Suspensão da USAID em Timor-Leste: o que está em jogo?

Sessão de formação para os grupos de autoajuda, incluindo o de Flamina dos Santos, em Ermera/Foto: CBRN-TL

A suspensão do financiamento da USAID em Timor-Leste coloca em risco projetos essenciais para a inclusão social, educação e saúde. Organizações locais e trabalhadores enfrentam incerteza, enquanto especialistas alertam para impactos económicos e sociais significativos.

A vida de Flamina dos Santos, de 34 anos, coordenadora do grupo Halibur Deficiência Buka Moris, em Ermera, transformou-se quando começou a envolver-se na Rede de Reabilitação Baseada na Comunidade de Timor-Leste (CBRN-TL), uma organização que apoia pessoas com deficiência. Antes disso, Flamina era dona de casa e dependia financeiramente do marido, que  trabalhava na construção civil. “Eu dependia do meu marido em termos financeiros e, por falta de dinheiro, morávamos na casa dos meus pais”, partilhou.

Em 2019, iniciou como voluntária e, pouco a pouco, ganhou experiência e reconhecimento.  Com a chegada da CBRN-TL ao município de Ermera, através de formações sobre prevenção da violência baseada no género, sentiu-se motivada a participar na organização e a partilhar o conhecimento adquirido com a sua comunidade, especialmente com mulheres e pessoas com deficiência.

Antes de trabalhar na CBRN-TL, a vida familiar não era fácil: durante cerca de 5 anos, Flamina, o marido e os filhos viveram com pais dela, que eram agricultores e enfrentavam dificuldades financeiras. Hoje, a realidade é diferente. Com o seu trabalho, Flamina assumiu o papel de principal provedora da família, enquanto o marido cuida dos filhos e dos animais da casa. Quando ela tem mais tempo livre, ele pode aceitar trabalhos temporários.

Empoderamento e sustentabilidade

Em 2022, a CBRN-TL criou  o grupo Halibur Deficiência Buka Moris, reunindo pessoas com deficiência e mulheres para discutir e combater a violência baseada no género e a violência sexual, principalmente contra as mulheres com deficiência. O grupo não atua diretamente junto da polícia, mas facilita soluções para as vítimas.

Após dois anos como voluntária, Flamina tornou-se coordenadora do grupo, que desenvolve pequenas atividades económicas, como a venda de doces, bétel e areca, cultivo de hortaliças e  criação de peixe. Além disso, organizam um fundo comunitário para concessão de empréstimos, as mulheres a ganharem independência financeira.

Contudo, a suspensão do apoio financeiro dos Estados Unidos da América, incluindo os fundos da USAID, trouxe desafios. O grupo passou a contar com menos recursos e, como consequência, o salário de Flamina caiu de 150 dólares americanos para 50 dólares por mês.

Mesmo assim, ela mantém-se firme: “Tenho o compromisso e a coragem de continuar a trabalhar e a aprender nesta organização. O dinheiro acaba, mas o conhecimento permanece e pode ser partilhado com os outros. E a nossa história vai ser contada”, afirma.

Impacto da suspensão da USAID em Timor-Leste

A CBRN-TL tem sido fundamental na promoção da inclusão social, na capacitação de mulheres e na defesa dos direitos das pessoas com deficiência. A organização também realiza pesquisas sobre o acesso dessas pessoas à saúde, educação e justiça, tendo identificado que muitas ainda enfrentam estigma e discriminação ao procurarem serviços básicos.

Até janeiro de 2025, a ONG recebeu 72 mil dólares em apoios dos EUA e produziu quatro relatórios sobre o acesso à saúde para pessoas com deficiência em Díli, Baucau e Ermera. No entanto, com a suspensão dos financiamentos da USAID, The Asia Foundation e da Embaixada dos EUA, a continuidade desses projetos está ameaçada.

A diretora da organização, Norberta Soares, lamenta o impacto da decisão: “Os grupos ainda são novos e precisam de apoio financeiro e técnico. Apesar disso, os 18 funcionários decidiram continuar como voluntários, pois já tinham feito voluntariado antes e mantêm esse espírito.”

O Fórum de Organizações Não Governamentais de Timor-Leste (FONGTIL) apelou à compreensão das mudanças políticas do Governo norte-americano, embora tenha reconhecido o impacto negativo da suspensão dos apoios.

“Esta situação mostra a importância de gerir bem os planos e recursos para não dependermos excessivamente de compromissos estrangeiros, evitando assim consequências caso algum apoio seja suspenso”, afirmou o diretor da organização, Valentim da Costa Pinto.

O diretor destacou ainda que alguns projetos governamentais podem ser afetados, como o Millennium Challenge Compact, que prevê um programa de desenvolvimento de talentos em parceria com o Ministério da Educação; o tratamento de águas residuais, com o Ministério das Obras Públicas e a melhoria da saúde primária, com o Ministério da Saúde.

No que diz respeito à sociedade civil, os apoios externos têm sido fundamentais para áreas como a defesa do reforço do sistema de saúde e da boa governação.

A própria FONGTIL recebeu cerca de 50 mil dólares para um projeto de dois anos sobre advocacia para boa governação. No entanto, com a suspensão do financiamento, a organização viu-se obrigada a cancelar compromissos assumidos, suspender projetos e despedir sete funcionários, comprometendo a capacidade de avaliar o impacto das suas iniciativas.

Apesar de o Presidente José Ramos-Horta minimizou os efeitos da suspensão, afirmando que Timor-Leste não será gravemente afetado, pois conta com o seu próprio Orçamento Geral do Estado (OGE), a sócia da JU,S Jurídico Social, Bárbara de Oliveira, vê a situação de outra forma. Para ela, esta medida colocou pressões legais, económicas e sociais significativas sobre organizações, empregadores, trabalhadores e a comunidade em geral em Timor-Leste.

“As organizações devem cumprir regulamentos laborais rigorosos, e é louvável que muitas estejam a fazer esforços para se manterem dentro das normas aplicáveis, ao mesmo tempo que seguem as instruções da USAID”, observou.

Bárbara alertou ainda para o impacto das demissões e cortes de financiamento, que não só afetam diretamente os funcionários despedidos, mas também as suas famílias e os prestadores de serviços que dependem desses contratos para a sua estabilidade económica.

A sócia da JU,S defendeu a necessidade de uma intervenção governamental para mitigar a instabilidade económica e fornecer mecanismos de apoio a indivíduos, organizações e empresas afetadas.

“A inação do governo terá consequências severas, não apenas para aqueles diretamente afetados pela suspensão do financiamento, mas também para os próprios programas e planos de ação do Executivo. As implicações económicas mais amplas desta suspensão exigem uma resposta urgente e coordenada para evitar danos de longo prazo ao desenvolvimento de Timor-Leste.”

Recorde-se que os decretos assinados por Donald Trump desde que assumiu a presidência dos EUA tiveram um impacto global, incluindo a suspensão das atividades da USAID em vários países, afetando setores essenciais como educação, saúde, infraestruturas rurais e resposta a desastres naturais.

A embaixadora dos EUA em Timor-Leste, Donna Walton, evitou comentar a saída da agência, referindo apenas que a sua continuidade está em discussão.

A USAID, criada em 1961 por John F. Kennedy, tem sido um pilar na assistência humanitária e na defesa dos direitos humanos a nível global.

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