Saúde mental: a dor que pode matar sem se deixar ver

Muitas pessoas que sofrem de depressão em Timor-Leste, na maioria das vezes, são ridicularizadas ou ignoradas pelas famílias e sociedade/Foto: DR

Os problemas de saúde mental representam um desafio ainda maior para quem os vive em países como Timor-Leste. Num país em que os rendimentos são baixos e os estigmas sociais altos, a falta de conhecimento e a ausência de diagnóstico adequado resultam, muitas vezes, em situações limite.

Tímido, com o olhar dividido entre a recordação de um passado sombrio e a esperança num futuro mais luminoso, de pernas cruzadas e semblante irrequieto, Daway (nome fictício) partilhou, com o Diligente, momentos de uma vida ainda curta, mas já com muitas marcas, visíveis e invisíveis, de dor e sofrimento.

Foi adotado quando tinha 7 anos. Era uma criança muito feliz. Na altura, apenas percebeu que foi brincar para a casa da tia, mas nunca mais voltou para casa dos pais. Três anos depois, quando completou 10 anos, percebeu que tinha sido adotado. “Eles nunca me disseram que eu tinha sido adotado, porque para eles é indiferente, eu soube, porque ouvia os meus vizinhos comentarem e sempre que os meus tios recebiam visitas, os meus pais adotivos falavam sobre isso e eu acabava por ouvir. “Nunca perguntei aos meus tios pelos meus pais, não sei porquê”, confessa.

“O uso de comportamentos agressivos e a punição corporal são recorrentes e até encorajados em Timor-Leste”

Sentimentos como a tristeza, a ansiedade e o medo começaram a invadi-lo desde muito cedo. Quando se mudou para casa de tia, começou a fazer trabalhos domésticos, mas o que começaram por ser trabalhos leves, rapidamente se tornaram em tarefas pesadas. Caminhar longas distâncias debaixo do calor para ir buscar volumes pesados de água para cozinhar e lavar roupa. Carregar lenha, muitas vezes descalço e de estômago vazio. Tarefas diárias que “fui obrigado a fazer até terminar o secundário”.

Quando não cumpria as tarefas, os pais adotivos e outros familiares, primos da mãe, agrediam-no violentamente, o que o fazia sentir “que não era amado e que não pertencia a este mundo”.

O uso de comportamentos agressivos e a punição corporal é recorrente e até encorajado em Timor-Leste, consequências de um passado recente, marcado pela violência. Violência que deixou um rasto mais vivo do que seria desejável, nomeadamente nos números elevados de casos de violência doméstica e nas práticas de exploração infantil.

O jovem, agora com 25 anos, carrega, no corpo, as marcas da dor em forma de cicatrizes, que refletem as fases mais graves da depressão, não diagnosticada medicamente. A falta de diagnóstico é recorrente e deve-se, entre outros fatores, à desvalorização da família e da sociedade relativamente aos problemas de saúde mental, mas também às condições financeiras frágeis que, muitas vezes, não viabilizam que se recorra a serviços médicos especializados.

Desesperado, automutilava-se frequentemente para anestesiar a dor maior que sentia, mas que não se via a olho nu e que o próprio Daway tentava esconder. Começou a fazê-lo em 2019, nos primeiros anos de faculdade, para disfarçar uma dor que apelida de “insuportável”, um adjetivo que dificilmente alguém, sem estar na sua pele, poderá perceber se carrega em si tudo o que seria necessário para descrever o que sentia. Hoje, já não o faz, mas sabe que não está livre de que aconteça outras vezes, porque ainda não se sente completamente curado, nem sabe se algum dia estará.

“Já consigo ter um pouco mais de controlo, mas sei que não estou curado”

A primeira tentativa de suicídio aconteceu quando tinha 13 anos.

“Preparei uma corda, fui para um lugar discreto no mato, subi a uma árvore, amarrei a corda a um tronco e pedi desculpa aos meus pais adotivos e biológicos. Quando estava prestes a colocar a corda à volta do pescoço, fui interrompido por um polícia”. Daway lembra as palavras do agente: “Ei menino, o que estás a fazer aí ?”. Respondeu que estava a brincar e o polícia mandou-o descer da árvore e voltar para casa. Assim fez, mas não desistiu da ideia de pôr termo à vida.

Na segunda tentativa, bebeu veneno de ratos. Ficou muito maldisposto e vomitou. Quando a família descobriu, depois de o jovem ter deixado o pacote à vista, a reação não foi a melhor. “Tentou matar-se por causa da namorada, é maluco”, comentaram familiares e conhecidos ao mesmo tempo que desvalorizavam toda a situação.

