“Barulho” para uns, silêncio para outros: As contradições da visita do Papa a Timor-Leste

Cerca de 600 mil pessoas participaram na missa em Tasi-Tolu/Foto: página oficial do Primeiro-Ministro

“Cuidado com os crocodilos” e “continuem a ter filhos” são mensagens do Papa Francisco que têm suscitado debates entre os timorenses nos últimos dias. O Papa também encorajou os jovens a “fazer barulho”, mas a liberdade de expressão em Timor-Leste foi limitada no contexto desta visita histórica e emocionante. Por outro lado, os apelos para que o Papa Francisco tomasse uma posição de apoio às vítimas de abusos sexuais por parte do clero durante a visita ao país foram em vão.

A visita do Papa Francisco foi um momento histórico para Timor-Leste, com 97,5% da população católica, segundo o censo de 2022. Esta visita foi também marcada pelo maior despejo de pessoas e pela rápida melhoria das estradas. Na véspera da chegada do Papa, centenas de pessoas foram despejadas das suas casas e muitos vendedores ambulantes perderam o seu sustento para “abrir caminho” à visita.

A chegada do Papa, prevista para as 14h10 do dia 9 de setembro de 2024, gerou grande entusiasmo entre os cidadãos, que começaram a dirigir-se ao aeroporto e às estradas protocolares por volta das 10h da manhã. Envergando camisolas brancas com o rosto do Papa e empunhando três bandeirinhas – de Timor-Leste, do Vaticano e do Papa – as pessoas sacrificaram-se, esperando horas sob o sol intenso, protegidas apenas por guarda-chuvas brancos e amarelos com o logótipo do Vaticano.

Nas ruas, vigiadas por seguranças que mantinham as pessoas longe da estrada, a multidão agitava as bandeiras, filmava e tirava fotografias, gritando entusiasticamente. Mesmo com a passagem rápida do Papa, muitas pessoas choraram por poder vê-lo pessoalmente.

Por onde o Papa passou, havia sempre quem o esperava para o saudar. A missa em Tasi-Tolu foi o ponto alto da aglomeração, reunindo cerca de 600 mil pessoas, quase metade da população timorense.

Segundo o representante da Santa Sé em Timor-Leste, o Monsenhor Marco Sprizzi, o Santo Padre ficou “muito impressionado com o entusiasmo, alegria e sorriso, ele falou muitas vezes do sorriso dos timorenses. Ficou impressionado com a quantidade de jovens, crianças, mas também gostou muito da presença dos anciãos”, realçou.

O Núncio acrescentou que, no encontro com o clero, na Catedral, o Sumo Pontífice exortou que a Igreja timorense continuasse perto do povo, e “criticou qualquer atitude de superioridade e de distância. Aconselhou os sacerdotes a serem humildes e a não se aproveitarem do respeito do povo para ficarem numa posição de superioridade”.

Durante os três dias da sua estadia, nos quais visitou pessoas com necessidades especiais e se encontrou com jovens, o Papa lançou muitas mensagens, que continuam a ser tema de discussão entre os timorenses.

Num dos maiores eventos religiosos da história recente de Timor-Leste, o Papa elogiou a juventude e a beleza do país e apelou ao cuidado das crianças e dos idosos. No entanto, a sua passagem não esteve isenta de controvérsias, tanto pelas suas declarações como pelas ações em torno da sua vinda.

Durante a homilia, o Papa destacou os perigos da autossuficiência e do egoísmo dos poderosos, que deixam os mais pobres na miséria, apelando à humildade. No entanto, a preparação para a sua vinda trouxe ironias amargas, com o despejo de famílias para abrir espaço às infraestruturas necessárias.

O Governo também foi alvo de críticas pelo excessivo gasto público, num valor estimado de 12 milhões de dólares, para a organização da visita, num país que enfrenta sérios problemas económicos, incluindo altas taxas de desemprego, pobreza e subnutrição e trabalho infantil.

