O Dia Internacional da Língua Materna, celebrado hoje, 21 de fevereiro, foi proclamado pela UNESCO em 1999 para destacar a importância da diversidade linguística e cultural em todo mundo e alertar para o risco de extinção de muitas línguas.
Em Timor-Leste, onde coexistem mais de 30 línguas locais, a língua materna não é apenas um meio de comunicação, mas tem um papel fundamental na vida de cada comunidade e indivíduo. É um reflexo da identidade cultural, um elo entre gerações e uma forma de manter vivas histórias, valores e tradições. Idiomas como o Bunak, o Fataluko e o Makasae são transmitidos de geração em geração, principalmente no seio familiar. No entanto, a crescente globalização coloca muitas dessas línguas em risco.
Uma das estratégias para evitar o desaparecimento das línguas maternas passa pela transformação da tradição oral em escrita. Contos populares, histórias e canções tradicionais que sempre foram passados verbalmente começam agora a ser registados em livros e estudos académicos, numa tentativa de perpetuar o conhecimento ancestral.
A música como pilar da tradição oral
O Diligente entrevistou João Teme, licenciado em Ensino da Língua Portuguesa pela Universidade Nacional de Timor Lorosa’e (UNTL), que dedicou a sua monografia à análise de uma canção tradicional da Região Administrativa Especial de Oé-Cusse Ambeno(RAEOA). O seu trabalho, intitulado Análise da cantiga da Monda, Uhe,ee ou sit tof ma’u, no suco de Abani, na Sub-Região de Pássabe, explora a relação entre a música e o trabalho agrícola na comunidade.
“A nova geração tem a responsabilidade de promover as línguas maternas e preservar o património cultural”, afirma João.
Segundo ele, a canção “Uhe’ee” era frequentemente entoada durante a monda (“tof ma’u”), prática agrícola que consiste em limpar os campos das ervas daninhas.

A canção “Uhe’e”, interpretada durante a monda, reflete o espírito de cooperação e identidade comunitária.
Excerto da canção (Baiqueno – língua tradicional de Oé-Cusse)
Ohho..bimoes tateo
eihh hoe bae mah eihhhh
hahoee.. baee
Hoeee let nat nam, ohh…
maheol ana, maheol ana nae es hao baee, heol ma’ bam sele nat nam hao
eihh hoe bae mah eihhhh
João Teme explica que a estrutura simples e repetitiva da canção facilita a sua memorização e transmissão. O ritmo envolvente e a ausência de solos individuais reforçam o caráter coletivo da música, incentivando a participação de todos.
Na sua monografia, João Teme analisa a canção “Uhe’ee” e destaca a sua linguagem metafórica e satírica, que utiliza imagens do quotidiano agrícola para transmitir significados mais profundos.
Um dos elementos mais marcantes da canção é a forma como as ervas daninhas são associadas ao género feminino. A palavra “bimoes”, usada na letra, é uma referência metafórica às raparigas, estabelecendo um paralelismo entre o crescimento das plantas indesejadas e uma suposta interferência feminina.
“No contexto Baiqueno, ‘bimoes’ refere-se ao género feminino e é usada para descrever uma atitude paciente ao cuidar ou deixar algo crescer antes de um processamento posterior. Isto reflete a profundidade do significado da língua e da cultura locais”, lê-se na monografia de João.
Além disso, frases como “hahoee…baee” têm um tom sarcástico e podem estar a ridicularizar algo, possivelmente um hábito ou um objeto específico, como os fitoterápicos. Já no quinto verso, expressões como “maheol ana” e “heol” fazem referência a pequenas serras e ao ato de cortar ou colher, descrevendo atividades que exigem precisão, como arrancar ervas daninhas.
A canção, entoada durante a monda, funcionava como uma espécie de ordem dada às ervas daninhas, exigindo que estas desaparecessem. As plantas invasoras são chamadas de “moça” e “cunhada”, estabelecendo uma ligação simbólica entre as ervas e as mulheres. De forma figurada, os agricultores ordenam às ervas daninhas que saiam do campo, que desapareçam – um discurso que, de certo modo, reforça uma perceção das mulheres como algo perturbador ou indesejado.
“Eih Hoe Bae” encoraja os capinadores a expressarem os seus sentimentos em relação às ervas daninhas que, embora sejam eliminadas, mais tarde voltam a crescer, trazendo novamente malefícios”, explicou João.
No entanto, apesar desta associação simbólica entre as ervas daninhas e as mulheres, a canção era cantada tanto por homens como por mulheres, o que mostra que esta visão não era exclusiva dos homens, mas algo partilhado na cultura da época.
