “Em algumas microletes, os condutores não tratam bem os colegas que estão na mesma condição que nós”, afirmou.
O adjunto do diretor da Escola Católica de Paulo VI, Atanásio António da Silva, explica que esta é a primeira vez que a escola aceita alunos com necessidades especiais. Apesar dos desafios, a escola tem procurado adaptar-se à nova realidade. “Os professores devem adaptar-se às necessidades dos alunos com deficiência visual, mas os alunos também devem estar abertos e comunicar quando algo os incomoda. Assim, podemos encontrar soluções juntos”, explicou.
Atanásio António da Silva acrescentou que a escola organiza encontros regulares entre professores e alunos para reforçar o acompanhamento e garantir um ambiente mais inclusivo.
A ausência de recursos para alunos com deficiência visual tem um impacto profundo no seu desenvolvimento académico e psicossocial. “Se uma criança não tem acesso aos recursos necessários à aprendizagem, o seu reconhecimento do mundo fica prejudicado. Ela pode ter dificuldades em identificar objetos e símbolos, e isso afeta a sua autonomia”, alerta Joici Arruda Caetano.
A especialista sublinha ainda que a falta de apoio adequado pode levar à desmotivação e até ao abandono escolar. “Muitas destas crianças, quando chegam ao primeiro ano, encontram barreiras intransponíveis e acabam por desistir dos estudos. O medo de errar, a timidez e a falta de interação com os colegas fazem com que se sintam excluídas.”
Para além dos professores, os colegas de turma também desempenham um papel essencial no processo de inclusão. “Uma criança com cegueira total pode não ter acesso ao Braille, mas pode aprender através do tato e da audiodescrição”, explica a especialista. “Para isso, é essencial envolver toda a turma, sensibilizar os colegas e trabalhar a empatia na sala de aula.”
A especialista reforça ainda que a escola sozinha não pode garantir a inclusão. “O acesso à educação deve ser garantido por um esforço conjunto entre a família, a escola e a comunidade. Sem esse apoio, a inclusão torna-se impossível.”
Atualmente, o sistema público timorense não oferece um Plano Educacional Individualizado (PEI) para alunos com deficiência visual. No entanto, Joici Arruda Caetano defende que os professores devem adaptar os planos de ensino sempre que uma criança apresenta necessidades específicas. “Se a família apresentar um relatório de avaliação ou informar a escola sobre a condição da criança, o professor pode ajustar a metodologia. Caso contrário, estas crianças são deixadas para trás.”
“O PEI é um direito dos alunos com necessidades especiais e deve garantir que cada criança tem acesso a uma educação adequada, com adaptações que permitam um desempenho funcional sem discriminação”, acrescenta. “No caso de crianças com deficiência visual, esse plano deve incluir descrições dos recursos necessários, métodos de ensino adaptados e estratégias para cada disciplina.”
O que dizem os dados
O Governo alocou 272 mil dólares para a Política Nacional de Educação Inclusiva, com o objetivo de garantir que os alunos do ensino secundário com necessidades especiais recebam apoio adequado no ensino e na aprendizagem, bem como para promover a formação de professores em educação inclusiva.
Os dados sobre a deficiência em Timor-Leste, baseados nos Censos de 2022, fornecem informações valiosas sobre as limitações enfrentadas pela população com deficiência. A análise destaca a deficiência de mobilidade, particularmente a incapacidade de andar, como uma das maiores dificuldades. No total, 3.853 homens e 3.703 mulheres enfrentam sérias dificuldades ou são incapazes de andar.
Além disso, as deficiências auditivas e visuais ocupam o segundo e o terceiro lugares em termos de prevalência, o que reforça a necessidade de atenção especial a estas áreas.
Importa ainda salientar que, entre as 17,1 mil pessoas com deficiência em Timor-Leste, 7,7 mil (ou 45,5%) têm multideficiência, o que representa desafios ainda maiores no seu cuidado e inclusão.
Os dados mostram também que a deficiência aumenta com a idade, seguindo um padrão global. Por exemplo, apenas 0,3% das crianças entre os 5 e os 9 anos têm alguma deficiência. Esse número sobe para 3,9% entre os 60 e os 64 anos. A taxa atinge 12,6% entre os indivíduos dos 75 aos 79 anos.
A situação é ainda mais preocupante entre as pessoas com 85 ou mais anos, onde quase 25% apresentam algum tipo de deficiência.
A especialista em educação inclusiva sublinha que Timor-Leste ainda se encontra na fase de segregação no que diz respeito à educação especial. “A inclusão não acontece de um dia para o outro”, afirma. “Historicamente, a educação inclusiva passa por quatro fases: exclusão, segregação, integração e, finalmente, inclusão. Em Timor-Leste, ainda estamos na fase da segregação, e há um longo caminho a percorrer.”
No entanto, algumas iniciativas já estão a ser implementadas, como formações e campanhas de sensibilização. “Nos transportes públicos, já há lugares prioritários para pessoas com deficiência, e nas ruas estão a ser instaladas sinalizações táteis para auxiliar a mobilidade. Mas a maior barreira continua a ser a falta de informação”, explica. “As comunidades precisam de aprender mais sobre deficiência visual e sobre o uso do Braille em diferentes contextos.”
A longo prazo, Joici defende a criação de centros de recursos especializados em cada município, onde equipas multidisciplinares possam trabalhar de forma integrada. “Precisamos de pedagogos, psicopedagogos, terapeutas da fala e fisioterapeutas, além de materiais adequados, como máquinas de Braille e softwares de audiodescrição”, conclui.
O Diligente tentou, por diversas vezes, obter informações junto do Ministério da Educação, mas até ao momento não obteve resposta.