Para Virgílio Guterres, provedor dos Direitos Humanos e Justiça, a visita do Papa não trouxe apenas a luz da religião, “mas também nos deixou uma fogueira. Agora, as pessoas procuram ter benefícios com esta fogueira. Alguns querem grelhar peixe, outros cozinhar frango para comer. Outros estão preocupados com o fumo deste fogo”, realçou o provedor numa alusão àqueles que terão procurado tirar proveito da visita do Papa para os seus próprios interesses pessoais ou políticos. Neste sentido, segundo o provedor, a visita apostólica, embora positiva em muitos aspetos, também abriu espaço para que pessoas tentem usá-la de diferentes maneiras, algumas legítimas e outras oportunistas.

Mais de 52 mil crianças timorenses, entre os cinco e 17 anos, são sujeitas diariamente a algum tipo de trabalho infantil/Foto: DR

 

“Continuem a ter filhos”

O pedido do Papa para os timorenses continuarem a ter filhos gerou apreensão. Para muitos, esta declaração soou desconectada da realidade de um país onde muitas famílias já lutam para sustentar os filhos que têm.

O número de habitantes em Timor-Leste não para de aumentar desde 2004, ano em que se contabilizaram 923 mil timorenses, e chegou aos 1,3 milhões, em 2022, segundo o Censo da População. Em relação a 2015, data do Censo anterior, o número atual representa um crescimento anual da população de 1,8%.

Já em 2021, o Banco Mundial dava conta que o crescimento populacional de Timor-Leste era o mais elevado do Sudeste Asiático, situando-se nos 1,6% anuais. Para este valor, contribui aquela que é a mais alta de taxa de fertilidade da região – 3,1 filhos por mulher.

Enquanto em países de rendimento médio-alto ou elevado o crescimento populacional não é problemático, um aumento da população para um país de rendimento médio-baixo, como o caso de Timor-Leste, tem várias consequências negativas, como explica o Departamento das Nações Unidas para Assuntos Económicos e Sociais. “O crescimento demográfico torna mais difícil suportar o aumento das despesas públicas per capita necessário para erradicar a pobreza, acabar com a fome e a subnutrição e garantir o acesso universal aos cuidados de saúde, à educação e a outros serviços essenciais.”

Note-se que, de acordo com um relatório do Banco Mundial, divulgado este ano, apenas 30% da população em idade laboral (cerca de 234 mil pessoas) está empregada formalmente, ou seja, com algum tipo de contrato de trabalho. Segundo o relatório do Índice do Desenvolvimento Humano, elaborado pela Organização das Nações Unidas, os cidadãos sobrevivem com 1,60 dólares por dia, muito abaixo da linha da pobreza internacional: 2,15 dólares por dia. Já o Índice de Pobreza Multidimensional mais recente indica que 42% da população vive em condições de vulnerabilidade.

O Índice Global da Fome de 2023 (o mais atual), demonstrou que quase metade das crianças (46,7%) com menos de cinco anos em Timor-Leste sofre de subnutrição crónica, uma condição em que uma pessoa tem baixa estatura para a sua idade e deficiência de energia, proteínas, vitaminas e minerais essenciais. Segundo o documento, com 74,5 mil crianças subnutridas – número calculado com base no censo de 2022 –, o país tem a quarta pior percentagem de nanismo infantil a nível mundial.

Mais de 52 mil crianças timorenses, entre os cinco e 17 anos, são sujeitas diariamente a algum tipo de trabalho infantil. São dados do estudo da Comissão Nacional contra o Trabalho Infantil (CNTI), que fez o levantamento do número de crianças trabalhadoras em Timor-Leste, de 2016 a 2022.

Quanto a este assunto, Sprizzi sublinhou ainda que não se deve exagerar, que se deve ter filhos de acordo com as possibilidades, de forma a garantir uma nutrição adequada e educação. “O nosso ensinamento não é ter filhos como coelhos”, sublinhou.

Tjitske Lingsma, jornalista holandesa que investigou e divulgou o caso de abusos sexuais envolvendo o ex-bispo Ximenes Belo, por outro lado, evidenciou a contradição no discurso do Papa que, no Palácio Presidencial, se mostrou preocupado com o problema da emigração de timorenses para o estrangeiro devido à falta de trabalho e à luta para suprir as necessidades básicas em Timor-Leste. “Estas preocupações são difíceis de conciliar com o seu apelo para continuar a ter muitos filhos. Muitas pessoas já enfrentam dificuldades com as necessidades mais essenciais, como comida, abrigo, água e educação”, realçou.

