Apesar da existência de legislação, o barulho noturno continua a tomar conta de vários bairros da capital timorense. Música em alto volume, motorizadas e festas até de madrugada impedem o descanso das famílias, provocam stress e comprometem o direito à saúde. Moradores sentem-se abandonados pelas autoridades.
Às 17h30, a maioria dos trabalhadores começa a regressar a casa. As lojas encerram por volta das 21h e a cidade de Díli entra gradualmente em modo de descanso. O trânsito abranda, os vendedores ambulantes recolhem e o silêncio devia tomar conta das ruas. Mas em muitos bairros, é precisamente a essa hora que o barulho começa.
Música em colunas potentes, motorizadas a acelerar pela noite fora, karaoke e festas improvisadas estendem-se até de madrugada. O ruído transforma-se num pesadelo diário para quem só quer dormir.
Em Quintal Boot, Letícia da Silva Cabral vive ao lado de uma estrada principal e enfrenta noites seguidas sem descanso. “Eles fazem barulho e tocam música até depois da meia-noite — às vezes, até às quatro da manhã. Já me aconteceu de só conseguir dormir às duas. No dia seguinte, sinto-me tonta, sem forças”, conta a jovem universitária.
O cansaço acumula-se. “Há noites em que quase enlouquecemos. Quando estão bêbedos e ligam as colunas, é insuportável. Já pensámos em mudar de casa, mas esta é a nossa casa. Não temos para onde ir”, desabafa.
Apesar do desconforto, a família nunca confrontou diretamente os vizinhos. Optam por esperar que o barulho acabe — muitas vezes, em vão.
Em Becusse Centro, Lúcia da Silva enfrenta o mesmo drama. “Começam a tocar música entre as sete e as dez da noite. Eu deito-me cedo, mas só consigo dormir quando a música para”, explica.
Mesmo ao meio-dia, na hora de almoço, o descanso é impossível. “O meu marido já foi pedir para fazerem menos barulho, mas nada mudou. Estou a pensar em chamar a PNTL para ver se fazem alguma coisa”, afirma.
No bairro RBR Betó, suco Madohi, David Cabral, estudante universitário, diz que o barulho já alterou totalmente o seu ritmo de vida. “Tapo os ouvidos com almofadas. Tentei começar a estudar às duas ou três da madrugada, que é quando devia estar tudo calmo. Mas com o barulho dos vizinhos, muitas vezes, nem isso consigo”, lamenta.
David dorme às 22h e acorda às 2h para estudar, voltando a descansar entre as 6h e as 9h da manhã. “Sei que não é saudável, mas é a única forma de encontrar algum silêncio. Só consigo concentrar-me, quando tudo está calmo”, conclui.
No entanto, essa paz e tranquilidade é, para muitos, quase impossível de alcançar. Em várias zonas residenciais, os vizinhos ligam colunas e tocam música entre as 20h e as 23h, outras vezes, das 22h até às 2h da madrugada, ou mesmo da meia-noite até de manhã. Embora não aconteça todos os dias, é frequente aos fins de semana — e, por vezes, entre segunda e quarta-feira.
“Quando fazem barulho, eu espero até que parem. Mas, às vezes, não param e então tento voltar a dormir, o que é difícil. Fico mesmo zangado, chego a dizer palavrões. Tapo os ouvidos com almofadas, mas há noites em que não dá para aguentar”, partilhou o jovem.
Diz que nunca confrontou os vizinhos, com receio de que a situação se agrave. “Eles costumam estar bêbedos quando fazem barulho. Já houve casos em que atiraram coisas para as casas de quem os tentou chamar à razão”, contou.
“O problema é que temos leis, mas não são aplicadas. As pessoas continuam a fazer barulho em todo o lado”, lamentou. Explicou que nunca procurou o chefe de suco, porque não sabe onde o encontrar nem tem contacto. Gostaria de reportar o caso às autoridades locais e à PNTL, mas sente-se desinformado. “Às vezes, falo em tom de brincadeira com eles sobre o barulho, quando estamos juntos e estão sóbrios, mas não entendem”, acrescentou.
Também em Fatuhada, Díli, uma família enfrenta noites mal dormidas há vários meses, devido à música alta vinda de um restaurante mesmo ao lado de casa. Eufrozina Soares Martins contou que o estabelecimento, um restaurante de comida Lalapan, funciona em frente a uma loja contígua à sua casa, das 18h até às 5h da madrugada, perturbando-lhe o sono. “Estou cansada. Depois de trabalhar todo o dia, não consigo dormir para recuperar. A saúde começa a ressentir-se”, disse.
A moradora explicou que, normalmente, se deita às 22h e acorda às 5h, mas, com o barulho, desperta às 2h da madrugada e tem dificuldade em voltar a dormir. “Já tentei falar com os donos. Nos dias seguintes ainda fizeram mais barulho, como se estivessem a gozar comigo. Não há descanso. Tocam música como se fosse uma discoteca”, criticou.
