O Instituto Nacional de Combate ao VIH/SIDA (INCSIDA), instituto público sob a alçada do Ministério do Interior, tem sido alvo de críticas pela forma como aborda a prevenção do VIH em Timor-Leste. Durante uma entrevista ao Diligente, o presidente da instituição, Daniel Marçal, afirmou que “não fala muito” sobre o uso de preservativos, justificando essa posição com razões morais e defendendo que o uso do preservativo fora do casamento é “pouco ético”.
A postura do INCSIDA levanta questões sobre a eficácia das suas campanhas de prevenção e sobre o impacto da falta de informação sobre métodos seguros, num país onde a educação sexual ainda é um tabu e onde o acesso aos preservativos é limitado.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), “o VIH continua a ser um dos maiores desafios de saúde pública a nível global. Desde o início da epidemia, o vírus já causou cerca de 42,3 milhões de mortes e, no final de 2023, estimava-se que 39,9 milhões de pessoas viviam com VIH. No entanto, a melhoria do acesso a diagnóstico, tratamento e cuidados médicos eficazes permitiu que a infeção se tornasse uma condição crónica gerível, desde que as pessoas diagnosticadas tenham acesso a tratamento antirretroviral (TAR).”
De acordo com a Estrela Mais, entre 2003 e 2024, foram registados 2.256 casos positivos, sendo que 1.206 pessoas estão a receber tratamento antirretroviral (ARV).
Já o INCSIDA registou entre 2003 e 2023 quase 2 mil seropositivos, em que maioria é homem.
Recorde-se que, desde 2003, Timor-Leste tem recebido apoio do Fundo Global para fortalecer a sua resposta ao VIH/SIDA, totalizando 28 milhões de dólares em financiamento para programas de prevenção, tratamento e assistência às pessoas que vivem com o vírus.
Este ano, o Governo alocou 1 milhão de dólares ao INCSIDA, dos quais metade foi utilizada para a disseminação de informação e para o apoio às pessoas com VIH/SIDA.
Para perceber até que ponto as afirmações do presidente do INCSIDA têm base científica, o Diligente verificou as declarações feitas na entrevista, consultou especialistas e analisou as evidências disponíveis.
O VIH pode ser transmitido através de qualquer tipo de relação sexual, mesmo com preservativo?
Declaração de Daniel Marçal: “Isto acontece em todos os países, não apenas em Timor-Leste. A atividade sexual, com ou sem proteção, é o principal fator que estimula a circulação do vírus do VIH. O sexo livre não ocorre apenas entre pessoas que trabalham no setor do sexo, mas também entre jovens que namoram e casais que têm relações sexuais sem fidelidade a um único parceiro”.
Inês Lopes, Diretora-Executiva da ONG Estrela Mais, contestou as declarações de Marçal, sublinhando que não há estudos que comprovem que o aumento da atividade sexual – protegida ou não – está diretamente ligado ao crescimento dos casos de VIH. “O sexo é uma necessidade biológica comum a todas as pessoas e não pode ser completamente controlado. Por isso, defendemos que as relações sexuais devem ser responsáveis, seguras e consensuais”, afirmou.
O VIH pode ser transmitido através do contacto com fluidos corporais de uma pessoa infetada, incluindo sangue, leite materno, sémen e fluidos vaginais. No entanto, o vírus não se transmite por beijos, abraços ou partilha de alimentos. Segundo a OMS, os principais fatores de risco incluem relações sexuais sem preservativo, infeções sexualmente transmissíveis não tratadas e uso de drogas injetáveis com seringas contaminadas. Campanhas baseadas apenas na abstinência não são eficazes na redução do VIH, sendo essencial apostar na educação sexual, no acesso a preservativos e no tratamento das infeções sexualmente transmissíveis (IST’s).
A abordagem do INCSIDA sobre ‘sexo livre’ contribui para o estigma?
Declaração de Daniel Marçal: “O sexo livre não ocorre apenas entre pessoas que trabalham no setor do sexo, mas também entre jovens que namoram e casais que têm relações sexuais sem fidelidade a um único parceiro.”
O Diretor-Executivo da Associação da Comunidade Progresso (ACP), Brigal Ferreira, criticou a forma como o INCSIDA usa o termo ‘sexo livre’, alertando para o impacto negativo da desinformação e do estigma.
“As pessoas não praticam ‘sexo livre’, praticam sexo casual. O problema é que o INCSIDA, ao não compreender corretamente este conceito, está a espalhar um estigma, o que dificulta o acesso das pessoas a testes e informação sobre o VIH”, explicou.
