Marta da Silva: “Sem reforma fiscal e vontade política, o dinheiro público continua a não chegar às pessoas”

Marta da Silva, investigadora da ONG La’o Hamutuk, que acompanha a elaboração e execução do Orçamento Geral do Estado em Timor-Leste/Foto: Diligente

Projetos adiados, despesa concentrada em salários, fraca execução do investimento público e desigualdades profundas entre Díli e os municípios marcam a avaliação de 2025 feita pela investigadora da La’o Hamutuk. Marta da Silva defende uma reforma urgente do sistema fiscal e do virement orçamental, alertando que, sem mudanças estruturais, nem o Fundo Petrolífero nem o crescimento económico serão sustentáveis.

Investigadora da organização da sociedade civil La’o Hamutuk, que há anos monitoriza a economia e a execução do Orçamento Geral do Estado (OGE) em Timor-Leste, Marta da Silva traça um retrato crítico da governação económica em 2025. Apesar de alguns avanços em infraestruturas urbanas, a investigadora sublinha que o desenvolvimento continua excessivamente centralizado em Díli, assente numa despesa pública pouco eficiente e distante das necessidades reais da maioria da população.

Nesta entrevista, Marta da Silva analisa as falhas persistentes na execução orçamental, questiona a leitura otimista do crescimento económico baseada no PIB e alerta para os riscos da dependência contínua do Fundo Petrolífero. Defende uma reforma fiscal profunda, maior responsabilização das instituições públicas e políticas que promovam um desenvolvimento mais equitativo, sobretudo nas zonas rurais, com impacto direto na vida das pessoas.

Prestes a terminar o ano de 2025, quais foram os principais sucessos que a La’o Hamutuk identificou em Timor-Leste ao longo deste ano?

Muitas coisas foram feitas, mas muitas também não. Em termos de infraestruturas, sobretudo no que diz respeito a edifícios e estruturas físicas, é em Díli que se notam mais mudanças. No entanto, essas mudanças não foram gratuitas: muitas pessoas tiveram de se sacrificar. Por exemplo, no alargamento da estrada de Tasi-Tolu até Bidau, a condição da via melhorou, mas muitas pessoas foram desalojadas; algumas crianças deixaram de estudar por terem de mudar de escola, entre outras consequências.

Além disso, as mudanças continuam excessivamente centralizadas em Díli. Verificamos que as estradas nas áreas urbanas foram reabilitadas, mas a reabilitação das estradas rurais só deverá começar a ser implementada em 2026, apesar de essas obras constarem nos planos para 2025. A La’o Hamutuk defende sempre a equidade, mas, em termos de desenvolvimento físico, o Governo não atingiu esse objetivo, nem neste nem noutros setores.

E, especificamente, quais os progressos registados no setor económico?

De forma geral, a nossa economia não é saudável, porque as importações continuam a ser superiores às exportações. Dependemos da importação e o porto de Tibar também não está a maximizar o seu potencial. Precisamos de produtos para exportar e de criar condições para que o dinheiro entre no país.

O défice das remessas — o dinheiro transferido de e para o estrangeiro — aumentou este ano, aproximando-se de mil milhões de dólares. Por isso, podemos dizer que não houve uma mudança significativa na economia, mesmo que os números indiquem um crescimento, porque o Produto Interno Bruto (PIB) é apenas uma medida da despesa pública. No caso de Timor-Leste, a maior parte da despesa pública provém do Fundo Petrolífero.

Quando se afirma que o aumento do PIB significa uma melhoria da economia, isso não reflete a realidade. Temos vindo a tentar corrigir essa perceção e, agora, o Banco Mundial irá realizar um novo estudo sobre a pobreza para avaliar se houve alguma mudança efetiva.

Quais os compromissos que continuam por cumprir por parte do Governo ou das instituições públicas?

Muitos dos projetos previstos para este ano não foram efetivamente alcançados. Quando consultamos o Portal da Transparência, verificamos que o nível de execução é reduzido, o que significa que os resultados também são insuficientes. Para que se possa afirmar que um programa de um ano fiscal foi implementado com sucesso, é necessário que a execução financeira siga o planeado e que os resultados tragam benefícios concretos para a população.

O Governo ainda não conseguiu resolver vários problemas estruturais. Um exemplo é o Ministério da Educação, que continua sem resolver a situação dos professores contratados. Apesar das alterações introduzidas na legislação, as respostas aos problemas permanecem insuficientes.