Segundo a jornalista, criar filhos é uma grande responsabilidade que requer recursos, não só das famílias, mas também do Estado. “Para as mulheres, estar grávida é um grande fardo físico, especialmente quando enfrentam fome e falta de acesso a cuidados de saúde. No passado, os padres aqui na Holanda, onde eu vivo, também incentivavam as pessoas a terem muitos filhos. No entanto, isso é uma intrusão na privacidade”.  A jornalista considera que o apelo do Papa expressa “as suas visões conservadoras sobre a vida familiar, com o intuito de assegurar que a Igreja continue a ter novos seguidores”.

Já para o jurista timorense Armindo Amaral, o chefe máximo da Igreja Católica não teve acesso a informações corretas. “O Papa transmitiu esta mensagens, porque, suspeito, algumas entidades não foram honestas ao fornecer dados à Santa Sé, o que resultou numa mensagem desta natureza,” observou.

A mensagem do Papa, segundo o jurista, baseia-se no evangelho, que diz: “crescei e multiplicai-vos”. No entanto, no contexto de Timor-Leste, Armindo considera que é preciso ter em consideração que, se há muitas crianças, não há postos de trabalho, o sistema de saúde e a educação falham e a taxa de subnutrição aumenta.

“Penso que, quando o Papa nos incentiva a ter muitos filhos, não quer dizer que devamos ter muitos filhos a qualquer custo, caso contrário estas crianças não vão crescer com dignidade”, argumentou o provedor dos Direitos Humanos e Justiça, acrescentando que o Papa quer que Timor-Leste continue a ter um povo jovem.

“Fiquem atentos! Em algumas praias, vêm crocodilos!”

Outro ponto que gerou discussão foi a metáfora utilizada pelo Papa em relação aos “crocodilos externos” que, segundo ele, ameaçam a cultura timorense. “Estejam atentos a esses crocodilos que vos querem mudar a cultura, mudar a história. Mantenham-se firmes e não se aproximem desses crocodilos que mordem. E mordem muito”.

Estas palavras geraram diversas interpretações, com alguns a vê-las como uma advertência contra influências externas que poderiam prejudicar a identidade cultural do país, enquanto outros viram nelas uma alusão mais vaga a perigos não especificados.

Recentemente, o Vatican News publicou um resumo das visitas do Papa à Ásia, onde ele explicou o que pretendia dizer com a metáfora dos crocodilos. “Quando falei de crocodilos, estava falando das ideias que podem vir de fora para arruinar essa harmonia que vocês têm”, consta na publicação no Facebook.

No entanto, a notícia do Vatican News continua a não esclarecer quais são as ideias que podem estragar a cultura timorense.

“Ao ouvir as palavras do Papa em Timor-Leste, ficou claro para mim que ele pode ser muito claro quando quer, assim como vago e ambíguo”, referiu Tjitske Lingsma. A jornalista considera que a melhor interpretação foi a do provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, que publicou no Facebook a seguinte frase: “Os crocodilos da terra são mais perigosos do que os crocodilos da praia”.

O Monsenhor Marco Sprizzi, porém, não tem dúvidas acerca do sentido da metáfora que tanta polémica tem causado. “Sabemos que o crocodilo também é um animal feroz, um animal que morde, que pode matar. Então, às vezes, há entidades que atacam, que mordem e que podem destruir a cultura local, impondo parâmetros, modelos de vida distantes da fé, das tradições e do sentido religioso da vida”, explicou.

Acrescentou que se tratam de modelos de consumismo, materialismo, indiferença religiosa e falta de cuidado com a família. “Então o Papa avisou para os timorenses terem cuidado com esse tipo de perigo para a cultura e o espírito religioso”, acrescentou o núncio.

Não foi, contudo, capaz de referir entidades específicas no país que imponham este tipo de valores, que, segundo o Papa, querem destruir a cultura timorense.

