A dor que ninguém vê: o fantasma que atormenta quem perdeu parte do corpo

“Não havia forma de aliviar. Nem dá para coçar, porque já não existe essa parte do corpo”/Foto: Biomedicalcue

Martinha perdeu a perna num acidente de viação. Bruno também. Histórias diferentes, a mesma dor persistente. Em Timor-Leste, a chamada dor fantasma afeta muitas pessoas com membros amputados — uma dor invisível, constante e difícil de explicar, que mistura sofrimento físico com impacto psicológico.

Em Timor-Leste, várias pessoas que perderam membros do corpo relatam sensações de dor e comichão em partes que já não existem. O fenómeno, conhecido como dor fantasma, afeta sobretudo quem sofreu amputações devido a acidentes ou doenças, manifestando-se como uma sensação persistente, dolorosa e, muitas vezes, incompreendida.

Martinha Gomes, estudante de Direito da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL), natural de Lautém, viu a sua vida mudar para sempre em dezembro de 2015. Viajava de autocarro para a sua terra natal quando sofreu um acidente que resultou na amputação da perna esquerda.

Bruno Saldanha, jovem funcionário da Associação de Deficiência de Timor-Leste (ADTL), perdeu também a perna esquerda num acidente de mota aos 16 anos, em Liquiçá. Era 21 de dezembro e seguia com o primo para se matricular numa escola secundária. Ao perceber que não levava o uniforme da escola anterior, decidiu regressar a casa para o trocar. No caminho de volta, o excesso de velocidade provocou o acidente. Pouco depois, devido à gravidade dos ferimentos, teve de amputar a perna.

Após o internamento no Hospital Nacional Guido Valadares, a família de Bruno optou por iniciar tratamento tradicional, nomeadamente massagens. Bruno ficou três meses em casa, mas a sua saúde agravou-se. “O meu corpo começou a infetar até atingir o músculo”, recorda.

Voltou ao hospital, onde permaneceu internado mais de três meses. “A decisão de amputar a perna esquerda foi minha. Já estava há seis meses deitado na cama e até desenvolvi feridas nas costas”, contou.

Mas a dor não terminou com a operação. Bruno sente diariamente a dor fantasma, sobretudo quando utiliza a prótese. “Depois de a tirar, o sangue parece procurar o caminho antigo. Sinto que o corpo ainda tenta restabelecer a ligação com a parte amputada para que o sangue possa fluir normalmente”, explicou.

Já Martinha não sente a dor com regularidade, mas quando surge, pode ser intensa e inesperada. “Sinto desconforto, especialmente quando estou no meio de muitas pessoas. Às vezes fecho os olhos e aperto os dentes, à espera que a dor passe”, relatou.

Martinha lembra-se bem da primeira vez que sentiu a dor fantasma, logo após a operação. Ainda não estava consciente de que a perna tinha sido amputada. “Usei as mãos para tentar coçar o pé. Procurei, mas não encontrei o local da comichão. Pedi ao meu irmão para me ajudar, disse-lhe que estava à procura desde de manhã. Ele ficou em silêncio, e só então percebi que a perna já não estava lá.”

Também Bruno sentiu comichão na perna amputada poucos dias depois da cirurgia. “Não havia forma de aliviar. Nem dá para coçar, porque já não existe essa parte do corpo”, lamentou.

Para Martinha, o mais difícil de suportar é a comichão intensa no membro amputado. “Não posso coçar, nem tocar. Tentei movimentar-me, fazer algo que aliviasse essa sensação.”

A dor, por vezes, tornava-se insuportável. “Chorei. Não conseguia dormir. Há momentos em que a dor se mistura com a comichão. Sinto que posso mexer o pé, mas não consigo agarrar nada. Agora mesmo, estou sentada nesta cadeira e parece que a minha perna esquerda toca o chão, tal como a direita”, disse, apontando para o local onde antes estava a perna amputada.

Martinha chegou a tentar movimentar-se sem muletas. “Mas lembrei-me de que há objetos que me ajudam”, afirmou.

Confuso com o fenómeno, Bruno procurou ajuda médica. Pediu esclarecimentos a um médico cubano. “Perguntei-lhe porque é que ainda sentia dor e comichão numa perna que já não existia. Disse também que, quando esticava as pernas, parecia que os dedos do pé esquerdo ainda estavam lá.”

Segundo o médico, os nervos e as artérias continuam a enviar sinais ao cérebro mesmo depois da amputação. “O corpo procura os caminhos antigos, mas como essas artérias já não funcionam, há pressão e isso interfere com o pensamento”, explicou Bruno.

O médico acrescentou que o cérebro mantém uma memória completa do corpo. “Mesmo que parte do corpo desapareça, o cérebro continua a captar a imagem de todas as partes, porque assim foi desde o nascimento. Por isso, ele ainda não aceita que essa parte já não existe”, contou Bruno.

Apesar do sofrimento, Martinha nunca procurou apoio médico ou psicológico. “Consegui tratar outros tipos de dor, mas esta dor fantasma nunca confessei a ninguém. Talvez no futuro possa procurar ajuda, se confiar em alguém.”

Bruno, por sua vez, acredita que não existe cura. “Por isso, até hoje, não procurei outros profissionais para tratar este tipo de dor.”

Ainda assim, partilhou a experiência com colegas que também sofreram amputações. “Alguns disseram que o que sentimos vem das almas dos pés. Ri-me com os relatos deles”, disse, entre risos.

Também partilhou com a mãe. No início, ela ficou confusa. “Mas depois de ouvir a explicação do médico, ficou convencida”, afirmou.