Mesmo com o novo orçamento, não será possível resolver os problemas estruturais que a população enfrenta, como as dificuldades na educação, a malnutrição, a pobreza e o aumento da dependência das importações, que se agrava sobretudo no final do ano.

É difícil medir o sucesso, porque o verdadeiro sucesso ocorre quando a população é a principal beneficiária do desenvolvimento, dispondo de uma economia suficiente para uma vida digna e de acesso aos serviços básicos, como a educação e a saúde. No entanto, isso ainda é difícil de observar, devido às desigualdades sociais entre as zonas rurais e urbanas, incluindo ao nível do rendimento familiar.

Não se verifica uma mudança significativa na vida da maioria da população, mas apenas de uma minoria. Um exemplo disso foi a recente atribuição do fundo aos veteranos, em que se formaram filas muito longas, porque a maioria das pessoas veio dos municípios. Isso demonstra que a procura por uma vida melhor nas zonas rurais é forte e que o dinheiro continua a circular sobretudo em Díli. Ainda não existe um equilíbrio na expansão da economia para as áreas rurais.

No OGE 2025, está descrito que o Governo atingiu as metas em sectores como a educação, a saúde, a agricultura e a água e saneamento, mas a implementação ficou aquém do que foi anunciado. Para o próximo ano, por exemplo, o setor da agricultura vai sofrer cortes orçamentais. Isso demonstra que, apesar do discurso sobre o reforço da economia, estes setores não estão a ser tratados como prioridade.

Como é que podemos reduzir a dependência das importações e reforçar a economia nestas condições?

De que forma a não implementação dos projetos se reflete na execução do Orçamento Geral do Estado?

A não implementação dos projetos reflete-se diretamente na execução do OGE. No setor do Capital e Desenvolvimento, por exemplo, a execução é mínima, enquanto as despesas com salários e com bens e serviços são executadas quase a 100%.

Os planos não foram seguidos, o que levou ao adiamento de projetos para o ano seguinte. Um exemplo é um projeto da Bee Timor-Leste para o fornecimento de água, que foi adiado para o próximo ano por falta de coordenação durante este ano.

Existem problemas relacionados com as infraestruturas, com o impacto das alterações climáticas e com o próprio processo de contratação pública, incluindo situações em que as empresas selecionadas não executam o trabalho com a qualidade exigida.

O problema está também na qualidade do investimento, porque não são previstos fundos suficientes para os custos de operação e manutenção. Por exemplo, as estradas em Díli são reabilitadas quase todos os meses. O dinheiro é gasto num único local, enquanto outras áreas são deixadas para trás.

Que setores deveriam ser prioritários para promover um desenvolvimento económico mais equilibrado e com impacto direto na vida das pessoas?

É necessário dar prioridade aos setores que estão mais próximos da vida das pessoas e que podem contribuir diretamente para o desenvolvimento da economia do país, como a agricultura. O próprio Ministério das Finanças, após uma consulta pública, reconheceu que a agricultura é um dos setores com maior potencial para impulsionar a economia.

Na prática, é preciso melhorar os sistemas de irrigação, a conetividade e outros fatores essenciais. O Governo está a implementar um projeto de hortas integradas, começando pela criação de gado produtor de leite, mas este processo ainda se encontra numa fase inicial e os resultados ainda não são visíveis.

Existem muitos projetos mal implementados, mas uma falha nossa, enquanto sociedade civil, é não conseguirmos acompanhar verdadeiramente cada um deles. Faltam-nos recursos, mas é essencial uma monitorização rigorosa. Por isso, estamos a começar precisamente pelo setor da agricultura.

Quais as principais falhas observadas ao longo deste ano e de que forma poderiam ser corrigidas ou prevenidas no futuro?

A chave está na vontade política: querer ou não querer melhorar. O sistema já está montado e os erros acabam por ser normalizados, mesmo quando contrariam a lei. Um exemplo claro são os projetos de infraestruturas. Quando uma empresa vence um concurso, muitas vezes já está definido quanto irá receber. E, quando a infraestrutura apresenta falta de qualidade, a responsabilidade recai exclusivamente sobre o setor privado, sem que se questione por que razão a empresa teve de cortar determinados elementos, não respeitando o mapa de quantidades (BOQ). Queremos que a Comissão Anticorrupção (CAC) funcione melhor neste domínio.

