Natação, mergulho, limpeza de praias e ações de sensibilização para a conservação do mar são algumas das atividades abertas ao público, organizadas por um grupo de voluntários timorenses.
Quem anda pela praia do Cristo Rei, aos domingos, de manhã ou de tarde, normalmente encontra um grupo de jovens a limpar o areal e, em seguida, a entrar no mar com os equipamentos de snorkeling: máscara, tubo de snorkel e barbatanas, materiais de segurança – como coletes salva-vidas e boias. As atividades só acontecem quando a maré está alta, para evitar que os corais sejam alvo de eventuais pisadelas, e quando o tempo é favorável.
Estabelecido a 2 de fevereiro de 2023, com 18 membros voluntários, o coletivo Underwater Cinema (UC), literalmente traduzido para “Cinema debaixo de Água”, tem agora 27 membros, 13 dos quais com certificado de mergulho livre (free diving). “Queremos que as atividades semanais sejam sempre gratuitas”, diz o coordenador da iniciativa, Joãozinho Dedito Martins.
O Underwater Cinema nasceu da vontade de levar mais jovens a testemunhar a beleza do ecossistema marinho e a desenvolver o amor pelo mar, sensibilizando-os para o impacto do lixo no ambiente. Com a paixão que o grupo tem mostrado ao longo deste ano e meio de atividade, espera-se que mais pessoas se juntem ao movimento.
“Timor-Leste é rodeado por mar, mas a vida debaixo de água é um mistério para a maior parte dos timorenses. Uma das razões é a falta de conhecimento sobre a vida dos oceanos. O Underwater Cinema compromete-se a mudar isso”, destaca Joãozinho Dedito Martins.
Kayaka (nome estimado do jovem) conta que, no início da independência, muitos turistas faziam mergulho na Praia dos Coqueiros, mas agora, por conta do lixo, líquido e sólido, a biodiversidade foi drasticamente afetada. “Estes danos têm ação humana. Por isso, tentamos inspirar os jovens para protegermos o que sobra do país”, salienta.
O jovem também é coordenador da Preservação Marinha do Blue Ventures (BV), instituição focada na conservação do mar.

A limpeza da praia “é pertinente, mas aborrece”, como os integrantes do UC costumam dizer. O coletivo tem outra forma de aproximação. “Usamos uma motivação, algo de que gostamos, para fazer o que não nos dá tanto gosto. Proteger o ambiente é uma responsabilidade de todos, principalmente dos que não colocam o lixo nos sítios devidos”, confessa o coordenador. Todos os meses faz-se a recolha dos dados, quanto ao lixo recolhido.
A cada semana, entre 30 e 60 participantes, na maioria jovens, demostram entusiasmo e juntam-se para recolher o lixo da praia do Cristo Rei e, se a maré o permitir, descobrir os corais e toda a vida marinha daquela área. Desde o começo, o grupo já facilitou a exploração da vida subaquática a mais de mil pessoas.
Uma das participantes do UC, Sónia Smith, que é funcionária do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP, em inglês), orgulha-se de Timor-Leste ter “uma rica biodiversidade marinha, que deve ser preservada”, mas que muitos cidadãos não têm essa noção. Já Cleodinho Gusmão, estudante de Ciências Marinhas e membro da equipa, destaca a importância do UC nas dinâmicas de sensibilização e esclarecimento da população sobre “a riqueza do mar e a sua proteção.”
O material recolhido na praia é registado num sistema da Australian Marine Debris Initiative (AMDI), uma rede que trabalha na remoção e prevenção da acumulação de detritos marinhos. Após o registo, os resíduos seguem para as lixeiras que respeitam a separação dos tipos de lixo. Trata-se de uma colaboração, estabelecida em maio de 2023, entre o UC e a Timor-Leste Limpo e Verde (CGTL, sigla em inglês), uma organização de jovens ambientalistas.
Além das atividades regulares, o UC também organiza ações de sensibilização nas escolas, a respeito do mar e da sua importância, e sobre a poluição e os seus impactos. A dinâmica, que começou no mês passado, prevê um programa mensal, com o qual se pretende cativar a comunidade estudantil, através de vídeos sobre a biodiversidade marinha, que levam alguns alunos a perguntar se “é mesmo em Timor-Leste”.
O grupo reserva momentos, todos os meses, para a melhoria das capacidades de mergulho e de primeiros socorros. A sessão semanal de avaliação do trabalho, a recolha de informações e a preparação de futuros planos e estratégias fazem parte do programa interno do UC.
Underwater Cinema: a origem do nome
A denominação do grupo surgiu quando Kayaka viu o fundo do mar pela primeira vez, há sete anos e percebeu toda a beleza e toda a vida marinha que estava ali a acontecer, mas que parecia um filme. Foi uma experiência transformadora para o jovem. Quando trabalhava como oficial de administração no Blue Ventures, foi-lhe concedida a oportunidade de explorar o “paraíso no mundo” e tudo mudou desde então.
Kayaka, que também é músico, vive dividido entre o mundo do espetáculo e o dos oceanos. Aquele momento despertou no jovem uma vontade de fazer tudo para que o fundo do mar mantenha toda a sua beleza. Por outro lado, o artista também é uma prova de que muitos timorenses têm medo do mar. Kayaka vivia na montanha e não sabia o que estava debaixo do mar. Em criança, via os incidentes na TV, de pessoas que foram atacadas por crocodilos ou tubarões. Isso alimentava o receio.
O medo transformou-se em paixão pela riqueza do oceano logo no primeiro mergulho. “Fiquei impressionado com a beleza do mar, como se estivesse a assistir um outro mundo. Para mim, o mar é o paraíso e espero que todos os timorenses possam experimentar isso”, partilha com entusiasmo o coordenador do UC.

