Sonhos de liberdade e igualdade: o futuro nas mãos das meninas timorenses

O trabalho infantil continua a ser evidente dia após dia. O censo de 2022 revelou que 4553 meninas entre os 10 e os 14 anos trabalham/Foto: Diligente

Enquanto uns celebram com luxo, em Timor-Leste, muitas meninas ainda lutam para garantir o básico, como uma refeição suficiente para o dia.

“Que as meninas vivam em paz, sem abuso nem assédio”, “que tenham um ambiente verde, seguro e protegido”, “que a discriminação e a injustiça contra meninas e pessoas com deficiência acabem”, “que todas tenham acesso à educação e ao trabalho”, “que o país se desenvolva e ofereça oportunidades de emprego, reduzindo o crime”, “que as meninas sejam livres e tratadas com igualdade”, “que os autores de violência contra as meninas sejam punidos” e “que todas as meninas sejam respeitadas e possam perseguir os seus sonhos”. Estes são os desejos expressos pelas meninas timorenses no Dia Internacional da Menina, celebrado ontem, dia 11 de outubro. Esta data, estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2010, é um marco para destacar as visões e aspirações das jovens para o futuro.

Em Timor-Leste, o Governo e organizações parceiras têm comemorado esta data de forma inovadora.  As meninas são convidadas a assumir cargos importantes por um dia, numa iniciativa chamada take over. Através desta experiência, são incentivadas a desenvolver as qualidades necessárias para serem líderes no futuro. Este ano, a Plan Internacional celebrou o evento no salão multiusos de Díli.

Com mais de 352 mil meninas entre os 0 e os 17 anos, segundo o Censo de 2022, Timor-Leste é um país de sonhos em formação.

Euphemia Martins, de 16 anos, quer ser cientista e ajudar a melhorar a vida dos outros. Laura Oliveira, de 15 anos, estudante no Colégio Paulo VI, sonha em ser médica ou psicóloga, mas reconhece que, em muitos casos, os sonhos das meninas são abafados quando chegam à maioridade, e os pais ou maridos impõem-lhes o papel de dona de casa e mãe.

Outras meninas, como Natália de Jesus, de 18 anos, estudante do ensino secundário na escola 4 de Setembro, que quer ser engenharia, e Nofinha Soares Maia, de 14 anos, aluna do ensino básico 3º ciclo da escola de São Mateus, que deseja ser piloto, enfrentam barreiras semelhantes, numa luta constante para realizar os seus sonhos.

A pobreza que rouba sonhos

Num país que alcançou a independência e vive em paz, as meninas continuam a enfrentar muitos desafios. A pobreza continua a ser uma barreira que impede muitas meninas de alcançar o seu potencial. Algumas abandonam a escola, outras não podem brincar com os amigos porque têm de ajudar os pais, e muitas não têm uma alimentação adequada. Pior ainda, várias são vítimas de abusos e violência.

Segundo Ângelo Aparício, os desafios que as raparigas enfrentam são muitos, e o ambiente familiar, frequentemente sujeito a violência física e psicológica, exerce uma enorme pressão psicológica sobre estas jovens. O psicólogo refere que as normas de género impostas pela sociedade, como a atribuição de trabalhos domésticos às raparigas, podem criar um ambiente em que elas se sentem sobrecarregadas e incapazes de expressar os seus sentimentos. Além disso, o estigma em torno da saúde mental em Timor-Leste faz com que as raparigas e as suas famílias sintam vergonha de procurar ajuda, agravando os problemas emocionais e psicológicos que enfrentam.

Qercia Correia, uma menina de 9 anos de Baucau, exemplifica esta realidade. Encontrada no jardim do Largo de Lecidere, a vender garrafas de água, contou que veio para Díli para ajudar a irmã grávida. Embora estude no 5.º ano em Baucau, pediu licença da escola. Quando questionada se estava feliz por não ir à escola, não se pronunciou, apenas abanou a cabeça com os olhos lacrimejantes. Será que uma menina desta idade deveria estar a trabalhar nas ruas, longe de casa, em vez de brincar ou aprender?

Em Timor-Leste, o Censo de 2022 revela que 69 mil meninas entre os 0 e os 17 anos em Timor-Leste não têm acesso à educação. Este número é ainda mais elevado entre os meninos da mesma faixa etária, ascendendo aos 72 mil.

Entre os 60 e os 65 anos, a taxa de literacia masculina é mais do dobro da feminina. “Embora a alfabetização entre os jovens de ambos os sexos seja praticamente a mesma, a taxa de alfabetização entre os homens dos 60 aos 65 anos é mais do dobro da das mulheres na mesma faixa etária. A diferença nas taxas de literacia específicas por idade entre homens e mulheres em grupos etários mais avançados indica a posição de desvantagem das mulheres na educação no passado”, consta no documento.

Além disso, Aparício destaca que a falta de oportunidades e a desigualdade de género contribuem para sentimentos de desmotivação e ansiedade nas raparigas. “Precisamos de promover exemplos positivos na vida das crianças. Elas necessitam de modelos que possam inspirá-las”, conclui o psicólogo.

Florinda da Costa, de 34 anos, uma mãe de cinco filhos de Aileu, é um exemplo de como a falta de educação perpetua o ciclo de pobreza. Com o marido idoso e sem emprego, a família depende da venda de café e cigarros para sobreviver. Antes tinham um quiosque no Largo de Lecidere, mas  com a proibição de venda pela Secretaria de Estado da Toponímia e Organização Urbana (SEATOU), a situação piorou.