Existem a CAC e a Autoridade Nacional de Designação (ADN), mas, sem vontade política, as instituições acabam por se proteger mutuamente. No final, o que acontece é que se gasta o dinheiro do povo sem garantir obras ou serviços de qualidade; a população não beneficia, enquanto outros continuam a receber o seu salário mensal.

A inteligência, por si só, não é suficiente quando falta vontade. É necessário reforçar a vontade política, tornar as leis mais rigorosas e melhorar a monitorização. E é fundamental que exista a consciência de que os salários pagos provêm do dinheiro do povo.

Como avalia a transparência e a prestação de contas na utilização dos fundos públicos em Timor-Leste?

A transparência, a contabilidade e a participação pública em Timor-Leste têm vindo a regredir. Muitos ministérios não publicam informações nos seus sites oficiais para esclarecer a população. Recorrem às redes sociais, como o Facebook, mas isso não é suficiente.

Um exemplo é a Lei de Bases da Educação, que está diretamente ligada ao futuro das novas gerações. Foram realizadas consultas com estudantes e professores, mas não com o público em geral. Trata-se de uma lei de grande importância.

No que diz respeito à contabilidade, coloca-se a questão de saber quem garante que as informações partilhadas são verdadeiras.

Quanto à participação pública, esta é mínima. Muitas vezes, a população é tratada como objeto e não como sujeito dos processos de decisão. No caso do OGE, a participação pública só ocorre quando o documento já segue para o Conselho de Ministros, o que impede uma consulta efetiva. Muitas pessoas não conseguiram participar nesse processo.

Outro exemplo é a consulta entre os cidadãos e a Secretaria de Estado dos Assuntos da Toponímia e Urbanização, que, após alcançar um consenso, acabou por tomar uma decisão diferente. É necessária uma consulta pública antes de qualquer medida ser tomada ou apresentada ao Conselho de Ministros, bem como uma monitorização adequada para permitir o desenvolvimento de políticas públicas eficazes.

A La’o Hamutuk envia cartas aos ministérios a solicitar audiências. Alguns aceitam, mas outros não. Por exemplo, nunca conseguimos reunir com o Ministério da Agricultura, o que demonstra falta de abertura ao diálogo.

No que diz respeito à abolição da pensão vitalícia, considera que esta medida terá um impacto real na sustentabilidade do Fundo Petrolífero ou seriam necessários outros cortes mais eficazes? Em caso afirmativo, que tipo de cortes considera prioritários?

A pensão vitalícia associada ao Fundo Petrolífero representa um montante relativamente reduzido, em torno de cinco mil dólares. No entanto, trata-se de uma das formas de reduzir despesas desnecessárias.

Se forem realizados outros cortes com valores semelhantes — nomeadamente em despesas com catering e viagens desnecessárias, outras pensões e gastos mal justificados — será possível prolongar a vida do Fundo Petrolífero.

Contudo, ainda não é claro se este corte será efetivamente concretizado, uma vez que está pendente uma decisão judicial sobre a sua constitucionalidade. Caso seja considerada inconstitucional, os beneficiários continuarão a receber a pensão vitalícia, e a luta dos jovens no Parlamento poderá acabar por não produzir resultados.

Que reformas económicas urgentes deveriam ser implementadas pelo Governo para melhorar a gestão financeira e promover um crescimento sustentável?

Temos defendido de forma consistente a necessidade de uma reforma fiscal, para rever as alocações orçamentais e o enquadramento legal, assegurando que o Orçamento do Estado responde efetivamente aos problemas que o país enfrenta. É igualmente necessário avaliar os sistemas atualmente utilizados e os padrões aplicados na execução orçamental. Quando o orçamento não responde às necessidades da população, a reforma fiscal deve permitir cortar despesas desnecessárias. Se o financiamento atribuído a um programa, por exemplo na rubrica de bens e serviços, não produz resultados, então deve ser alterado.

O Governo foi expandido de tal forma que os custos operacionais — nomeadamente salários e vencimentos — podem atingir cerca de meio milhar de milhões de dólares. A máquina do Estado tornou-se demasiado grande. Todos os anos, são gastos aproximadamente 1,8 mil milhões de dólares apenas em despesas recorrentes, que não geram retorno. É legítimo questionar se não será necessário reduzir o número de funcionários. Em muitos serviços, um computador é partilhado por três ou quatro pessoas. Deve existir um plano claro sobre quantos trabalhadores são realmente necessários e garantir que os recursos humanos sejam produtivos.