Esta experiência e o facto de muitas pessoas, neste caso, os mergulhadores internacionais, lhe dizerem que o mar de Timor-Leste é único, levaram-no a pensar no conceito de Underwater Cinema. Mas a ideia ficou guardada no fundo do coração de Kayaka, que achava difícil de concretizar, visto que muitos timorenses não sabem nadar.
Quando os mergulhadores e pesquisadores que estavam no Blue Ventures voltaram para o seu país, deixaram os equipamentos de snorkeling com o músico. Além da oferta, foram estas palavras que o motivaram a continuar a nadar: “olha, és timorense e estás no teu país. Nós gastamos muito dinheiro para poder vir cá ver o teu mar, enquanto que tu tens o mar à porta de casa. Se não nadares, é uma grande tristeza”.
Vendo o quanto o jovem valorizava o mar e o modo como ele aproximava a comunidade, com destaque para o Tara Bandu, uma tradição de proteção do ambiente, o Blue Ventures promoveu Kayaka, em 2019, a coordenador da Conservação Marinha. A partir daí, começou a participar em cursos do BV, sobre a identificação de corais e de peixes, a metodologia de pesquisa de monitorização ecológica, além do mergulho autónomo e livre.
Segundo Kayaka, o mergulho livre (free diving) é mais acessível, em termos financeiros, do que o mergulho autónomo (scuba diving), apesar de o preço dos cursos, para ter certificado, ser semelhante. “Depois, há o aluguer dos equipamentos. No caso do mergulho (scuba diving), com o aluguer do cilindro de oxigénio, barbatanas, máscara, etc., os preços podem chegar aos 80 dólares por mergulho”, informa o jovem.
De cinco para dezenas
Já depois de concluir o curso de free diving, em 2022, que lhe permite mergulhar em qualquer momento, por um preço mais acessível, o jovem pensou em começar a trabalhar no seu sonho. Convidou, então, alguns amigos que também têm paixão pelo mar, mesmo que não fossem certificados para fazer mergulho. Os colegas só faziam snorkelling (à superfície), mas viam Kayaka a ir ao fundo, já perto dos corais e dos peixes.
A dinâmica repetiu-se algumas vezes, apenas com cinco kits de snorkel, alguns herdados por Kayaka dos mergulhadores estrangeiros, e uma câmara de ar de um pneu a servir de boia. O pequeno grupo chegou a fazer mergulho em Ataúro. Aquele lugar fez com que os amigos se apaixonassem pelo “paraíso” e se entusiasmassem por aprender a mergulhar.
No entanto, o lixo na praia contrastou com a beleza do fundo do mar e foi logo algo que perturbou os jovens. Com uma equipa pequena (naquele momento eram cinco), pensaram em convidar mais pessoas para poderem, além de ver a biodiversidade marinha, ajudar na limpeza da praia.

