Solidariedade, Constituição da RDTL e alguns mal-entendidos

Conforme o artigo 10º da Constituição, “a República Democrática de Timor-Leste é solidária com a luta dos povos pela libertação nacional” /Foto: DR

Recentemente, a questão da solidariedade internacional em relação à luta pela autodeterminação na Papua e na Palestina tornou-se polémica em Timor-Leste. O governo, o parlamento e algumas elites nacionais tomaram medidas para proibir qualquer pessoa de hastear bandeiras ou realizar ações de solidariedade internacional com estas causas durante a visita do Papa Francisco ao país.

De acordo com a Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL), as convenções ratificadas pelo país e todas as leis em vigor, a solidariedade com nações que lutam pela autodeterminação não é crime. Mas por que razão o governo, o parlamento e algumas elites nacionais ousam proibir tais ações? Ao ouvirmos as suas justificações, muitas vezes sem fundamento, nos meios de comunicação social e em conversas informais, percebe-se que a proibição visa apenas aqueles que desejam manifestar solidariedade com a luta da Papua, com o intuito de preservar as relações com a Indonésia. Com base nestas informações, conclui-se que, na verdade, não há uma proibição semelhante para quem demonstra apoio à luta do povo palestiniano contra o regime opressor de Israel, mas há uma forte repressão contra a solidariedade com a Papua. Por que apenas a Papua e não a Palestina?

Quem conhece a história alternativa sabe que, desde 1962, o regime de Soekarno começou a colonizar a Papua. Em 1969, através de um manipulador Ato de Livre Escolha (Penentuan Pendapat Rakyat – Pepera), o regime militar de Suharto legitimou a colonização. Desde então, o povo da Papua tem sofrido torturas em massa e assassinatos sistemáticos pelas forças militares indonésias, sem qualquer julgamento justo, resultando num aumento drástico das violações dos direitos humanos. Para ocultar esses crimes, até hoje, o estado indonésio impede a entrada de jornalistas e meios de comunicação estrangeiros na Papua.

Recentemente, sob a liderança de Joko Widodo, o colonialismo na Papua tem sido reestruturado através de uma estratégia de povoamento. Esta inclui o envio massivo de transmigrantes para a Papua, numa tentativa de “branquear” a região. Além disso, o governo indonésio tem reforçado a colonização com medidas como a “exportação” de VIH/SIDA, a expropriação de terras tradicionais em nome do desenvolvimento, a desflorestação massiva e a repressão violenta quase diária. A criação de novas províncias, passando de duas (Papua e Papua Ocidental) para seis, justifica o envio de mais tropas militares e policiais, agravando ainda mais a situação dos direitos humanos.

Com estas estratégias, a luta pela independência do povo da Papua tornou-se ainda mais difícil. Ao longo do tempo, o povo da Papua tem enfrentado sozinho a opressão do colonialismo, imperialismo, militarismo e capitalismo, com muitos países a fecharem os olhos ao seu sofrimento. Apesar de alguns países do Pacífico abordarem a questão, apenas Vanuatu tem sido consistente no apoio à luta pela autodeterminação na Papua. No entanto, a voz de Vanuatu, isolada, não é suficientemente poderosa para denunciar as injustiças que oprimem e destroem o povo da Papua. Como disse Made Supriatma: “Viver na Papua é curto, mas o sofrimento é longo.”

Diante destes crimes, a solidariedade internacional é essencial para romper as correntes do colonialismo, militarismo, imperialismo e capitalismo na Papua. A luta pela autodeterminação sem apoio internacional não é eficaz. Podemos aprender com a história de Timor-Leste, onde, além da luta armada e clandestina, Ramos-Horta e outros viajaram pelo mundo em busca de apoio para a causa timorense. Sem essa solidariedade internacional, é provável que Timor-Leste não tivesse alcançado a independência, e muitas das conquistas de hoje não teriam sido possíveis.

Se nos recordarmos, o IX Governo e o Presidente Ramos-Horta, que proibiram a solidariedade internacional com a Papua, violando a Constituição, usaram nas suas campanhas slogans de defesa da CRDTL. Prometeram repetidamente que, se merecessem a confiança do povo, respeitariam e defenderiam a Constituição. Mas, após assumirem o poder, esqueceram-se dessas promessas e tornaram-se os principais violadores da CRDTL ao proibir a solidariedade com o povo da Papua. Por interesses particulares, forçam o povo Maubere a agir contra a CRDTL e a seguir leis que servem apenas aos seus gostos e preferências.

Se analisarmos o pensamento do filósofo do direito John Austin, que não distingue entre lei e os gostos dos governantes, a posição do governo, do presidente e de algumas elites nacionais pode parecer correta. No entanto, na era atual, o pensamento de Austin, que associava a lei aos gostos dos governantes, foi abandonado. Num estado de direito moderno e civilizado, a lei deve defender a Constituição e os princípios estabelecidos, como defendido por Hans Kelsen, que criticou Austin. Kelsen argumenta que proibir a solidariedade internacional ao povo da Papua não é uma verdadeira lei, mas apenas uma preferência dos governantes, sem validade normativa.

Se analisarmos corretamente, podemos perceber que o sistema jurídico de Timor-Leste adota o pensamento de Kelsen, onde a Constituição é considerada a lei superior, e as leis inferiores não podem contradizê-la. Portanto, decretos, resoluções e decisões que contrariem a Constituição são inválidos. Este princípio deve ser reforçado para que os governantes em Timor-Leste não tentem anular a Constituição com resoluções ou decisões baseadas em preferências pessoais, desonrando assim a CRDTL.

O mesmo se aplica à solidariedade internacional. Como estado independente, Timor-Leste deve ter uma posição própria, corajosa e coerente com os princípios estabelecidos na CRDTL, sem se submeter a interesses externos. Não podemos permitir que o regime de Joko Widodo trate Timor-Leste como uma província de Jacarta, onde todas as decisões externas devem seguir os desejos do governo central. Como disse Roni Agustinus, o que se espera de um grande estado são princípios, unidade, consistência e sabedoria nas suas relações internacionais. Estamos a demonstrar grandeza nessas áreas?

 

Armindo Moniz Amaral, 32 anos, nasceu em Covalima. Formou-se em Direito pela Universidade Católica Widya Mandira e fez o mestrado e doutoramento em Direito na Universidade Diponegoro – ambas instituições na Indonésia. Atualmente é professor de Filosofia do Direito no Instituto Superior de Filosofia e Teologia Dom Jaime Garcia Goulart (ISFIT), em Díli, e formador voluntário do grupo progressista Vila-Verde.

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  1. Armindo, ja la vao 25 anos e esqueceram o apoio dado a TL. Acho que muita gente pode ser ministro mas muito poucos sabem intrepretar as leis. Mas muitas leis sao “leis de funil”.

  2. Essa proibicao de protestos a favor da Papua so pode vir de cobardes glorificados com memoria muito curta! Em vez de exigirem da Indonesia bilhoes ou trilhoes de dolares para compensacao do que fizeram em 24 anos de ocupacao ilegal andam a lamber os trazeiros de seu liders! So pode ser!

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