Além disso, o discurso do INCSIDA pode afastar as pessoas dos serviços de saúde, agravando a situação. “Quando uma instituição estatal transmite informações erradas através dos meios de comunicação, cria um ambiente de medo e preconceito, dificultando o combate à epidemia do VIH”, alertou Brigal Ferreira.
Inês Lopes questionou ainda o conceito de ‘livre’. “Estamos a falar de livre de doenças? Se for isso, concordo. Mas se estivermos a falar de um conceito vago, sem base em estudos concretos, então estamos apenas a reforçar preconceitos e a afastar as pessoas da informação que realmente importa.’”
Brigal Ferreira alerta ainda para a necessidade de basear as campanhas de prevenção em provas concretas. “Se não tivermos dados científicos claros sobre os riscos associados ao VIH, corremos o risco de estigmatizar grupos inteiros da sociedade. Isto não apenas prejudica as pessoas que vivem com o vírus, mas também impede os jovens de procurarem informação e proteção adequadas.”
O diretor-executivo da ACP alertou para o risco deste tipo de discurso: “O INCSIDA está a espalhar um estigma que dificulta o acesso das pessoas a testes e informação sobre o VIH. O problema não é o ‘sexo livre’, mas sim a falta de educação sexual e de acesso a preservativos.”
A ministra da Educação, Dulce de Jesus, confirmou que o VIH/SIDA é abordado apenas dentro do programa de saúde escolar, mas não há uma disciplina específica sobre educação sexual. O presidente do INCSIDA afirmou que, no passado, tentou incluir um currículo sobre o VIH nas escolas, mas a proposta não foi aprovada pelo Ministério da Educação, e agora a instituição está a tentar reiniciar esse processo.
Para a Estrela Mais, a falta de educação sexual estruturada é um dos principais desafios para a prevenção do VIH. “Muitas pessoas não têm conhecimento suficiente sobre VIH e métodos de prevenção. Sem educação sexual nas escolas, não podemos apontar o dedo ao uso de preservativos como causa do aumento dos casos de infeção. O maior risco é a falta de conhecimento e informação”, explicou a ONG.
O INCSIDA evita discutir o uso de preservativos?
Declaração de Daniel Marçal: “Se falarmos do ponto de vista moral, não aceito. Se dentro de um casal, o marido usa preservativo para ter relações sexuais com outra pessoa, isso é pouco ético. Durante as minhas intervenções, quando me pediram para explicar a estratégia ABCD, mencionei os preservativos, mas sem grande ênfase, porque ninguém perguntou sobre isso.”
Embora Daniel Marçal não tenha afirmado que evita totalmente falar sobre preservativos, reconheceu que não dá grande ênfase ao tema.
O uso de preservativos é um dos métodos mais eficazes para prevenir a transmissão do VIH, segundo a OMS e outras organizações especializadas na área da saúde.
A ONG Estrela Mais criticou a posição do INCSIDA, alertando que muitas pessoas sabem que devem usar preservativos, mas enfrentam dificuldades para os obter devido à falta de acessibilidade e ao tabu social. “O acesso à prevenção é muito limitado. Muitas pessoas compreendem a importância do uso de preservativos, mas não conseguem obtê-los facilmente”, afirmou um representante da ONG.
A OMS, o Fundo Global e a UNAIDS estabeleceram como meta que, até 2025, 95% das pessoas que vivem com VIH sejam diagnosticadas, que 95% dessas pessoas recebam tratamento antirretroviral e que 95% dos indivíduos em tratamento atinjam uma carga viral suprimida, reduzindo assim a transmissão. No entanto, em 2023, estas taxas situavam-se nos 86%, 89% e 93%, respetivamente, o que mostra que ainda há desafios a superar para alcançar esse objetivo.
A comparação com outros países sobre o uso de preservativos é válida?
Declaração de Daniel Marçal: “Na Indonésia, os preservativos são gratuitos, mas os casos de VIH continuam a aumentar.”
A ONG Estrela Mais sublinhou que o acesso a preservativos é apenas um dos fatores na luta contra o VIH e que comparar países sem considerar outros elementos, como políticas de testagem, acesso a tratamento e educação sexual, pode desinformar a população. “Não podemos fazer comparações sem dados concretos. Além do uso de preservativos, é necessário garantir que as pessoas tenham acesso a testes, informação e tratamento adequado”, alertou a ONG.
