Vinte e cinco anos da Consulta Popular: “votar e depois morrer era melhor do que não votar e ser morto”

Cidadãos compareceram em massa nos centros de votação: opção pela independência foi escolhida por 78,5% dos eleitores/Foto: Weda (AFP)

Os cidadãos que trabalharam nos centros de votação no referendo e como mobilizadores da comunidade relembram as situações vividas naquela altura.

A luta dos timorenses pela autodeterminação foi muito longa. Em 28 de novembro de 1975, a Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN) proclamou, unilateralmente, a independência do país em relação ao Estado português – que controlava Timor-Leste desde o século XVI. Passados nove dias, o território timorense foi alvo de  outra invasão, desta vez pela Indonésia.

Este período de ocupação indevida, marcado por muita violência dos invasores (estima-se que os militares indonésios mataram mais de 250 mil timorenses) e resiliência por parte da população local, durou 24 anos. O facto que determinou novos rumos e criou as condições para que Timor-Leste se tornasse uma nação soberana, a 20 de maio de 2002, foi a Consulta Popular – que hoje, 30 de agosto, completa 25 anos.

No referendo, em que a população tinha de escolher entre continuar sob o domínio  da Indonésia ou a independência, os cidadãos compareceram em massa nos centros de votação espalhados pelos municípios, mesmo sob a ameaça das milícias do país vizinho. O resultado, divulgado a 4 de setembro, não deixou dúvidas: a opção pela autodeterminação de Timor-Leste recebeu 78,5% dos 446.953 votos registados.

Nesse sentido, é crucial não esquecer aqueles que trabalharam como membros dos centros de votação, encorajando a população a formar filas nos locais, logo nas primeiras horas do dia, para decidir o destino do país. Os jovens da Resistência, escondidos no mato, também incentivaram a comunidade: dizia-se que “votar e depois morrer era melhor do que não votar e ser morto”.

A Consulta Popular só foi possível após um longo processo de negociações diplomáticas, que envolveu, principalmente, representantes da Resistência timorense, de Portugal, da Indonésia, dos Estados Unidos da América e da Organização das Nações Unidas (ONU).

A perceção de quem trabalhou no referendo

Helena Soares, de 44 anos, foi membro da equipa que estava nas urnas no dia da Consulta Popular, em Viqueque. Contou que se tornou funcionária das eleições devido à necessidade dos “malaes” – membros da Missão das Nações Unidas em Timor-Leste (UNAMET) –, que precisavam de timorenses que falassem inglês. Por ter um conhecimento básico da língua, Helena Soares atuou como tradutora e, juntamente com os estrangeiros, ajudou a recrutar cidadãos para trabalharem durante referendo.

Na véspera da votação, o clima era de muita tensão no país: os rumores eram de que as forças indonésias fariam de tudo para boicotar o processo e não admitiriam um resultado desfavorável nas urnas de forma pacífica. Não era para menos. Nas campanhas para a Consulta Popular algumas situações chamavam a atenção.

“A nossa casa ficava perto dos postos militares, e todas as noites ouvíamos pessoas a gritar e a chorar, porque os militares torturavam os timorenses que suspeitavam de colaborar com as FALINTIL. Prendiam-nos, colocavam-nos em tanques de água e usavam eletricidade para os torturar, mas não sabíamos quem eram essas pessoas, pois as torturas aconteciam durante a noite”, disse Helena Soares.

A cidadã, contudo, não se deixou intimidar, e, no dia 29 de agosto, foi ao mato com alguns colegas para planear melhor a deslocação da comunidade aos centros.

“Marcámos um encontro com a população às 10 horas da noite para explicar e organizar tudo para o dia da votação. Pedi a todos que tinham fugido da vila que, às 4h da manhã, se preparassem e, às 5 h, estivessem nos centros, mesmo que a votação só começasse às 7 h. Organizámo-nos assim para saber quem estava na linha da frente, para que aqueles que voltassem para o mato pudessem votar rapidamente e ser evacuados novamente, sem precisarem de ficar na vila”, explicou.

Helena Soares, atualmente coordenadora do programa de Desenvolvimento Rural no Ministério do Desenvolvimento Rural, no Posto Administrativo de Luro, confidenciou que existia um certo temor entre os membros da equipa nos locais de votação: todos tinham consciência dos riscos que a situação envolvia.

“Realizámos a votação com grande apreensão e esperávamos que nada de mal acontecesse no centro em Viqueque, para que a comunidade pudesse votar de acordo com a sua consciência e em segurança”, recordou.

Lembrou ainda que agilizaram o processo e orientaram a equipa encarregada da identificação para que o povo votasse rapidamente e pudesse voltar para o mato. Alguns centros encerraram ao meio-dia. Helena Soares, após receber um aviso, refugiou-se num espaço supostamente protegido pelos espíritos.

