Um jovem foi detido durante horas por criticar o primeiro-ministro, sem cometer qualquer crime. Juristas alertam: a PNTL volta a violar a lei, e o direito à liberdade de expressão está em risco.
Ontem, 15 de junho, enquanto no interior do Salão Multiusos do GMN, Xanana Gusmão celebrava o 8.º aniversário do Grupo Media Nacional (GMN) a fumar num espaço fechado — uma prática proibida por lei — e a abrir garrafas de champanhe que despejou sobre os convidados, lá fora a Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL) levava um jovem para a esquadra de Caicoli. O motivo? Ter gritado “Viva Papua” e “primeiro-ministro dungu” — sendo que dungu significa “estúpido” em indonésio.
De acordo com os artigos 5.º e 7.º do regulamento nacional de controlo do tabaco, é expressamente proibido fumar em locais como instituições de ensino, centros de saúde, transportes públicos, locais de trabalho e outras instalações públicas fechadas.
Crónico Oprimido, nome pelo qual o jovem se identifica publicamente, relatou ao Diligente que se encontrava no local para assistir à palestra do indonésio Rocky Gerung. “Fomos ver a palestra, mas não nos deixaram entrar, por isso assistimos cá fora. Quando gritei, um escolta perguntou-me onde estava a Papua quando Timor-Leste lutava pela independência. Eu tentei responder, mas fui logo agredido. Deu-me um murro no peito, que me deixou sem ar, e uma palmada. Alguns elementos do serviço de inteligência também me deram palmadas. E depois eles contactaram a PNTL para me deter. Quando os agentes da PNTL chegaram, rodearam-me e empurraram-me para dentro do carro da polícia. Fiquei em choque.”
Apesar de se ter identificado no local, foi conduzido à esquadra de Caicoli, onde permaneceu cerca de nove horas. “Quando cheguei, ainda levei um pontapé. Disseram-me para descansar, mas ninguém explicou porque tinha de dormir ali.” No local, a polícia alegou estar a proceder a uma “identificação”.
Contou que, ao chegar à esquadra, um dos agentes da PNTL fez um comentário ofensivo, dizendo que os pais dele ainda nem tinham tido relações sexuais quando Xanana lutava pela independência do país. “Fiquei indignado com essa declaração estúpida”, afirmou. Acrescentou ainda que foi ameaçado de morte: disseram-lhe que, se Timor-Leste não fosse um país democrático, já o teriam matado. “Acusaram-me também de ser filho de milícias”, lamentou.
Não é caso único. Este episódio junta-se a outros em que a PNTL atuou fora da legalidade para silenciar críticas. Em setembro de 2024, a jornalista Antónia Martins, do Diligente, foi levada para uma esquadra durante o exercício da sua profissão, apesar de se ter identificado. O mesmo aconteceu à ativista Ela Variana, detida por comentários críticos a Xanana nas redes sociais. Em nenhum dos dois casos existia queixa formal nem indícios de crime — o que reforça a ideia de perseguição a vozes incómodas e a banalização do abuso de poder.
De acordo com o artigo 53.º do Código de Processo Penal, a identificação de suspeitos só pode ser feita com base em fundadas suspeitas da prática de crime. E só se pode conduzir alguém à esquadra caso não consiga identificar-se ou se recuse a fazê-lo — o que não aconteceu.
Contactado pelo Diligente, o comandante da PNTL de Díli, superintendente-chefe Orlando Gomes, confirmou que a ação partiu da informação dos escoltas de Xanana, que afirmaram ter ouvido o jovem chamar “estúpido” ao primeiro-ministro. “Por isso levámo-lo. Mas como não é crime, libertámo-lo”, afirmou.
No entanto, o comandante argumentou que a polícia “pode identificar qualquer pessoa sobre a qual tenha dúvidas, mesmo sem crime”. “Não precisamos de esperar que cometa um crime para fazer identificação. Se alguém está a fazer alguma coisa estranha, levamo-lo para identificação.”
Quanto às quase nove horas em que o jovem esteve detido, Orlando Gomes justificou que o tempo serviu “para cumprir o prazo máximo de 12 horas previsto para identificação”. Insistiu ainda que “não se tratou de uma detenção ilegal, porque não passaram 72 horas” e que apenas o Ministério Público pode ordenar detenções.
Sobre a alegada agressão, o comandante sugeriu à vítima que apresentasse queixa — apesar de ser a própria polícia a visada.