Inês Lopes acrescentou que não há um estudo claro que relacione diretamente a distribuição de preservativos com o aumento dos casos de VIH. “O conhecimento sobre prevenção é limitado e o acesso aos preservativos ainda enfrenta barreiras culturais e sociais, o que compromete a sua eficácia se não for acompanhado de campanhas de educação sexual eficazes”, afirmou.
Profissionais do sexo e tratamento do VIH
Declaração de Daniel Marçal: “Agora há tendência de vários profissionais do sexo que têm VIH não quererem morrer sozinhos, por isso continuam a fazer sexo sem preservativo.”
A ONG Estrela Mais, que acompanha casos de infeção, esclareceu que profissionais do sexo diagnosticados com VIH são acompanhados, recebem tratamento antirretroviral (ARV) e continuam a trabalhar sem representar um risco para os clientes. “Muitos profissionais do sexo aceitam este trabalho devido às suas condições de vida. Mesmo aqueles que são VIH positivos fazem tratamento e tomam a medicação corretamente. Após o tratamento, quando fazem o teste e atingem a carga viral indetetável, já não transmitem o vírus”, explicou um representante da ONG.
A Associação da Comunidade Progresso (ACP), organização que trabalha diretamente com profissionais do sexo em Timor-Leste, rejeitou essa alegação como um “mito perigoso”. “Até agora, todos os profissionais do sexo detetados com VIH foram encaminhados para tratamento e fazem acompanhamento regular. Essa ideia de que continuam a infetar outras pessoas deliberadamente é completamente falsa e só contribui para o estigma”, afirmou O diretor-executivo da ACP, Brigal Ferreira.
A ACP realiza testes regulares e promove a distribuição de preservativos entre profissionais do sexo, garantindo que aqueles que são diagnosticados com VIH recebam tratamento adequado.
Brigal Ferreira alertou ainda para o facto de o VIH não ser uma sentença de morte. “O VIH não é uma doença mortal. O importante é garantir que as pessoas tenham acesso ao tratamento para que não cheguem à fase da SIDA. Muitas pessoas vivem com VIH e têm vidas saudáveis. O problema é quando se cria um ambiente de medo em vez de informação”, disse.
De acordo com a OMS, as pessoas que vivem com VIH e seguem um tratamento antirretroviral eficaz, atingindo uma carga viral indetetável, não transmitem o vírus aos seus parceiros sexuais. Isto significa que o acesso precoce ao tratamento e o apoio à adesão à medicação são fundamentais, não só para a saúde das pessoas com VIH, mas também para reduzir a transmissão do vírus.
As declarações do presidente do INCSIDA sobre as mulheres são discriminatórias?
Declaração de Daniel Marçal: “Moralmente, falo sempre com as mulheres. Podem comparar o vosso corpo a um preservativo de cinquenta cêntimos, porque também tem um preço.”
A ONG Estrela Mais condenou estas declarações, considerando que reforçam preconceitos de género e contribuem para a desigualdade de acesso à informação sobre saúde sexual e reprodutiva. “Não se pode comparar o corpo das mulheres a um preservativo. Além disso, por que razão o discurso moralista é sempre dirigido às mulheres e não aos homens?”, questionou a representante da ONG.
“Isto é discriminação e não é a primeira vez. No seu talk-show, ele já fez comentários sobre a forma como as mulheres se vestem, mas nunca falou do comportamento dos homens. O problema não está na roupa das mulheres, mas sim na forma como algumas pessoas as veem. Agora, sobre preservativos, ele faz juízos morais como se todas as pessoas tivessem a mesma visão sobre o tema. Existem dados que mostram que apenas as mulheres usam preservativos? E os homens, não fazem parte da questão? Não se pode comparar as mulheres com qualquer coisa”, afirmou a representante da organização.
A educação sexual estruturada, o acesso facilitado a preservativos e a ampla disponibilização de testes de VIH são considerados pela OMS como medidas essenciais para travar a epidemia do VIH/SIDA. As evidências científicas mostram que a aposta no diagnóstico precoce e na adesão ao tratamento tem sido um dos fatores determinantes para reduzir as novas infeções a nível global.
O Diligente tentou contactar o Ministério da Saúde para confirmar os dados e esclarecer diversas questões relacionadas com o tema em análise. No entanto, até ao momento da publicação deste texto, não obtivemos qualquer resposta por parte da instituição.