Outras expressões da canção reforçam a relação entre a prática agrícola e os sentimentos dos trabalhadores. “Hoe let nam” expressa gratidão pelas ferramentas utilizadas na monda, como “catana Ben Ana” e a “hoka”, fundamentais para proteger as culturas das ervas daninhas. “Maheol ana nae” refere-se a flores coloridas, enquanto “Heol Mah Bam” traduz o sentimento nostálgico dos capinadores, que sentem falta do aroma perfumado das plantas logo após a sua remoção. “Sele Natnam Hao” encerra a canção com uma expressão de satisfação, celebrando um campo finalmente livre de ervas daninhas que prejudicavam o crescimento das culturas.
Assim, “Uhe’ee” é mais do que uma simples canção de trabalho: é um reflexo da cultura e do pensamento de uma época, onde até as práticas agrícolas serviam de metáfora para a vida em sociedade.
O risco de extinção das línguas maternas
De acordo com o Censo de 2022, existem 33 línguas nativas em Timor-Leste. No entanto, 24 delas estão em risco de desaparecer, uma vez que têm menos de 2% da população como falantes nativos.
O Coordenador da Divisão Cultural da Comissão Nacional de Timor-Leste da UNESCO, Romeo Soares da Silva, alerta para a urgência da preservação das línguas maternas.
“Desde 2018, com o apoio da Secretaria de Estado das Artes e Cultura, temos trabalhado para registar histórias e canções em línguas maternas ameaçadas. Em breve, começaremos a documentação da tradição oral da língua Habun”, afirmou.
O programa “Preservação das Línguas Maternas” reúne falantes de línguas em risco, como o Makalero, Mambae, Bunak, Dadua, Mantlak, Lolein, Isni, Laklei e Bekais, para registar e documentar histórias, provérbios e canções.

A tradição oral, embora rica e essencial, enfrenta desafios na sua preservação a longo prazo. A língua Isni, falada em Orana e Foholau, no município de Manufahi, é considerada uma das mais antigas da região. O investigador Marcos de Deus Alves destaca que alguns dos seus vocábulos apresentam semelhanças com o Mambae e o Idate, o que demonstra as ligações históricas entre os diferentes povos de Timor-Leste.
As línguas maternas são também preservadas através de contos e lendas que ensinam valores fundamentais. Um dos exemplos é a história do macaco e do galo, um conto tradicional que transmite uma lição sobre prudência e discernimento: Um macaco invejoso queria ter uma crista como a do galo. O galo, astuto, propôs-lhe um desafio: “Se quiseres um pente como o meu, faz exatamente o que eu disser.” O macaco aceitou e, seguindo as instruções do galo, colocou a cabeça em água quente, convencendo os seus amigos a fazerem o mesmo. No final, todos morreram, exceto um casal de macacos, que deu origem aos descendentes que hoje habitam o país.
Esta narrativa, para além de transmitir valores morais, tem um elemento mitológico que explica a origem dos macacos na cultura timorense.
Além dos esforços institucionais para preservar as línguas maternas, há também iniciativas individuais que têm um impacto significativo. Um exemplo disso é o projeto pessoal e autofinanciado de Alessandro Boarccaech, que resultou na criação de dois dicionários, um para a língua Hresukbe outro para a língua Raklung, ambas faladas por menos de 2.000 pessoas em Ataúro.
Estes dicionários incluem a grafia fonética, utilizando o padrão internacional de fonética para garantir que não apenas as palavras, mas também os seus sons, sejam preservados para as futuras gerações. O objetivo deste trabalho foi preservar estas línguas e disponibilizar o conhecimento à comunidade, que teve um papel ativo em todo o processo, colaborando na recolha e na validação dos termos. Como estas línguas são essencialmente orais, um dos maiores desafios foi padronizar a sua grafia, já que muitas palavras não tinham uma forma escrita estabelecida.
Para além dos dicionários já concluídos, Alessandro Boarccaech pretende ainda elaborar registos semelhantes para outras duas línguas de Ataúro, reforçando a importância da documentação para impedir que estas formas de comunicação caiam no esquecimento. A perda gradual de vocabulário, especialmente entre as novas gerações, tem sido uma ameaça crescente, tornando esta iniciativa ainda mais essencial para a preservação do património linguístico de Timor-Leste.
A preservação das línguas maternas e da cultura oral é essencial para garantir a continuidade das tradições e da identidade de Timor-Leste. Se nada for feito, muitas destas línguas podem desaparecer, levando consigo um pedaço da história e da cultura do país. Investir na documentação e na transmissão dos saberes ancestrais não é apenas um dever cultural, mas uma necessidade urgente para que as futuras gerações possam continuar a ouvir, cantar e contar as vozes dos seus antepassados.