Confrontada com as queixas, Sandra Herawati, dona do restaurante, negou tocar música até às 2h ou 3h da manhã. “Desligamos a música por volta das 23h ou meia-noite. Só voltamos a ligar por volta das 5h30, quando começamos a arrumar as coisas — mas não com o volume alto”, justificou.
Afirmou ainda que já recebeu uma chamada de atenção da PNTL para evitar o volume elevado. “Sabemos que não devemos fazer barulho. As pessoas querem descansar, há quem esteja doente ou tenha bebés”, reconheceu.
Apesar disso, Sandra relativizou a queixa da vizinha. “Vendemos numa via pública, não num beco. Já fui contactada por uma moradora, mas eu própria volto para casa à meia-noite. Liguei aos funcionários e disseram que foram os clientes que pediram música. Quando peço para desligar, ficam zangados”, contou.
Sobre o ruído contínuo, a empresária defendeu-se: “Se calhar são os próprios clientes, ou os comandantes da polícia que vêm comer, ou até o filho do dono do espaço que alugámos, que querem ouvir música. Já lhes pedi para baixar o volume e eles fazem-no, mas depois ficam zangados comigo.”
Concluiu sugerindo que, quem se sentir incomodado, “devia ir até lá e falar diretamente com quem está a fazer barulho, porque os meus funcionários não têm culpa”.
Barulho contínuo viola direitos fundamentais e põe em risco saúde pública
O ruído noturno não é apenas uma perturbação — constitui uma violação de direitos consagrados na Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL). O artigo 58.º estabelece que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, com condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.
O som constante durante a noite rouba precisamente esse conforto, paz e privacidade. O lar transforma-se num ambiente barulhento e hostil, incapaz de oferecer o repouso necessário. A exposição prolongada a este tipo de poluição sonora pode afetar gravemente o bem-estar mental e a saúde em geral.
Já no plano legal, o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 33/2008, sobre Higiene e Ordem Pública — recentemente alterado pelo Decreto-Lei n.º 3/2024, em janeiro do ano passado — é claro: É proibido “produzir ruídos que perturbem o sossego público, entre as 21:00 horas e as 06:00 horas, salvo licença concedida pela Autoridade Municipal”. O incumprimento pode ser punido com uma coima que varia entre 5 e 500 dólares, se for cometido por pessoa singular, e 50 e 1000 dólares, para pessoa coletiva.
Apesar disso, as denúncias persistem e a fiscalização parece limitada. O chefe de suco de Fatuhada, Marcelino Soares, explicou que, quando se verificam casos de barulho nas aldeias, a primeira medida é alertar os responsáveis. “Se a situação se repetir três vezes, então as autoridades de segurança são chamadas a intervir”, garantiu.
O Diligente tentou obter esclarecimentos junto do chefe do Gabinete de Assessoria Jurídica da Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL), mas, segundo informação recolhida, o responsável encontra-se fora de Díli e não teve disponibilidade para responder às perguntas.
O Secretário de Estado para os Assuntos da Toponímia e Organização Urbana, Germano Brites, reforçou a importância de cumprir o decreto-lei sobre ruído, numa intervenção no programa do Governo transmitido pela RTTL, no início deste mês.
“À noite, devemos ter cuidado com a música”, alertou, apelando à redução do volume para não perturbar o descanso dos vizinhos — mesmo em contexto de festa. O governante afirmou ainda que a própria Secretaria pode intervir em conjunto com as forças de segurança, caso receba uma queixa formal.
Barulho e saúde: o alerta da OMS
A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica o ruído ambiental como uma preocupação crescente de saúde pública, com impactos negativos comprovados no bem-estar humano. O termo “ruído ambiental” refere-se ao som proveniente de várias fontes, como tráfego, atividades industriais e música amplificada, especialmente em contextos de lazer — como ouvir música alta em casa ou na rua.
Para além de causar incómodo, o ruído ambiental aumenta comprovadamente o risco de doenças como hipertensão arterial e doença cardíaca isquémica. A OMS associa ainda este tipo de poluição sonora a distúrbios do sono, perda auditiva, zumbido, dificuldades cognitivas, complicações na gravidez e problemas de saúde mental.
As diretrizes da OMS para o ruído comunitário recomendam que, durante a noite, o nível sonoro nos quartos não ultrapasse os 30 decibéis (dB(A)) para garantir um sono reparador. Para o ruído exterior, a recomendação é manter a média anual abaixo dos 40 dB(A), de forma a prevenir efeitos adversos na saúde.
A organização alerta ainda que muitas pessoas — sobretudo crianças e jovens — estão em risco de desenvolver perda auditiva devido ao uso prolongado de dispositivos de audição pessoal em volumes elevados. Por isso, sublinha a importância de seguir as normas e regulamentações legais em vigor, de forma a evitar o agravamento da deficiência auditiva provocada pelo ruído excessivo.