Recordar Barbedo de Magalhães: ciência, luta e um amor eterno por Timor-Leste

António Barbedo é lembrado como um herói da independência de Timor-Leste, uma figura que usou o poder do conhecimento, da ciência e da solidariedade internacional para apoiar a causa timorense. /Foto: DR

Antigos líderes da resistência, políticos e académicos timorenses partilham memórias e reflexões sobre o professor António Barbedo de Magalhães, mostrando que a luta também é feita com ideias e palavras.

Descrito como “um exemplo de coragem, de tenacidade e de persistência”, “um homem extraordinário”, “uma figura inspiradora”, “o melhor conselheiro dos bolseiros”, “grande defensor da causa timorense”, a memória do Professor António Pinto Barbedo de Magalhães foi evocada por líderes da resistência, bolseiros e docentes durante o seminário com o tema: “Jornada de Reflexão, em Memória do Professor António Pinto Barbedo de Magalhães na Luta pela Libertação Nacional”. O evento teve lugar na sexta-feira (27.06), no auditório da Faculdade de Economia e Gestão, da UNTL.

Um mês depois do falecimento do Professor Emérito da Universidade do Porto, o Centro de Estudos para a Paz da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL), em parceria com o coletivo Unidos Podemos e o Comité Orientador 25, organizou uma jornada de reflexão com o objetivo de partilhar obras de Barbedo e de recordar o seu papel na luta pela independência do país. O evento serviu simbolicamente para semear valores defendidos pelo falecido professor nos jovens e estudantes timorenses que hoje lutam pelo desenvolvimento e pela autonomia do Estado timorense.

“Barbedo ensinou-nos que a ciência não pode ser apática, nem passiva, perante um povo que sofre e vive numa situação desumana” – Jacinto Alves, coordenador do Unidos Podemos

Durante a reflexão, Jacinto Alves, ex-prisioneiro político, expressou a sua admiração pelo professor António Barbedo de Magalhães, que diz ter transformado a universidade num verdadeiro espaço de ação e intervenção, em defesa da luta do povo timorense. Acrescentou que Barbedo usou o seu saber científico, a sua consciência cívica e o seu sentido patriótico para despertar consciências adormecidas perante a luta do povo timorense.

O atual coordenador do Unidos Podemos afirmou ainda que as Jornadas do Porto, organizadas por Barbedo, também chamaram a atenção para a Resistência timorense. “Como prisioneiros políticos, nunca deixámos de enviar cartas para as Jornadas do Porto, manifestando o nosso apoio, a nossa solidariedade e a nossa esperança nessas iniciativas”, afirmou.

Segundo Jacinto Alves, é importante os timorenses refletirem sobre os valores que o professor defendeu e demonstrou: solidariedade, exercício de uma cidadania ativa, crítica e responsável, de paz e de liberdade. “Barbedo nunca deixou de lutar connosco, nem de se alegrar com os nossos sonhos”, acrescentando que o espírito de Barbedo deve continuar vivo “como uma luz para aqueles que sonham com uma sociedade justa, solidária e humana”, afirmou.

“O professor Barbedo foi um construtor da paz e um homem que amou Timor. Foi um exemplo de coragem, tenacidade e persistência” – Rui Gomes, ex-Ministro das Finanças 

Para Rui Augusto Gomes, ex-Ministro das Finanças, do VIII Governo Constitucional, o professor António Barbedo de Magalhães é um dos maiores exemplos de cidadania responsável, do amor à ciência e ao próximo. O ex-governante acrescentou que o académico era um homem de “sonhos, tinha ideias e, apesar de fisicamente frágil, dedicou-se à causa de Timor e à democratização da Indonésia”.

Rui Gomes afirmou que teve o privilégio de conhecer pessoalmente Barbedo de Magalhães, quando este coordenou e participou na sétima e última Jornada do Porto, em 1997, cujo tema foi: “Libertar Timor-Leste e Apoiar a Democratização na Indonésia: Duas Responsabilidades Internacionais”. A sessão, organizada por Barbedo na Universidade do Porto, “tinha como objetivo mudar a opinião pública, principalmente na Austrália e nos Estados Unidos da América, sabendo-se que apoiavam a ocupação indonésia de Timor-Leste”, afirmou Rui Gomes.