Crónico recusa apresentar queixa, afirmando que “não vale a pena”. “O sistema de justiça protege os poderosos. Vejam a Zizelma ou o Bernardino. Os pobres não têm justiça neste país”, disse. Acrescenta ainda que “a palavra ‘dungu’ nem era para ele como pessoa, mas para políticas públicas autoritárias que estão a destruir o povo”.
O jovem considera ter sido alvo de repressão por exercer o seu direito à liberdade de expressão, consagrado no artigo 40.º da Constituição. Já o artigo 10.º da mesma lei fundamental estabelece que Timor-Leste deve ser solidário com as lutas de libertação nacional — como a da Papua Ocidental.
Jurista: “Criticar o primeiro-ministro não é crime. Bater num cidadão, sim”
O jurista Armindo Moniz considerou que a ação da PNTL constituiu uma detenção ilegal e criticou também o modo como o jovem foi libertado, sem qualquer documento formal a justificar a sua retenção. Segundo explicou, os agentes só podem atuar se houver provas suficientes de que uma pessoa cometeu, está a cometer ou está prestes a cometer um crime.
“Este indivíduo não preenche nenhum desses critérios. Apenas disse que o primeiro-ministro é estúpido. Isto é normal. Não existe nenhuma legislação que proíba alguém de criticar o primeiro-ministro ou o Presidente da República”, afirmou o jurista.
Armindo Moniz sublinhou que Timor-Leste não é uma monarquia, mas um Estado democrático, e que proferir palavrões não constitui crime — trata-se, no máximo, de uma questão de moralidade. “Se o primeiro-ministro se sentiu difamado, cabe-lhe a ele apresentar queixa. Porque é que outras pessoas é que se sentiram ofendidas com as palavras do jovem?”, questionou.
O jurista criticou ainda o que considera ser uma contradição flagrante: “Dentro do edifício, falava-se sobre o aumento do índice de liberdade, mas cá fora violavam os direitos das pessoas para que não falassem. Isto revela um Estado com tendências autoritárias.”
Armindo Moniz classificou como crime a agressão ao jovem — pontapés, murros e insultos — por parte dos agentes da polícia, considerando que esse tipo de comportamento constitui uma ameaça crescente à democracia. “Em vez de garantir a democracia, a PNTL contribuiu para a sua destruição naquela noite. Disseram que ele estava a usar símbolos da Papua. E então? Isso é crime?”
O jurista apontou também que a atuação da polícia não foi imediata, o que contraria os procedimentos legais. “Não foi uma detenção em flagrante delito. Só o abordaram mais tarde, quando foi comprar água. Em casos de flagrante, a pessoa é detida no momento em que comete o crime. Mesmo assim, sem indícios fortes, a vítima pode recorrer, porque a atuação foi ilegal.”
Referiu ainda que a vítima foi insultada pelos próprios agentes. “Disseram-lhe que, quando Xanana fazia a guerra, os pais dele ainda nem tinham tido relações sexuais para o conceber. Porquê?”, questionou.
Armindo Moniz defendeu que o jovem deve apresentar queixa, através da Provedoria dos Direitos Humanos e Justiça ou de outras entidades competentes, para que haja consequências legais. “Este caso não diz apenas respeito ao seu interesse pessoal, mas também à defesa da democracia e dos direitos constitucionais de todos os cidadãos. Esta atuação ilegal pode acontecer a qualquer um. A queixa deve servir de referência e lição para impedir que a polícia volte a agir assim.”
Quanto à recusa do jovem em apresentar queixa, o jurista interpretou-a como reflexo da falta de confiança no Estado. “O Estado não tem capacidade para garantir justiça aos seus cidadãos. No fim, transmite-se a mensagem de que o Estado favorece certos grupos e protege as elites, deixando os cidadãos comuns sem acesso à justiça.”
A propósito do caso da Ela Variana, o jurista Sérgio Quintas afirmou que as ações da PNTL violam o artigo 53.º do Código de Processo Penal e o artigo 157.º do Código Penal, que trata do crime de ameaça. “Mesmo para esse crime, é necessário haver queixa da vítima e indícios de que a ameaça causou medo ou limitou a liberdade da pessoa visada — nada disso aconteceu nestes casos.”
O provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, também se pronunciou na altura: “A PNTL não tem fundamento legal para identificar cidadãos só por expressarem opinião política. Expressar uma opinião é um direito que o Estado não pode reprimir.”
A disparidade entre a celebração ruidosa do poder e a repressão de quem ousa criticar levanta uma pergunta essencial: que valor tem a democracia timorense, se não protege os seus cidadãos do abuso de poder?