Questionado se o Santo Padre estaria a criticar as famílias não convencionais e minorias como a comunidade LGBTQIA+, o Núncio foi perentório. “De jeito nenhum. Tenho a certeza disso. O Papa já mostrou muitas vezes o seu carinho pelas pessoas LGBTQIA+”, afirmou.

Não obstante, Sprizzi concordou que a cultura deve mudar e evoluir se puser em causa os direitos humanos. “O Papa disse, no Palácio Presidencial, que é preciso respeitar e promover as mulheres e a fé deve animar, guiar e purificar a cultura, o que significa que a cultura deve melhorar, progredir e corrigir algumas coisas à luz do evangelho e do ensinamento da Igreja”, refletiu. O significado de cultura deve ser discutido, de acordo com o jurista Armindo Moniz Amaral. “Cultura no contexto original timorense ou é a religião católica que consideramos cultura? Se dissermos que a religião católica é a nossa cultura, temos de reconhecer que veio de fora. Temos de ser honestos. Se a fé católica for considerada cultura, teríamos de reproclamar Timor-Leste como um Estado Católico”, salientou.

Defende ainda que os crocodilos de fora não são tão ferozes como aqueles que devoram ou suprimem os direitos dos outros, ou que manipulam o povo. “Por isso, os crocodilos internos são mais perigosos do que os que vêm de fora. Os crocodilos que chegaram à beira-mar não representam uma ameaça tão grave para nós”.

Alertou ainda para a necessidade de se discutir abertamente para que as pessoas compreendam a mensagem do Papa. “Caso contrário, quem tem poder pode traduzir a mensagem do Santo Padre conforme os seus interesses e impedir que outras pessoas façam interpretações diferentes, o que pode levar a uma ditadura, como se fossem eles os guardiões das palavras do Papa”.

Neste sentido, Armindo Amaral teme que, se as mensagens do Papa forem interpretadas de acordo com uma visão limitada, pode dar-se início a uma perseguição das minorias num Estado de Direito democrático.

“Por isso, é necessário ver a questão de forma integral, porque o Papa já divulgou um documento que permite que pessoas LGBTQIA+ recebam a bênção. O Papa é uma pessoa progressista, respeita a diferença e os grupos minoritários”, acrescentando que os católicos devem obedecer aos documentos que o Papa decreta no Vaticano. “A sua homilia não é superior aos documentos”, reiterou.

Para Virgílio Guterres, o crocodilo são as coisas más, “as coisas que vieram para estragar a nossa fraternidade: discriminação, bullying, abuso sexual, pedofilia, corrupção, arrogância, vaidade. São estes os crocodilos que nos podem morder a qualquer momento e estragar a nossa sociedade”.

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O Papa Francisco incentivou os jovens a buscar liberdade com responsabilidade, compromisso com o cuidado do planeta e fraternidade entre eles /Foto: DR

“Sejam independentes e responsáveis e façam barulho”

Com 65% da população constituída por jovens, a Comissão Nacional da Juventude Católica Timorense organizou um diálogo entre o Papa Francisco e a juventude, no Centro de Convenções em Díli, na manhã de dia 11 de setembro. Os quatro jovens escolhidos para apresentarem as suas perguntas destacaram questões como a preservação ambiental, a importância da família, a tolerância religiosa e os desafios enfrentados pela juventude em Timor-Leste, incluindo o impacto negativo das redes sociais e a violência entre jovens.

Rogéria dos Reis Batista destacou a necessidade de proteger o meio ambiente e como isso influencia a vida espiritual. Outros jovens, como Ilham Salmin Bazher, valorizaram a convivência religiosa pacífica, mas criticaram o uso das redes sociais para discriminação. Cecília Afrânio Bonaparte expressou preocupação com a perda do papel central da família, enquanto Nelson Mendonça da Conceição abordou a violência associada às artes marciais.

Em resposta, o Papa Francisco incentivou os jovens a buscar liberdade com responsabilidade, compromisso com o cuidado do planeta e fraternidade entre eles. “Não fazem bullying! Isto é gozar com a vulnerabilidade dos outros e é má atitude”, avisou.