Os filhos, muitas vezes, vão para a escola sem tomar o pequeno-almoço, e a terceira filha, em vez de brincar como os irmãos, tem de ajudar a mãe. “Tenho medo que lhe aconteça alguma coisa, porque os rapazes são malandros”, justificou a mãe.

Durante as celebrações do Dia Internacional da Menina, um grupo de jovens retratou essa realidade numa peça de teatro. No palco, as personagens enfrentaram os dilemas reais que muitas famílias timorenses vivem. As risadas da plateia contrastaram com a gravidade das situações encenadas: uma mãe que grita com a filha para que falte à escola e venda mangas, uma jovem expulsa de casa por tentar conversar com a família, e uma menina que, sem acesso a educação, cresce sem futuro, enquanto as suas colegas triunfam.

Seguras, saudáveis e livres?

A insegurança física e emocional também pesa sobre as meninas timorenses. Em 2023, 523 mulheres e crianças foram assistidas pela Assistência Legal para Mulheres e Meninas (ALFeLa, sigla em tétum), uma organização de apoio jurídico para vítimas de violência que recebe anualmente entre 200 a 300 queixas de violência doméstica, violação sexual e abuso sexual contra menores, incluindo casos de incesto. Em Timor-Leste, dados da ALFeLa revelam que quase 40% das pessoas do sexo feminino com mais de 15 anos são vítimas de algum tipo de violência.

Contudo, este número reflete apenas os casos reportados. O psicólogo Elvis do Rosário, numa reportagem do Diligente, referiu que muitas vítimas de abuso sexual, especialmente crianças, não compreendem o que lhes aconteceu e são muitas vezes ameaçadas para manterem o silêncio.

Laura Oliveira, de 15 anos, destacou que “muitas meninas sofrem violência, mas ficam caladas”. Ela deseja que os agressores sejam punidos e que as meninas sejam encorajadas a contar o que lhes aconteceu.

Euphémia Martins acrescentou que, por vezes, se sente desconfortável com a maneira como os homens olham para ela, fixando os olhos em determinadas partes do corpo, o que considera uma falta de respeito.

“Se eu tivesse o poder de tornar a vida das meninas mais segura e feliz, mudaria a forma como os homens olham para as mulheres, como pensam sobre elas e como as tratam. É preciso respeito e tratamento igual na comunidade para que as meninas se sintam seguras”, acrescentou a jovem.

O desafio do casamento infantil

O casamento infantil é outro grande desafio que as meninas timorenses enfrentam. O Censo de 2022 revelou que 2.450 meninas entre os 14 e os 18 anos estão casadas. Este fenómeno, muitas vezes impulsionado por pressões familiares e económicas, retira-lhes a oportunidade de terminar os estudos e seguir as suas ambições.

Quando estas meninas se tornam adultas, enfrentam preconceitos que procuram controlar o seu corpo e as suas escolhas. O sistema de saúde, por exemplo, exige frequentemente a autorização do parceiro para o acesso ao planeamento familiar, uma questão de saúde reprodutiva que afeta diretamente o seu futuro e, em última análise, a economia do país.

Segundo Ângelo Aparício, as experiências na infância, como a violência e a falta de apoio, podem afetar profundamente o desenvolvimento emocional e psicológico na vida adulta. Alerta que estas meninas, ao chegarem à idade adulta, podem desenvolver comportamentos de risco, como o consumo de álcool ou drogas, e manifestar violência física ou psicológica.

Apesar de todos estes obstáculos, as meninas timorenses estão a tomar consciência dos seus direitos. Como exemplifica Euphémia Martins, “As tarefas domésticas não são só para as mulheres, são básicas para todos, meninas e meninos, saberem como viver.” Ela acredita que as meninas devem ter a coragem de falar abertamente, lutar pelos seus direitos, e exigir igualdade, liberdade e poder. Para Euphémia, as meninas de Timor-Leste têm o direito de seguir os seus sonhos e merecem que a sociedade as apoie nessa caminhada.

Laura Oliveira faz eco desta mensagem de esperança, apelando às suas companheiras: “Levantem-se e persigam os vossos sonhos. Digamos sim à liberdade das mulheres para conseguirem atingir os seus objetivos no futuro.”

As Nações Unidas reforçam este apelo, afirmando que “com o devido apoio, as meninas podem mudar o mundo, tornando-se líderes, mães, empreendedoras, chefes de família ou políticas.” A ONU acredita que a liderança das meninas tem um impacto profundo e positivo em todos os níveis da sociedade, fortalecendo a economia e promovendo uma comunidade mais justa e inclusiva. A organização afirmou que “as meninas adolescentes têm direito a uma vida segura, educada e saudável, não apenas durante esses anos formativos, mas também à medida que crescem e se tornam mulheres”.

“É hora de ouvir as meninas, de investir em soluções comprovadas que acelerem o progresso rumo a um futuro em que cada menina possa alcançar o seu pleno potencial”, cita o site das Nações Unidas. O futuro de Timor-Leste, tal como o futuro do mundo, depende das meninas que hoje se atrevem a sonhar com um amanhã mais livre, seguro e igual.

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