O alargamento da estrada entre Kuluhun e Fatu Ahi está a gerar forte contestação por parte dos moradores, que denunciam falta de diálogo, ameaças de despejo forçado e ausência de indemnizações. A intervenção do Governo é criticada por alegadas violações de direitos humanos e falhas de planeamento.
A segunda marcação de terrenos para o alargamento da estrada entre Kuluhun e Fatu Ahi, em Becora, está a gerar contestação entre moradores e especialistas. A primeira marcação foi feita no início de 2025, mas, em fevereiro, surgiu uma nova demarcação sem aviso prévio, o que levou a comunidade a organizar uma conferência de imprensa a 3 de março para exigir esclarecimentos ao Ministério das Obras Públicas (MOP). No dia 10 de março, foi também enviada uma carta formal ao MOP a solicitar mais informações.
No dia 10 de janeiro, os moradores do suco de Becora reuniram-se com a equipa responsável pelo projeto, composta por representantes da Secretaria de Estado dos Assuntos da Toponímia e da Organização Urbana (SEATOU), do Ministério da Administração Estatal, da Direção de Terras e Propriedades do Ministério da Justiça e do MOP. Ficou estabelecido o prazo de um mês, de 10 de janeiro a 10 de fevereiro, para que a população retirasse os seus pertences e tratasse da documentação.
Promessas por cumprir
Segundo José Ximenes, residente do suco de Kamea, a equipa do Governo garantiu que manteria o diálogo com a população e que as listas seriam colocadas na sede do suco, o que nunca se concretizou. “Disseram que haveria um projeto de alargamento da estrada e que devíamos cooperar. Mas, no fim, nada aconteceu conforme prometido”, afirmou.
Adelina Meluk Lubo, outra moradora afetada, afirmou que a equipa da SEATOU prometeu seguir os procedimentos legais, incluindo o tratamento do termo de aceitação, mas considerou o prazo dado à comunidade demasiado curto. “Um mês não foi suficiente para que as pessoas se organizassem e retirassem os seus bens”, lamentou.
Ainda de acordo com José Ximenes, após o primeiro diálogo, muitos moradores desmontaram as suas casas e espaços comerciais, mas foram surpreendidos com uma nova medição dos terrenos, alargando mais três metros para dentro das propriedades, sem qualquer aviso. “Isso gerou grande insatisfação”, afirmou.
Falta de informação e responsabilidades difusas
A comunidade queixa-se da falta de informações claras sobre o tratamento de documentos e da ausência de respostas por parte do MOP, da SEATOU e da Direção de Terras e Propriedades. “Ninguém nos deu uma resposta clara”, disse José Ximenes.
Adelina sublinhou ainda os impactos económicos do despejo: “Este tipo de ação prejudica os negócios locais e afeta os rendimentos das famílias”. Acrescentou que os agentes da SEATOU fizeram ameaças: “Disseram-nos que era melhor desmontarmos as nossas coisas, antes que as máquinas do Governo chegassem. Se não o fizéssemos a tempo, perderíamos tudo”.
Os moradores relatam terem sido encaminhados de uma instituição para outra sem obter respostas. “Fomos à SEATOU, depois enviaram-nos ao MOP, que nos remeteu para Rai Kotu. De lá, mandaram-nos para Terras e Propriedades. Isto mostra que a equipa está desorganizada”, criticou Ximenes.
O chefe interino do suco de Becora, Luís Soares, afirmou que a população exige que a indemnização da primeira fase seja resolvida antes de se iniciar a segunda. “Apareceram de forma repentina a dizer que estavam a cumprir ordens de trabalho”, relatou. Informou ainda que o Governo não disponibilizou listas de moradores afetados para preenchimento de documentos. “Estimo que existam cerca de 20 habitações afetadas, mas a maioria das áreas são espaços de trabalho”, indicou.
Críticas da sociedade civil e de especialistas
A Rede Ba Rai, organização que defende os direitos fundiários da população, denunciou o uso de forças militares para executar despejos forçados. Domingos Andrade, coordenador do caso, afirmou que “a equipa de despejo ameaçou demolir as casas com máquinas pesadas, caso os moradores não colaborassem”. Segundo os dados provisórios da organização, mais de 40 pessoas foram afetadas, entre habitações e espaços comerciais.
A Rede Ba Rai presta apoio em três fases: antes da evicção, durante o despejo e após, oferecendo assistência legal gratuita e apoio em mediação de conflitos. A organização pode ainda recorrer ao Ministério Público ou ao Tribunal Internacional sobre Despejos em casos de violação de direitos.