“Às vezes, penso que a vida não está a ser justa comigo. Os meus pais biológicos rejeitaram-me, deixaram-me sem dizer nada, se calhar, o mundo também não me quer. Antes, quando pensava nisso, não conseguia controlar as minhas emoções e acabava por me magoar voluntariamente, para aliviar a dor”. Hoje em dia, “já consigo ter um pouco mais de controlo sobre esta situação, mas sei que não estou curado”.

Consequências de uma sociedade desinformada

Enquanto que em outros países, todos os anos, o número de casos de depressão e de suicídio é registado e divulgado com o objetivo de alertar a população para o perigo das doenças do foro psicológico, em Timor-Leste, a realidade ainda está muito longe de romper com os estigmas e quebrar os silêncios acerca da saúde mental.

Além do tabu associado às doenças do foro mental, percebe-se que existe uma grande falta de conhecimento por parte das pessoas acerca destes problemas. Oficialmente, não há relatórios, dados, nem estudos que revelem informações sobre a incidência da depressão na população timorense, o que levanta uma questão retórica: será que em Timor-Leste não há pessoas a sofrer de depressão ou de outros problemas de saúde mental?

O Diligente falou com Anacleto (nome fictício), de 27 anos, estudante da Universidade Nacional de Timor-Lorosae (UNTL). O jovem conta que, sem nenhum sinal que o fizesse prever, perdeu a irmã há cinco anos, quando esta decidiu que não queria viver mais.

Na altura, em 2017, estava a fazer pesquisa, na Universidade em Hera, Metinaro, quando recebeu a chamada da mãe, a meio do dia, que trouxe a pior das notícias: a irmã havia cometido suicídio. “Fiquei sem chão. Isto nunca tinha passado pela minha cabeça”, recorda.

A irmã, Anastasia, era divorciada e mãe de três filhos pequenos. Tinha 27 anos, quando decidiu acabar com a vida. “Ninguém em casa notou que a minha irmã estava com algum tipo de perturbação mental ou depressão. Ela era uma mulher trabalhadora e sorridente em tudo o que fazia”.

Anacleto Soares confessa, contudo, que depois do que aconteceu, se fizer uma análise mais profunda consegue recordar-se de alguns sinais estranhos vindos da irmã. “Percebo agora que ela tinha mostrado alguns sinais. Dizia frequentemente: quando eu não estiver mais cá, cuidem dos meus três filhos, mas nunca a levámos a sério”, lamenta.

Alarmado com a morte da irmã e preocupado com as pessoas que sofrem com problemas de saúde mental, o jovem apela às autoridades competentes para criarem urgentemente “uma política de saúde mental”.

Defende ainda que, nos postos de saúde em cada município, seja prestado serviço de caráter gratuito e comunitário, constituído por equipas especializadas na área da saúde mental.

Uma doença “subestimada

O psicólogo Elvis do Rosário explica, relativamente à depressão, que se trata de um estado mental que representa um transtorno que pode ser crónico ou não. Esse transtorno afeta a saúde mental das pessoas “e o investimento que está a ser feito pelo Governo nessa área é muito pouco”, lamenta.

O psicólogo alerta para alguns sinais aos quais se deve prestar especial atenção e que não podem ser ignorados: “agressividade consigo próprio ou com o outro, manifestações de raiva como a destruição de objetos, isolamento, choro constante, vontade de ficar na cama e falta de ânimo e interesse”.

O especialista acrescenta ainda que um outro sintoma muito presente nas pessoas que sofrem da doença é o “de se sentirem inúteis na sociedade, na família, na profissão, nas rotinas e no mundo em geral”.

Segundo Elvis do Rosário, “o pensamento suicida nas pessoas com depressão é muito recorrente e persistente, a pessoa que se sente doente todos os dias acaba por pensar em se matar para acabar com o sofrimento e depois é só procurar a forma de o conseguir”.

“Timor-Leste é um país que não oferece suporte adequado às pessoas que sofrem de doenças mentais. Na maioria das vezes, subestima-se o sentimento de quem sofre ou aconselha-se a ter calma”

Daway, por exemplo, tentou matar-se duas vezes, de formas diferentes, uma por enforcamento, outra por ingestão de veneno. Ainda que sem diagnóstico médico, eram evidentes os comportamentos agressivos, principalmente de autoagressividade, que os próprios amigos comentavam, mas sem ferramentas para descortinar as origens do problema.