A dor que o corpo não esquece: psicólogo explica o impacto físico e emocional da dor fantasma

Perder um membro é mais do que uma alteração física — é um processo de luto profundo, comparável à perda de uma pessoa próxima. Quem o diz é o psicólogo Alessandro Boarccaech, que alerta para os impactos invisíveis da amputação: “A autoimagem e a identidade ficam afetadas, porque o cérebro mantém uma representação interna de como o corpo era antes. Isso leva a pessoa a sentir o chamado membro fantasma — a sensação de que aquela parte do corpo ainda está lá”.

Segundo o especialista, a dor fantasma é uma experiência comum entre pessoas amputadas. Mesmo após a perda de um membro ou órgão, continuam a surgir sensações, como comichão ou dor intensa. “Isso acontece porque o sistema nervoso reorganiza-se e continua a enviar sinais ao cérebro como se o membro ainda existisse”, explica.

O impacto vai além do físico. “Esta dor persistente ativa áreas cerebrais ligadas ao stress e às emoções, enquanto enfraquece os mecanismos de regulação do humor. Isso gera frustração, sentimento de impotência, isolamento e dificulta a adaptação à nova realidade”, afirma. Estudos mostram que quem sofre de dor fantasma tem até três vezes mais probabilidade de desenvolver depressão.

A amputação, especialmente quando traumática, pode também afetar profundamente as relações sociais. “Há medo de discriminação, de rejeição, de perder autonomia. Muitos acabam por evitar o convívio e enfrentam sintomas de ansiedade, depressão ou stress pós-traumático — sobretudo quando a amputação resulta de um acidente ou doença súbita”.

O psicólogo sublinha que amputações planeadas costumam ter um impacto emocional menor, graças à preparação. Já nos casos traumáticos, a dor fantasma tende a ser mais intensa, devido ao choque e à lesão súbita nos nervos.

Outros fatores que aumentam o risco incluem dor intensa anterior à amputação, lesões nervosas associadas, estado emocional fragilizado ou ausência de apoio psicológico e social.

Apesar de não ter uma cura definitiva, a dor fantasma pode diminuir com o tempo, sobretudo quando existe tratamento adequado. Alessandro aponta algumas abordagens eficazes: terapia cognitivo-comportamental, que ajuda a gerir tanto a dor como os seus efeitos emocionais; técnicas de neuromodulação, como a estimulação magnética transcraniana e a neuroestimulação medular ou cortical; terapias inovadoras, como a realidade virtual e a terapia do espelho, que exploram a neuroplasticidade para reorganizar a imagem corporal e reduzir o desconforto e tratamentos farmacológicos, que, em muitos casos, complementam as abordagens não invasivas.

O apoio familiar e social é crucial. “É importante respeitar os limites da pessoa, incentivar a procura de ajuda especializada e evitar frases que desvalorizem a dor ou a comparem com outras situações”, alerta o psicólogo.

Além disso, manter uma rotina estruturada, praticar atividades criativas ou sociais e recorrer à psicoterapia são estratégias que ajudam a lidar com sentimentos de angústia e solidão. “Exercícios de relaxamento e atenção plena também contribuem para a gestão do stress e da dor”, recomenda.

Para Boarccaech, o diálogo aberto com a equipa médica é essencial. “Quando há escuta empática e comunicação clara, o tratamento torna-se mais eficaz e ajustado às necessidades reais da pessoa. E isso faz toda a diferença no processo de recuperação e aceitação.”

Avanços no combate à dor fantasma: estudo revela desafios e novas soluções

A dor fantasma continua a ser uma das síndromes de dor crónica mais difíceis de tratar entre pessoas amputadas, devido à sua complexa fisiopatologia. A conclusão é de Maria Inês Barbosa, autora da tese de mestrado intitulada “Dor fantasma: da fisiopatologia ao tratamento”, publicada em 2024, que analisou as causas, evolução e tratamentos desta condição neurológica.

Segundo o estudo, a dor fantasma pode surgir logo após a amputação — muitas vezes, nas primeiras 24 horas. Cerca de 50% dos pacientes desenvolvem sintomas nesse período, número que sobe para 85% na primeira semana. Em alguns casos, existe um segundo pico de surgimento até um ano após a cirurgia.

O tratamento da dor fantasma continua a ser um desafio clínico. No campo farmacológico, o paracetamol e os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) são indicados para dores ligeiras a moderadas, apesar de a sua eficácia ser limitada. Medicamentos antiepiléticos, como a gabapentina, mostraram-se eficazes em até dois terços dos casos, ao reduzirem a libertação de neurotransmissores excitatórios. Os antidepressivos tricíclicos e os inibidores da recaptação de serotonina-noradrenalina também têm sido utilizados, embora os estudos nesta área ainda sejam escassos e pouco conclusivos.

No plano não farmacológico, a fisioterapia e o treino mental — que consiste em imaginar movimentos do membro amputado — ajudam a reorganizar o cérebro e a aliviar a dor. A utilização de próteses mioelétricas tem sido associada a uma menor incidência de dor fantasma, por reforçarem a ligação entre o cérebro e o corpo.

Outras abordagens inovadoras incluem a terapia do espelho, que cria a ilusão visual do movimento do membro amputado, e a realidade virtual, que aprofunda essa experiência de forma imersiva. Procedimentos mais avançados, como a estimulação cerebral profunda e a reinervação muscular direcionada (TMR) — uma técnica cirúrgica que reconecta nervos cortados a músculos adjacentes — mostram-se promissores tanto na redução da dor como no controlo de próteses.

A autora sublinha ainda a importância de se controlar eficazmente a dor antes e após a amputação, através de anestesia loco-regional e bloqueios periféricos. Estas técnicas reduzem a hiperexcitabilidade do sistema nervoso e ajudam a prevenir o desenvolvimento da dor fantasma.

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