O político também referiu “a enorme” preocupação de Barbedo com a formação de capital humano, tanto que, em 2004, propôs uma componente pedagógica inovadora na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, intitulada “Projetar, Empreender e Saber Concretizar”. Posteriormente, a iniciativa foi estendida a toda a Universidade do Porto e continuou a evoluir. “O objetivo era facilitar e promover o desenvolvimento de competências transversais, como o trabalho em equipas multidisciplinares, a liderança e o empreendedorismo dos estudantes”, disse.

Por decisão unânime da Universidade do Porto, a 22 de janeiro de 2014, Barbedo foi eleito Professor Emérito da Universidade do Porto, com a missão de desenvolver novas metodologias multidisciplinares de ensino, aprendizagem e educação informal.

Barbedo de Magalhães chegou a trabalhar em Timor-Leste em 1974, onde coordenou a comissão de restauração do ensino em Timor, com vista à descolonização e ao objetivo da autodeterminação. “A sua visão sobre a educação era clara: o sistema educacional deveria ser mais flexível e incentivar a participação ativa dos estudantes no seu próprio desenvolvimento. Para ele, o sistema educativo não podia matar a curiosidade de saber o que não se ensina”, afirmou o antigo ministro.

Entre tentativas frustradas de reformulação do currículo, com o objetivo de “timorizar” a administração pública de um território ainda sob o domínio português, “Barbedo andava sempre atento e nunca se cansava de olhar por Timor”, relatou Rui Gomes, adiantando que, mesmo após a invasão militar de Timor, o professor nunca ficou em silêncio e procurou sempre novas estratégias e iniciativas para defender o direito à autodeterminação do povo timorense.

Com a criação das Jornadas do Porto, com uma dinâmica especial nas Jornadas de Reflexão sobre Timor-Leste, a palavra começou a espalhar-se entre os professores universitários, passando a envolver um grande número de universidades pelo mundo, que davam voz à luta de Timor-Leste.

“Barbedo foi uma pessoa extraordinária. Para mim, ele é um herói da causa de Timor-Leste e deixou-nos um legado muito valioso” – Constâncio Pinto, presidente do Comité Orientador 25

Constâncio Pinto, presidente do Comité Orientador 25, disse ter conhecido o professor Barbedo em 1991, quando foi a Portugal e, de seguida, aos Estados Unidos da América para divulgar a situação de Timor. “Barbedo era uma pessoa que se dedicava inteiramente à luta pela independência de Timor-Leste. Não passei muito tempo com ele, mas participei nas atividades que organizava, especialmente na mobilização da opinião pública internacional a favor da nossa causa”, explicou.

O antigo líder da Frente Clandestina afirmou que só em 1992 é que a comunidade internacional começou a conhecer melhor Timor-Leste e que, nesse contexto, a obra de Barbedo foi fundamental. “Foi nessa altura que a nossa luta diplomática floresceu e se fortaleceu, tanto pelo trabalho da Resistência, a nível interno, como pela contribuição do professor Barbedo Magalhães e de outros”, destacou.

Constâncio Pinto participou em várias atividades organizadas pelo professor na Europa, América e Ásia-Pacífico. “Admirava o seu carisma. Nas Jornadas do Porto havia sempre uma forte participação de intelectuais, políticos, diplomatas, ativistas, incluindo professores da Indonésia”, afirmou.

A contribuição de Barbedo foi, na opinião do líder do Comité Orientador 25, fulcral para mobilizar a opinião pública internacional. As pessoas passaram a ver Timor-Leste não como um objeto ou uma marca de produto, mas como uma verdadeira nação.

Professor e mentor por afinidade

Flávia Martins, ex-bolseira timorense na Universidade do Porto, destacou o facto de, além de académico, cientista e político, Barbedo ter sido um excelente mentor para todos os bolseiros timorenses que ingressaram na Universidade do Porto.

“Tínhamos muitas dificuldades para lidar com o passado e com o presente de Timor-Leste, por isso, tínhamos de ir ter com ele para compreender melhor algumas questões sobre o nosso país. Barbedo tornou-se o nosso mentor, mesmo estando na Faculdade de Engenharia e não sendo nosso docente”, disse Flávia, que estudou na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 2001.

