Quando o ‘normal’ é o problema

Experimente duvidar das suas certezas e mantenha-se recetiva a novas perspetivas. Questione os seus pensamentos e respostas automáticas diante de situações quotidianas /Foto: DR

Alguns hábitos, valores, crenças e padrões de pensamento e de comportamento, embora sejam considerados normais, socialmente aceites e seguidos de forma automática e não consciente, podem tornar-se uma fonte de adoecimento. Em psicologia, este fenómeno é conhecido como normose. Hoje, vamos conversar sobre como a naturalização desses processos afeta a nossa saúde e bem-estar.

A normalidade que adoece pode manifestar-se tanto no plano individual como no coletivo. Aparentemente inofensiva e comum – afinal, ‘todos o fazem’ –, insere-se nas nossas rotinas de forma subtil. Apesar de causar desconforto e diferentes níveis de sofrimento, não nos apercebemos da total dimensão do seu impacto na nossa qualidade de vida.

Por exemplo, isto pode acontecer quando passamos horas nas redes sociais a comparar a nossa vida com a dos outros, quando mantemos relações tóxicas por medo da solidão, ou quando fazemos comentários depreciativos para nos destacarmos e recorremos à misoginia e à homofobia para tentar fazer graça. Nas reuniões com amigos, as conversas que começam de forma suave e genérica acabam por transitar para reclamações, comparações mútuas e críticas àqueles que não estão presentes. Quando somos autoritários com quem está abaixo de nós e respeitosos com quem está acima. Quando ficamos imersos no trabalho, agarrados à ideia de eficiência e produtividade, ao ponto de não termos tempo para a família ou para o lazer. Manifesta-se também nos nossos hábitos alimentares e nos padrões de consumo inadequados. Da mesma forma, este ‘normal’ que adoece está presente quando os nossos pensamentos tendem frequentemente para conteúdos persecutórios, autoindulgentes ou agressivos, levando-nos a desperdiçar horas, ou até dias, presos a essas ideias.

Estes comportamentos ‘normais’ podem conduzir-nos a um ciclo de ansiedade, tristeza, mágoas, preocupações, frustrações e isolamento emocional, bem como dores de cabeça, problemas digestivos e outros distúrbios físicos e emocionais.

A normalidade tóxica tem, nos sistemas culturais, um dos seus principais meios de legitimação e disseminação. Cada sistema cultural é uma convenção que está em constante adaptação e mudança. Esses sistemas são criados e transmitidos socialmente através de um processo contínuo de produção de significados, que pode ser analisado na interação entre os signos e na forma como estruturam o pensamento e a experiência. Isso ocorre, por exemplo, por meio da linguagem – falada, escrita, gestual, visual, simbólica, etc. – e das ideologias que moldam as práticas culturais.

Neste sentido, parte daquilo que entendemos como ‘tradicional’, ‘cultural’ ou ‘normal’ reflete dinâmicas sociais e valores que orientam a interpretação da realidade, disfarçando disputas de poder e dispositivos de controlo social.

Vivemos em sociedade, precisamos de regras e códigos que estabeleçam os limites do nosso convívio em grupo. Quanto a isto não há dúvidas. A questão é que nem sempre isto acontece de maneira saudável.

Não se trata de comparar diferentes sistemas culturais e hierarquizá-los, classificando-os como melhores ou piores. Cada sociedade é o resultado de processos históricos únicos com suas próprias qualidades e dificuldades a enfrentar. A normalidade tóxica deve ser analisada a partir dos impactos que causa nas pessoas que integram o grupo social.

A ‘normalidade’ e as relações sociais

Há alguns anos, conheci um jovem casal. Ele tinha 24 anos e pertencia a uma Lisan patriarcal-matrilinear; ela, com 22 anos, era de uma Lisan patriarcal-patrilinear. Segundo as regras ‘normais’, a família da jovem deveria receber o barlake exigido para o casamento. No entanto, de acordo com as regras da família do rapaz, eles não eram obrigados a oferecê-lo. Criou-se, então, um impasse entre as famílias quanto aos valores e à necessidade de realizar o barlake.

Ambas as Lisan tinham as suas regras assentes no que entendiam como cultura e respeito pelos seus antepassados. Embora o barlake tenha um significado cultural importante e represente uma demonstração de respeito e vínculo entre as famílias, neste caso, as diferentes interpretações das regras estavam em contradição umas com as outras. Os jovens, que eram adultos e independentes, decidiram deixar as suas aldeias e viver juntos enquanto aguardavam a decisão das famílias.

Para resumir, certa noite, vários homens da família da jovem invadiram a casa do casal, destruíram tudo o que havia dentro e espancaram o jovem até este ficar inconsciente. O episódio foi presenciado por inúmeras pessoas, inclusive crianças, e ocorreu a poucos metros do posto de polícia local. Ninguém fez nada.