Alertou para os perigos do vício, da arrogância e do uso excessivo de tecnologia, e chamou os jovens a respeitar os mais velhos e preservar a história e a memória do país. O Santo Padre também apelou para que os jovens digam “não” ao ódio, promovam o amor e a reconciliação, e resistam às tentações de “felicidades” temporárias, como as drogas, encorajando-os ainda a fazerem “barulho”.

Não fez barulho, mas a sua liberdade foi limitada

Durante a visita do Papa a Timor-Leste, a Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL) proibiu qualquer manifestação de solidariedade para com o povo da Palestina e da Papua Ocidental.

O comandante-geral da PNTL, Henrique da Costa, afirmou que a polícia tem a competência de impedir tais ações para evitar confusões, justificando que o foco deveria ser apenas a visita papal. Desafiou ainda que qualquer violação à Constituição fosse contestada judicialmente, referindo-se ao artigo 10.º, que garante solidariedade com povos em luta pela libertação nacional.

Foi precisamente por estes valores que o povo timorense lutou durante 24 anos.  Durante a visita do Papa João Paulo II em 1989, quando Timor-Leste estava sob o domínio da Indonésia, foram os próprios timorenses que se manifestaram para atrair a atenção internacional para a situação dramática vivida no país. No entanto, agora, os mesmos timorenses são proibidos de manifestar solidariedade com outras nações oprimidas, como a Papua Ocidental e a Palestina. Esta proibição revela uma incongruência do Governo timorense, que parece ter esquecido o seu próprio passado de luta e opressão, preferindo preservar as boas relações diplomáticas com a Indonésia, em detrimento dos princípios de solidariedade e justiça que outrora defendia.

Na manhã de 10 de setembro, Nelson Xavier, membro da Associação dos Deficientes de Timor-Leste (ADTL), aguardava na primeira fila da Catedral de Díli para receber a bênção do Papa. No entanto, expressou tristeza ao lembrar do sofrimento dos povos palestiniano e papua ocidental. Como forma de solidariedade e por não ter nenhum papel com ele, Nelson escreveu “Free West Papua” e “Free Palestina” em bandeiras, juntamente com os nomes dos seus familiares.

Antes da chegada do Papa, os seguranças confiscaram as bandeiras. Nelson foi detido e levado ao comando municipal da PNTL em Caicoli, onde ficou entre 3 a 4 horas, para “identificação”. Foi libertado mais tarde, com a informação de que o seu caso seria encaminhado para o Ministério Público e que poderia ser chamado a Tribunal.

Henrique da Costa informou que o jovem foi levado para a esquadra para identificação por suspeita de crime, mas, depois de consultar o Ministério Público, a PNTL recebeu diretrizes para libertar Nelson Xavier por não ter cometido nenhum crime.

De acordo com o artigo 53.º do Código de Processo Penal de Timor-Leste, os órgãos de polícia criminal podem proceder à identificação dos cidadãos que se encontram em lugar público somente diante de “fundadas suspeitas da prática de crimes.” A lei também determina que o indivíduo só pode ser conduzido para o posto policial “se a pessoa não for capaz de se identificar ou se recusar ilegitimamente a fazê-lo”.

No caso de Nelson Xavier, a razão da detenção foi o facto de ele ter escrito a sua mensagem de solidariedade nas bandeiras. O jovem destacou que sua intenção não era desrespeitar os símbolos nacionais, mas apenas manifestar solidariedade.  Observou-se que, após a missa, várias bandeiras foram descartadas no lixo.

“Eu cooperei com a Polícia, mas não me sentia seguro e confortável, porque os policiais, a caminho do carro, filmaram-me e disseram-me: “ainda bem que não és normal. Se fosses, já tinhas vomitado sangue. És milícia? És muçulmano? Porque não prestas solidariedade a Israel? E apoias a Papua Ocidental porquê? Esse país nem conhece Timor-Leste”.

Quanto à atuação da polícia, não foi possível questionar o comandante-geral, que se afastou de jornalistas antes de a entrevista terminar.

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Em 2020, o Vaticano aplicou sanções a Ximenes Belo, limitando as suas viagens e o exercício do ministério, proibindo-o de ter contacto voluntário com menores e de voltar a Timor-Leste/ Foto: Manuel Roberto (arquivo)

Silêncio ensurdecedor

Em viagens anteriores, o Papa pediu perdão em países como Irlanda e Chile, mas em Timor-Leste, onde figuras da Igreja, como o Bispo Ximenes Belo, foram acusadas de abusos, nada foi dito.