Para Antero Benedito da Silva, docente e coordenador do Centro de Paz da UNTL, Barbedo é uma fonte de inspiração. Recordou um episódio de 2019, em que, no seu regresso a Portugal, Barbedo lhe entregou o terceiro volume do seu livro de história. “Disse para mim próprio: se o professor Barbedo consegue escrever sobre a história de Timor, o que me impede de o fazer? Acredito que um educador como ele não só ensina, como também inspira”, declarou.

Durante a luta de Timor-Leste pela independência, graças à mobilização de grandes personalidades do mundo académico, promovida, em parte, por Barbedo de Magalhães, Antero cruzou-se com Noam Chomsky (EUA), Peter Carey, Helen Mary Hill e Herbert Feit (da Austrália), John Taylor (Reino Unido), George Aditjondro (Indonésia), entre outros.

“Eles tornaram-se mentores dos nossos ativistas no exterior, atuando como mobilizadores e produtores de conhecimento sobre a nossa nação, para informar pessoas que nunca tinham ouvido falar da nossa luta”, disse Antero.

As decisões que Barbedo de Magalhães tomou ao longo da sua vida, segundo Antero, revelam pontos de semelhança com o lendário lutador cabo-verdiano Amílcar Cabral e com os estudantes e intelectuais timorenses que decidiram regressar ao país para lutar pela autodeterminação do povo maubere.

“Barbedo demonstrou coragem, indo além de muitos timorenses que negavam sua própria identidade como povo oprimido. A partir do seu privilégio, como cidadão português e membro da elite militar e intelectual, ele lutou à sua própria maneira por uma causa justa”, afirmou Antero.

“Talvez ninguém imaginasse que, no início dos anos 80, fosse Barbedo Magalhães um dos poucos portugueses que reafirmava, com toda a convicção, a sua preocupação perante a situação de Timor, numa altura em que muitos portugueses tentavam esquecer o nosso país”, afirmou Antero.

A herança de um legado para as universidades timorenses

Jacinto Alves aproveitou a ocasião para incentivar as universidades em Timor-Leste a organizarem jornadas como as de Barbedo – Jornadas do Porto –, para criar espaços onde académicos e intelectuais possam debater a construção do Estado, a democracia e os modelos de desenvolvimento.

Entre a instabilidade política que tem marcado os últimos anos no país e as discutíveis mudanças políticas e sociais, que não satisfazem grande parte da população, passando por uma partidarização das instituições públicas, o ex-prisioneiro político considera urgente a existência de discussões e debates académicos sobre o estado do país.

“Há pequenos grupos que continuam a tirar proveito dos recursos do país, deixando para trás uma maioria que ainda vive na pobreza e com carências, de nutrição, por exemplo. As despesas supérfluas aumentam anualmente, enquanto as nossas receitas continuam limitadas. Não há diversificação da economia e o colapso fiscal é uma ameaça constante”, alertou Jacinto Alves.

Constâncio Pinto, por sua vez, espera que as instituições de ensino superior, especialmente a Universidade Nacional de Timor Lorosa’e, possam adotar os pensamentos de Barbedo, “sobretudo no que diz respeito à mobilização da opinião pública internacional em prol de causas justas, não apenas em Timor-Leste, mas no mundo”. O apelo à leitura das obras de Barbedo Magalhães também marcou as palavras do presidente do Comité Orientador 25.

Já Antero Benedito sublinhou a ideia de que, no passado, a força das pessoas estava nas armas que carregavam, e que, agora, está na caneta com que materializam as suas ideias. “Precisamos de produzir conhecimento científico e com aplicação prática, para podermos reforçar a nossa independência em todas as áreas. Produzir conhecimento deve ser o objetivo da universidade, tornando-se uma verdadeira arma da ciência”, reforçou o académico.

António Barbedo de Magalhães morreu com 82 anos e dedicou mais de metade da sua vida a Timor-Leste. Sobra agora o legado de alguém que procurou sempre estar do lado certo da questão e o dever, nas palavras do ex-ministro Rui Gomes, de os timorenses honrarem a memória do professor, “capitalizando as suas obras grandiosas”. “É necessário que os timorenses conheçam esta figura tão importante e as obras que realizou. Apesar de não ser timorense, amou Timor e trabalhou por Timor”, concluiu.

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