O psicólogo explica que há formas de tratamento da doença: psicoeducação, psicoterapia e aconselhamento, dependendo da gravidade, que pode ser moderada, leve ou grave. “Em determinadas situações, nós, psicólogos, podemos encaminhar o paciente para um acompanhamento psiquiátrico para ser medicado”.

Relativamente ao contexto timorense, o psicólogo destaca que “há uma grande carência de recursos humanos especializados em saúde mental e poucas formas de tratamento. Os medicamentos psiquiátricos escasseiam”. Embora não resolva o problema, “conversar sobre esta situação com alguém próximo pode ser benéfico. Alguém com quem a pessoa doente se sinta confortável em falar abertamente. Alguém que a escute. No entanto, nunca será um apoio profissional e por mais que as pessoas queiram ajudar, desconhecem as técnicas próprias de abordagem profissional para estes casos”, alerta.

Por sua vez, o psicólogo Ângelo Aparício, mestre em Psicologia Clínica Forense, corrobora a crítica do colega Elvis do Rosário acerca da falta de investimento na área da saúde mental no país.

“Timor-Leste é um país que não oferece suporte adequado às pessoas que sofrem de doenças mentais. Na maioria das vezes, subestima-se o sentimento de quem sofre ou aconselha-se a ter calma. Estas reações desmotivam as pessoas que procuram ajuda”, explica o profissional.

Ângelo Aparício usa a seguinte analogia para exemplificar: “um vulcão quando explode é porque tem lava acumulada lá dentro. As nossas emoções também funcionam assim, qualquer emoção que sentimos é como uma energia. Quando só acumulamos, um dia ela pode explodir. A maneira de explodir nas pessoas que estão deprimidas é expressarem-se com muita agressividade para com elas próprias ou para com as pessoas ao seu redor, porque a energia não pode ficar permanentemente no corpo. Temos duas opções: ou expressamos as nossas emoções de maneira saudável ou expressamos de forma agressiva”.

Para ajudar as pessoas no processo de cura, o psicólogo defende também que o mínimo que a sociedade pode fazer é dar espaço para que se possam sentir à vontade para expressar os seus sentimentos, sem julgamentos. “E devemos começar com as crianças: quando uma criança ficar com raiva de alguma coisa, devemos perguntar-lhe o porquê da reação.”

“Quando alguém nos escolhe para contar o problema, devemos ouvir e nunca subestimar. Não minimizar a situação pelo facto de estar a passar-se com outra pessoa e não connosco”, até porque “um dia podemos ser nós a passar pelo mesmo e a precisar ser ouvidos”.

Preocupado com a mentalidade timorense, o especialista realça que é necessário abordar com mais regularidade a temática da saúde mental, falar constantemente sobre o assunto para que seja conhecido e tratado com seriedade, em vez de continuar a viver entranhado silenciosamente na sociedade.

“O mal do século”

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2021, mostram que mais de 700 mil pessoas se suicidam anualmente e há muitas mais que o tentam fazer todos os anos.

A OMS alerta que cada suicídio é uma tragédia que afeta famílias, comunidades e países inteiros e tem efeitos duradouros nas pessoas que são deixadas para trás. Pode acontecer em qualquer idade e foi, em 2019, a quarta principal causa de morte entre os 15 e os 29 anos.

“Muitas pessoas não pedem ajuda por causa dos estigmas sociais”

Ainda de acordo com a organização, “o suicídio é um grave problema de saúde pública. No entanto, os suicídios são evitáveis com intervenções oportunas baseadas em evidências e, muitas vezes, de baixo custo. Para que as respostas nacionais sejam eficazes, é necessária uma estratégia abrangente de prevenção”.

A OMS apelida a depressão como “o mal do século ”, principalmente tendo em conta que são muitas as pessoas, ressalta a organização, que não estão à procura de ajuda e, portanto, não estão a receber o apoio profissional de que precisam, devido a diversos fatores, entre os quais, os estigmas sociais.

Tendo em consideração a gravidade da doença, a OMS enfatiza que a sensibilização constante e a quebra de tabus são fundamentais para que os países progridam na prevenção das doenças mentais e das consequências mais graves associadas, como o suicídio.

Este trabalho de sensibilização assume uma importância ainda maior em países como Timor-Leste, tendo em conta que, também de acordo com dados da organização, 77% dos suicídios que se registam a nível mundial acontecem em países onde os rendimentos são reduzidos.

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