Em vez de pessoas permanecerem sem atividade efetiva nos escritórios, porque não envolvê-las em trabalho no terreno, como em hortas ou programas agrícolas promovidos pelo próprio Governo, em vez de enviar pessoas para o estrangeiro realizar trabalhos que poderiam ser desenvolvidos internamente?

Esta grande máquina do Estado torna irrelevante o Rendimento Sustentável Estimado (RSE). Se o tamanho do Estado fosse reduzido, poder-se-ia continuar a retirar recursos acima do RSE, mas não em excesso. Atualmente, está-se a retirar cerca de três vezes o montante recomendado para garantir a sustentabilidade do Fundo Petrolífero. O mais grave é que esse dinheiro é, muitas vezes, mal gasto.

No final do ano, é comum não haver pessoas nos locais de trabalho, porque muitas se encontram em estudos comparativos no estrangeiro, entre outras atividades. A La’o Hamutuk faz uma monitorização mensal das despesas e observa-se que, até setembro, os gastos mantêm-se relativamente estáveis, mas a partir de outubro há um aumento súbito, com um pico em dezembro.

Isso acontece porque os serviços não trabalham de acordo com o planeamento nem implementam os projetos desde janeiro. Quando o final do ano se aproxima, receando cortes orçamentais no ano seguinte, correm para executar projetos e gastar dinheiro, sobretudo em viagens. O problema é que o Governo avalia os gastos, e não os resultados.

Outro problema é a existência do virement orçamental, ou seja, a transferência de verbas entre rubricas, que permite a utilização de até 20% do montante de um item para outro. No entanto, 20% de uma rubrica do OGE já representa um valor muito elevado. Este mecanismo precisa de ser reformado.

Deve também existir sanção em casos de má utilização de fundos públicos. O Tribunal de Contas produz relatórios, mas, mesmo quando identifica usos indevidos de recursos, não existem consequências com peso. A Comissão Anticorrupção deveria assumir um papel mais ativo na investigação. Voltamos, novamente, à questão da vontade política.

Sem uma reforma fiscal, mesmo com o projeto Greater Sunrise, o país acabaria por regressar rapidamente à situação atual, beneficiando apenas um número muito reduzido de pessoas.

De que forma as políticas públicas podem apoiar o desenvolvimento económico das comunidades locais, em particular dos jovens e das mulheres, sobretudo nas zonas rurais?

São necessárias políticas públicas verdadeiramente inclusivas, mas também uma maior maturidade social, uma vez que ainda persiste a ideia de que as mulheres não são tão capazes quanto os homens. As políticas públicas devem capacitar e dar oportunidades aos jovens.

Nas zonas rurais, a discrepância no acesso aos serviços públicos é muito evidente, incluindo ao nível das estradas, da internet, das oportunidades de emprego, da educação e do acesso à água, entre outros. O Programa Nacional de Desenvolvimento das Sucos (PNDS) foca-se sobretudo na construção de infraestruturas, havendo poucos programas de formação para os jovens. A maioria das formações concentra-se em Díli e raramente chega às áreas rurais, tal como acontece com muitas escolas.

Fala-se frequentemente em desenvolvimento rural e em descentralização, mas a descentralização acarreta custos que podem ser muito elevados. Implica a criação de pequenos governos em cada município. A questão é saber quem fará a monitorização. O dinheiro passará para as câmaras municipais, em vez de ser canalizado diretamente para o desenvolvimento rural. Se o comportamento das administrações municipais for semelhante ao do Governo central, apenas uma pequena parte dos recursos chegará efetivamente ao desenvolvimento. Além disso, os 1,8 mil milhões de dólares em despesas recorrentes tenderiam a aumentar. Idealmente, as câmaras municipais deveriam contribuir para o cofre do Estado, mas, na prática, isso ainda não acontece.

Seria mais eficaz reforçar os setores da agricultura e do turismo nas zonas rurais, de forma a estimular a produção e criar emprego nos municípios. O papel do Governo deveria centrar-se em garantir a conectividade, boas condições das estradas, acesso à água e ao saneamento, bem como a hospitalidade das comunidades locais. Existem produtos orgânicos com elevado potencial de investimento.

A descentralização pode ser um caminho, mas apenas se for acompanhada por mecanismos mais eficazes de transparência, contabilidade e participação pública. Em vez de aumentar a máquina do Estado, os municípios deveriam começar a gerar retorno para o Governo central. A descentralização deve servir para aproximar o desenvolvimento das pessoas, garantindo que não aumenta a despesa pública e que existe transparência.

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