Durante a visita aos Estados Unidos da América, em 2015, o Papa Francisco pediu desculpas pelos abusos sexuais cometidos por membros do clero. No encontro com as vítimas e sobreviventes, expressou vergonha e arrependimento.  Em 2018, no Chile, o pediu perdão pelos abusos e encobrimento dos mesmos por parte de membros da Igreja.  No mesmo ano, durante a visita à Irlanda para o Encontro Mundial das Famílias, foi a vez das vítimas irlandesas. No Canadá, em 2022, pediu desculpa às crianças indígenas separadas das famílias e vítimas de abuso nas escolas residenciais. Na Jornada Mundial da Juventude, realizada em Lisboa, em 2023, encontrou-se com algumas vítimas a quem pediu perdão.

A BishopAccountability.org, uma organização americana que se dedica a documentar e a abordar os abusos sexuais na Igreja Católica, apelou ao Cardeal Sean O’Malley, que lidera a Comissão do Vaticano para a Proteção de Menores, para pressionar o Papa Francisco a tomar uma posição de apoio às vítimas durante a visita a Timor-Leste.

Segundo o Núncio, o pedido de desculpas acontece “normalmente num encontro com as vítimas ou quando o Papa é questionado sobre o assunto por jornalistas. Não acontece de forma genérica. Ou quando se trata desse assunto em momentos dedicados a isso”.

Argumentou ainda que, quando o Papa pede uma desculpa geral, não se está a referir só às vítimas de um país, “pede desculpa a todas as vítimas de abusos”, explicando que normalmente os encontros com vítimas são organizados a pedido destas. “E aqui, sinceramente, não recebemos nenhum pedido de vítimas para encontrar o Santo Padre. O Santo Padre conhece a situação. Aprovou as sanções que foram aplicadas às pessoas que cometeram abusos contra crianças e pessoas frágeis em Timor-Leste”, frisou.

Questionado se não teria sido importante ter pedido desculpa e ter esclarecido o povo, uma vez que muitos timorenses acham que as vítimas estão a mentir, no caso do bispo Ximenes Belo, Marco Sprizzi limitou-se a dizer que não se sente à altura para dar sugestões ao Santo Padre.

Já o provedor dos Direitos Humanos e Justiça lembrou que “na liderança deste Papa, há, pelo menos, dois casos de abusos sexuais contra menores, o caso de Richard Daschbach e o de Dom Carlos Ximenes Belo”. Virgílio Guterres considera que o Papa, na sua intervenção no Palácio Presidencial, referiu implicitamente as vítimas. “Não esqueçamos também crianças e adolescentes feridos na sua dignidade. Todos somos chamados a agir de forma responsável para evitar qualquer tipo de abuso e garantir que as nossas crianças cresçam tranquilamente”, mencionou o Santo Padre.

O provedor lamenta, porém, que Timor-Leste não tenha exigido ao Vaticano um pedido público de desculpas. “Mas fico feliz, porque os colegas da FONGTIL [Fórum das Organizações Não Governamentais de Timor-Leste] apresentaram uma carta ao Papa e mencionaram as vítimas de abusos sexuais por membros do clero em Timor-Leste. Especulo que a Igreja quis evitar afirmações que pudessem causar reações”. Para o provedor, terá havido aconselhamento por parte do representante do Vaticano em Timor-Leste para que o Papa não falasse sobre o assunto.

A jornalista Tjitske Lingsma mostrou-se dececionada por o Papa não ter abordado diretamente os abusos sexuais cometidos pelo clero. Lamentou que apenas tenha feito um comentário geral sobre abusos num sentido mais amplo, “uma referência indireta, oculta e vaga aos casos na Igreja em Timor-Leste”, considerando que faltou nos seus discursos as palavras “abusos sexuais cometidos pelo clero”.