O jurista Armindo Moniz Amaral considerou que o projeto de alargamento viola o princípio do Estado de direito. “Não se pode usar o desenvolvimento como desculpa para atropelar os direitos dos cidadãos”, afirmou. Criticou a ausência de um plano detalhado e a falta de mecanismos legais para os cidadãos contestarem as decisões do Governo. “Vivemos num Estado de direito. O Governo deve criar meios para que os cidadãos possam recorrer legalmente das decisões que os afetam”, sublinhou.
Referindo-se à segunda marcação sem aviso prévio, classificou-a como violação do direito administrativo. “Qualquer decisão deve ser comunicada com antecedência, permitindo às pessoas proteger os seus bens.” Reforçou ainda que a indemnização deve ser paga antes da desocupação forçada. “A melhoria da vida das pessoas deve ser o objetivo principal num Estado democrático”, frisou.
Sobre a apresentação de documentos, o jurista defendeu o direito de todos os cidadãos a fazê-lo. “O direito de apresentar documentos deve ser sempre respeitado.” Por fim, exigiu que o Governo inclua a população afetada nas decisões: “Protestar não significa ser contra o desenvolvimento. As pessoas querem progresso, mas um progresso que as inclua”.
PDHJ acusa Governo de violar direitos humanos
O Provedor dos Direitos Humanos e Justiça (PDHJ), Virgílio Guterres, criticou as ações do Governo nos despejos relacionados com projetos de alargamento de estradas, afirmando que o Estado está a violar sistematicamente os direitos dos cidadãos. “Os cidadãos têm o direito de ser informados com antecedência razoável, para poderem defender os seus direitos”, afirmou.
Segundo a PDHJ, os casos não se limitam a Becora, mas estendem-se a outras zonas como Sengol, Ai Tarak Laran, Bidau, Tasi Tolu e Fomento. “Sem um plano de ordenamento urbano, o Governo está a demolir casas e a desrespeitar os direitos humanos”, acusou.
Virgílio Guterres destacou ainda falhas na indemnização e na comunicação com os cidadãos. A primeira fase teve algum entendimento com a comunidade, mas a segunda avançou sem explicações. “Falta planeamento, estratégia e diálogo com as comunidades”, afirmou.
A PDHJ exigiu a suspensão imediata dos despejos e a elaboração de um plano de ordenamento urbano a submeter ao Conselho de Ministros e ao Parlamento Nacional. Este plano deve incluir diálogo com as comunidades, identificação das famílias afetadas e o cálculo das indemnizações. O Provedor sublinhou ainda a ausência do Ministério da Justiça nas discussões, classificando-a como uma omissão grave.
Governo responde, mas sem detalhes
Germano Santa Brites, Secretário de Estado dos Assuntos da Toponímia e da Organização Urbana (SEATOU), afirmou que o papel da SEATOU é apenas realizar encontros com a comunidade e acompanhar os trabalhos de construção. “Se a população não cooperar, será necessário recorrer à demolição para permitir o avanço das obras”, disse. Garantiu que, em caso de danos, o Governo assumirá a responsabilidade de compensar.
Questionado sobre a segunda marcação dos terrenos, Germano afirmou que será o Ministro das Obras Públicas a esclarecer o assunto numa próxima conferência de imprensa. Sublinhou ainda que o desenvolvimento visa o bem-estar da população.
Domingos Sequeira, Diretor-Geral de Habitação e Urbanização do MOP, explicou que o projeto em Becora é piloto, com enterramento de cabos elétricos e construção de valetas, exigindo uma abordagem mais complexa. Acrescentou que a recolha de dados demorou devido à necessidade de registar cada pormenor das casas. “Estamos agora a desenhar os modelos de habitação e a calcular os custos”, referiu. Só depois será feita a assinatura dos termos de aceitação.
Gaspar de Sá Benevides, Diretor Nacional das Terras e Propriedades, reconheceu que o termo de aceitação ainda não foi elaborado e que falta realizar um último encontro com a comunidade. Sobre a falta de diálogo após a segunda marcação, afirmou que, até agora, apenas a medição foi feita. “Ainda não começámos a demolição”, disse, sem dar mais detalhes.
Enquadramento legal
A Lei n.º 8/2017, de 26 de julho, sobre a Expropriação por Utilidade Pública, estabelece que o Estado só pode expropriar terrenos privados quando não há alternativas viáveis, e deve garantir uma indemnização justa. A cidadã Adelina Meluk Lubo considera que o Governo deve seguir esta lei e criar um diálogo equilibrado com os cidadãos. “Se a equipa continuar a executar ordens sem respeito pelos nossos direitos, vamos protestar de forma pacífica e, se necessário, levar o caso a tribunal”, afirmou.
A Constituição timorense, no seu artigo 40.º, garante o direito à liberdade de expressão e à informação, incluindo o acesso a dados públicos. A ausência de comunicação eficaz por parte do Governo, apontada por diversos moradores, levanta dúvidas sobre o cumprimento do direito à informação previsto na Constituição.
Grande anarquia!