“Recebemos informações de que as milícias pró-integração atacariam alguns centros de votação e que pretendiam matar todos os timorenses que estavam a trabalhar com os estrangeiros. Nesse momento, os meus colegas conseguiram ir de carro para Díli com os elementos da UNAMET. Fui a única que não foi: o meu avô disse-me para ir, com a minha família, para a casa sagrada, onde os espíritos ancestrais nos protegeriam. Foi o que fiz”, contou.

Os estrangeiros respeitaram e aconselharam-nos a ter cuidado. Alguns centros de votação foram mesmo atacados.

Na noite de 30 de agosto, as milícias pró-integração chegaram a cercar a residência comum da família de Helena Soares para a incendiar. Porém, o vizinho, que era um militar indonésio, ordenou aos colegas militares que não o fizessem, “porque sabia que éramos boas pessoas”, partilhou a cidadã.

“Ficámos a dormir na casa sagrada até ao dia 4 de setembro, quando soubemos do resultado das Nações Unidas, que indicava que 78% dos timorenses desejavam a independência. Nesse momento, ficámos muito felizes, mas essa alegria durou apenas alguns minutos, pois em Viqueque, a milícia Besih Merah Putih começou a incendiar, disparar e gritar com as pessoas. Então, às 10 h, fugimos para o mato. Não pensei em levar mais nada, apenas alguns documentos e o boletim de voto,” contou.

Helena Soares com o boletim de voto da Consulta Popular/Foto: DR

Helena Soares levou consigo o boletim de voto, porque tinha plena consciência da sua importância. “O boletim de voto da Consulta Popular ainda está guardado até hoje comigo. Isto é parte da história de Timor-Leste”, disse.

Após a confirmação do resultado do referendo, grupos indonésios fortemente armados espalharam o terror por Timor-Leste, matando muita gente, destruindo monumentos, queimando casas, edifícios históricos e estabelecimentos.

A onda de violência só foi contida com ajuda internacional e, posteriormente, com a instalação da Administração Transitória das Nações Unidas, que permitiu a realização das primeiras eleições nacionais e a restauração da independência de Timor-Leste, a 20 de maio de 2002.

Refletindo sobre os 25 anos da Consulta Popular, Helena Soares sublinhou que é importante lembrar que a autodeterminação timorense não foi fácil de alcançar. A cidadã destacou que, apesar de muito sofrimento no período da ocupação indonésia e da violência que eclodiu em Timor-Leste após o referendo, é importante haver reconciliação.

“Algumas pessoas ainda não aceitam esta ideia, pois consideram que isso pode reabrir as feridas do passado. Agora, porém, é o momento de nos reconciliarmos com os irmãos e irmãs timorenses que antes eram contra a independência. É hora de nos unirmos para acelerar o nosso desenvolvimento”, concluiu.

Coragem

No suco de Sagadate, em Baucau, Domingas Gusmão, de 42 anos, foi outra cidadã que trabalhou no centro de votação na Consulta Popular. Tinha 15 anos na altura. Na manhã de 30 de agosto, conta que recebeu um ultimato.

“Quando estava a caminho do local de votação, um militar indonésio parou-me e ameaçou-me: disse que todos nós que estávamos a trabalhar com os ‘malaes’ seríamos capturados e mortos”, lembrou.

“Falou de uma forma que me deixou com medo, mas continuei a acreditar em mim e fui para o centro. Durante a votação, correu tudo bem, mas no início de setembro, antes de anunciarem os resultados, os militares indonésios começaram a destruir as casas das pessoas, e então fugimos para o mato”, contou.

Por sua vez, Tomás Pinto, de 40 anos, um jovem da Resistência em Lospalos, relatou que, antes de realizar o referendo, a situação estava tensa e a comunidade procurou refúgio nas montanhas.  “Os timorenses que eram contra a independência começaram a matar e a queimar pessoas”, afirmou.

“No dia 27 de agosto, uma milícia matou um dos nossos irmãos em Lospalos, numa tentativa de intimidar a comunidade e impedir que descesse para a vila e participasse na votação. Porém, os jovens que trabalhavam na rede clandestina orientaram os nossos pais, os idosos, para que descessem e votassem. Dissemos-lhes que votar e depois morrer era melhor do que não votar e ser morto, porque um voto poderia fazer a diferença”, ressaltou.

Relatou que, naquele momento, os jovens acompanharam a população, que começou a sair do mato em fila, seguindo junta até chegar à vila de Lospalos para votar. “A votação correu bem, mas o medo persistia, então tivemos de continuar a organizar a população para encontrar um lugar seguro e continuar escondida, pois sabíamos que poderia acontecer alguma coisa”, salientou.

Tomás Pinto observou que as novas gerações precisam de ler e consultar os pais para entender que “a independência não foi dada numa bandeja, mas o resultado de um processo em que muitos timorenses lutaram e perderam a vida.”

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