“Nem sequer mencionou o caso do bispo Belo, que foi considerado culpado pelo Vaticano em 2020 por abusos sexuais de rapazes e foi punido com limitações nas suas viagens e na celebração de missas, além da proibição de contato com menores e com Timor-Leste”, lamentou, acrescentando que foi precisamente por isto que o bispo Belo não esteve presente durante a visita do Papa. “No entanto, a sua ausência não foi explicada”, referiu a jornalista.

O Papa também não mencionou o caso do ex-padre Richard Daschbach, considerado culpado pelo próprio Vaticano por abusos sexuais de raparigas no abrigo Topu Honis em Oé-Cusse e foi destituído. Desde a sua condenação pelo tribunal timorense, Daschbach está preso em Timor-Leste.

Tjitske lamenta que o Papa nem sequer se tenha dirigido minimamente às vítimas. “Durante a sua visita, falou sobre o sofrimento das pessoas, abraçou pessoas com deficiências e apelou aos jovens para se expressarem, mas ignorou o sofrimento das vítimas de membros do próprio clero, pelo qual o líder da Igreja é responsável.”

Neste sentido, a jornalista considera que o Papa falhou ao não pedir desculpa aos sobreviventes de abusos sexuais e ao não lhes oferecer justiça, “não transmitindo uma mensagem de compaixão às vítimas que sofrem de trauma, medo e isolamento. Nem uma palavra de bondade”.

Mostrou-se preocupada por, ao não abordar os abusos sexuais cometidos pelo clero em Timor-Leste, o Papa estar a “fortalecer as pessoas que estão em negação e têm ameaçado os sobreviventes”. Para a jornalista, foi uma falha não aproveitar a oportunidade para combater este crime. “Ao não falar, o Papa reforça o tabu e perpetua a difícil situação das vítimas que são forçadas a permanecer em silêncio sobre o dano que lhes foi infligido”, destacou.

“O Papa escolheu permanecer em silêncio, proteger o status quo e os interesses da igreja, sacrificando as vítimas. Apesar de algumas mudanças, esta tem sido uma característica dominante na política da Igreja em lidar com abusos sexuais e exploração cometidos pelo seu próprio clero”, concluiu.

A grandiosidade do evento e o entusiasmo generalizado foram inegáveis, mas a visita do Papa Francisco a Timor-Leste deixou uma marca agridoce. A alegria e o reforço da fé de muitos contrastam com a tristeza de quem perdeu casas e meios de subsistência durante os preparativos para a visita. O Papa centrou o discurso na necessidade de investimento na educação e no emprego, mas, ao mesmo tempo, apelou à natalidade, num país que não consegue oferecer recursos dignos à maioria desses jovens. Foi precisamente aos jovens que pediu que fizessem “barulho”, mas alguns foram silenciados no seu apoio a causas que também já foram timorenses. Também os cidadãos e os jornalistas foram impedidos de gravar ou fazer cobertura da repressão das autoridades contra os vendedores de rua. E, do Papa, as vítimas timorenses de abuso sexual não mereceram mais do que referências sobre a necessidade de proteger as crianças de abusos.

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  1. Excelente peca jornalistica, como sempre, do Diligente.
    De 9 a 11 do corrente mes, eu vesti-me de preto(luto). E pus a bandeira a meia haste. Nao porque nao sou catolico apostolico romano ou nao queria que o Papa visitasse TL. Fi-lo porque me morreu o coracao de um enfarto cardiaco. Tirar 12 milhoes de dolares do futuro das criancas de TL de ter melhor educacao, saude, agua canalizada, etc…foi um golpe muito duro. Se fosse Jesus ELE nao o faria tenho a certeza. Ha sempre crocodilos, eles vao e voltam. Mais filhos para a miseria? Senhor tende piedade de nos!

  2. Se o Eusebio e o Cristiano Ronaldo tem tido o suporte de 12 milhoes de dolares como teve a recente visita de Messi(as), o barulho teria sido muito maior.

    Ze Rai Nakdoko

  3. Excelente, excelente, excelente reportagem Diligente! Obrigada por nos mostrarem o outro lado e por porem as pessoas a pensar. Li outras reportagens sobre esta visita, mas nenhuma com esta profundidade. Mais textos como este, por favor…

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