Kayaka recorreu à sua conta de Instagram para dar a conhecer a turma de jovens que se querem divertir e contribuir para o ambiente. Não quis dar logo um nome ao grupo, com a esperança de que os participantes ficassem à vontade para se sentirem parte da iniciativa e chegassem a um consenso em conjunto. E foi isso mesmo que aconteceu.
De cinco elementos, no final de 2022, passaram para dezoito, no início de 2023. O coordenador do coletivo considera que o rápido aumento se deveu ao interesse dos cidadãos pelo mar e pela sua biodiversidade. Divertir-se enquanto se faz um trabalho comunitário, de limpeza e sensibilização, faz parte, ainda hoje, do espírito da equipa. Foi aí que estabeleceram o grupo, dentro dos moldes atuais, e lhe deram o nome de Underwater Cinema.
Desafios
O coordenador confessa que tinha receio de que, depois de as pessoas participarem nas atividades, não voltassem mais. Alguns colegas resolveram mesmo sair, mas, graças ao espírito de grupo e a uma confiança que une todos os membros, a iniciativa continua. A transparência e o sentimento de igualdade, independentemente do cargo, mantém todos “no mesmo barco”.
O coletivo é flexível: se alguém da equipa está sem vontade, é aconselhável não participar para não deixar os outros desmotivados. Se estiverem disponíveis menos de dez pessoas, adiam-se as atividades. Sempre que se faz alguma ação, a turma presente dedica-se por inteiro.
Para já, não estão abertas vagas para novos membros, por ser necessária uma reestruturação do grupo. Pela mesma razão que tem sido recusado apoio em forma de dinheiro. A reestruturação permitirá que o UC angarie fundos para que as atividades possam ser sempre gratuitas e se consiga atingir mais pessoas e mais lugares.
Kayaka sublinha a dificuldade de conseguir concorrer a fundos do Governo, devido ao facto de o grupo não estar registado. Os fundadores da iniciativa estão ainda a procurar saber o que é melhor para uma turma de voluntários.
“Não queremos ser uma associação, porque não existimos para um projeto, mas queremos ter uma influência social e que a nossa existência seja reconhecida”, explica o coordenador, deixando claro que tem abertura para colaborar com o Governo, mas não quer ser controlado pelo mesmo.
O UC ainda não tem conseguido mobilizar os participantes para outro lugar além do Cristo Rei, por causa do transporte. Além disso, é uma grande tarefa levar (nas motas) os equipamentos todas as semanas de Santa Cruz, o lugar onde normalmente o grupo se concentra, até ao Cristo Rei. É em Santa Cruz, numa loja que pertence a um membro do UC, onde os equipamentos ficam guardados.
Os parceiros do UC
No final de 2023, Kayaka foi apresentado pela sua ex-diretora regional no BV, Birgit Hermann, a Reho Travel, uma empresa em Austrália. A companhia financiou a viagem para Timor-Leste, a estadia e a comida de duas instrutoras (a própria Birgit Hermann e Laura McGuire), que deram gratuitamente formação de free diving, primeiros socorros e uso de equipamentos a 13 membros do UC. Estes elementos foram então certificados com mergulho livre da Associação Internacional para o Desenvolvimento do Freediving (AIDA, em francês). Reho Travel disponibilizou ainda ao grupo 20 kits de snorkel e alguns equipamentos de segurança.
A agência de mergulho Dreamers Dive Academy (DDA), em Metiaut, também apoiou a iniciativa com coletes salva-vidas e boias.
O UC ainda recebeu tendas, visto que passam muito tempo debaixo do sol, da JCI Timor-Leste, uma organização comunitária que junta empresários, empreendedores e jovens com impacto no país.

Alguns equipamentos são custeados pela associação de ex-alunos da KOICA de Timor-Leste (KAATL, em inglês), que se compromete a pagar os custos das ações de sensibilização. O dinheiro é dado conforme o pedido. A partir desta cooperação, foram colocados, numa sexta-feira do mês passado, 14 contentores do lixo na praia do Cristo Rei. A ação contou com a participação de cerca de 50 pessoas.
A CGTL (Timor-Leste Limpo e Verde) é considerada a parceira principal do UC, por colaborar regularmente em atividades mensais de recolha de dados sobre o lixo, neste caso, a quantidade e os tipos de resíduos encontrados na praia do Cristo Rei.
Por sua vez, a Fundação Oriente apoia o UC com a cedência do espaço para a realização de atividades do grupo, como a capacitação dos membros, reuniões, entre outras.
A esperança e o futuro
O UC pretende criar seu próprio sistema de coleta de dados, pois o acesso à plataforma para onde são inseridas as informações do lixo acumulado, tanto pelo UC, como pelo CGTL, é limitado. O sistema está a ser desenhado numa aplicação que se chama Kobo tools e vai ser adaptado ao contexto timorense, usando o tétum para ser compreensível para a população local.
Para Kayaka, o modelo poderá ser útil para o Governo conseguir aceder a detalhes sobre tudo o que é descartado na praia. “É um grande sonho, mas começamos com o nosso grupo. Ao apresentar valores, podemos destacar a essência do nosso esforço”, salienta.
Além dos dados sobre o lixo, o sistema irá disponibilizar informações sobre o número de pessoas que participaram nas atividades, quantas sabem nadar, entre outras. São detalhes, por exemplo, que poderão servir de base para o Estado introduzir a natação nos currículos escolares. “Estamos rodeados de mar e muitas pessoas passam tempo na praia. No entanto, por não saberem nadar, ainda há registos de afogamentos”, observa o coordenador do UC.
Para o futuro, Kayaka quer apostar em pesquisas sobre recifes corais e já pensa em recolher dados sobre os diferentes ecossistemas marinhos. Para isso, diz, “é necessário mais apoio para formações em mergulho livre, para termos instrutores”. Para o coordenador da Conservação Marinha no BV, o Governo deve investir na pesquisa sobre biodiversidade marinha, visto que há cada vez mais jovens a saber nadar.

Se conseguir, pelo menos, cinco instrutores no UC, o grupo gostaria de abrir um negócio com cursos de mergulho livre (free diving) a um preço acessível para os timorenses. A ideia é ter um rendimento para sustentar as iniciativas sociais, mantendo-as gratuitas, e dar emprego aos membros. Também está no horizonte o franchising da marca Underwater Cinema, pois está a ser muito divulgado e a ganhar muitos fãs.
“Um ano é pouco. O meu sonho é fazer com que todos os timorenses se esforcem para proteger o mar e consigam nadar. Ainda está muito longe de acontecer, pois o processo é longo”, conclui Kayaka. Investindo na educação da sociedade, o UC está confiante em que Timor-Leste pode assegurar que as suas águas sejam sempre limpas e claras, tão belas como nos mais bonitos filmes do cinema.