Nos dias que se seguiram à agressão, os comentários culpabilizavam os jovens pela violência sofrida, pois haviam desrespeitado as tradições. Além de desobedecer às normas tradicionais, ainda viviam em ‘pecado’, pois não eram casados no religioso. A família do rapaz repreendeu-o, pois ele não seguiu as orientações dos pais e dos líderes da Uma Lisan, que lhe haviam ordenado que deixasse a namorada e se casasse com outra mulher da sua aldeia.

Vamos manter o foco: este exemplo não é sobre o barlake, mas sim sobre a ideia punitivista que condiciona as relações sociais. O pensamento punitivo normaliza a violência como método disciplinar – na educação dos filhos, na escola, nas forças policiais e no ambiente de trabalho, por exemplo –, perpetuando ciclos de agressões, ressentimentos e traumas. Quando se legitima a agressão – verbal, simbólica, física, institucional, etc. – como um recurso ‘normal’ para manter a ‘ordem’, o controlo e a autoridade, tudo o que é diferente ou ameaça as relações hierárquicas estabelecidas é punido. Este tipo de abordagem não é eficaz e compromete a nossa capacidade de estabelecer conexões genuínas, perceber o ponto de vista do outro, encontrar alternativas e dialogar.

Outro exemplo: em algumas comunidades, queimar o lixo no pátio das casas é uma prática comum e quotidiana. Mas isto é feito com o vento a soprar em direção à casa do vizinho. Eu, pelo menos, nunca vi ninguém esperar que o vento soprasse na direção da própria casa para queimar o seu lixo. Uma situação semelhante, é o uso das colunas de som e dos microfones, cada vez mais acessíveis e populares. Para celebrar algo ou simplesmente porque apetece ouvir música, algumas pessoas aumentam o volume ao máximo a qualquer hora do dia ou durante a noite.

Em ambos os casos, essas pessoas não se questionam se a fumaça ou o barulho estão a incomodar o vizinho, se as crianças na casa ao lado precisam de dormir ou estudar, ou se há alguém doente. Pelas regras não verbalizadas de convivência é normal quem está no seu próprio terreno sentir-se no direito de fazer o que quiser, ainda que signifique afetar a qualidade de vida dos outros.

As condições precárias de vida das pessoas que residem nas comunidades periféricas de Díli ou em aldeias no interior do país, que vivem em casas com pouca ou nenhuma infraestrutura, próximas de esgotos, sem emprego, sem água potável, sem acesso a uma educação de qualidade e sobrevivendo um dia de cada vez, são normalizadas. No entanto, estas pessoas não vivem assim por escolha própria, por recusarem trabalhar, por não serem empreendedoras ou por esse ser o ‘modo tradicional’ de viver, mas sim porque são pobres e marginalizadas.

Imagine o seguinte cenário hipotético: um homem conseguiu um emprego que lhe garante estabilidade financeira. De imediato, torna-se a principal fonte de sustento para os outros membros da família. O que poderia ser uma dinâmica de apoio mútuo para melhorar a qualidade de vida de todos acaba por se transformar em sofrimento.

Os pedidos de dinheiro tornam-se constantes – primos, irmãos, cunhados, os pais e sogros recorrem a ele sem nunca perguntar se está em condições de ajudar. Até que, um dia, tudo muda. Para reformar a sua casa, ele contrai dívidas no banco e, pela primeira vez, não pode distribuir dinheiro como antes.

É então que começam as acusações: egoísta, desrespeitoso, má pessoa, não valoriza a família. Alguns vão ainda mais longe, ameaçando-o com feitiçaria e maldições caso deixe de dar o que esperam. Tudo isto é justificado como algo normal, mas, por trás dessa aparente normalidade, esconde-se um profundo sofrimento psíquico, marcado por expectativas impossíveis, sentimentos de isolamento, desrespeito, desamparo e medo.

Agora substitua homem por mulher, troque empréstimo bancário por perder o emprego ou pagar o tratamento médico da filha que adoeceu, por exemplo. Consegue imaginar esta situação?

O ‘normal’ e a resistência às diferenças

Esta ‘normalidade’ forma-se lentamente, sem que percebamos. Ela está no nosso quotidiano, nas relações familiares, no grupo de amigos, na escola, nas escolhas amorosas, nas interações sociais e culturais. Fatores como a necessidade de pertença a um grupo, a forma como gerimos as nossas emoções e os padrões lógicos que moldam a nossa perceção do mundo contribuem para estarmos mais ou menos vulneráveis à sua influência.

Talvez já tenha ouvido as expressões ‘os homens são mais fortes do que as mulheres’ ou ‘as mulheres devem seguir as ordens dos maridos’. Frases simples e, à primeira vista, inofensivas. Mas será mesmo? Estas ideias podem limitar a liberdade individual, reforçar desigualdades e perpetuar relações de poder assimétricas. Não percebemos o impacto negativo na autoestima e na autonomia daqueles que são afetados por estes estereótipos.

Quando as mulheres são pressionadas a apoiar os seus maridos, a serem economicamente dependentes ou a submeterem-se à sua autoridade, este tipo de relação impede, muitas vezes, que possam estudar, trabalhar fora de casa, ter momentos de lazer, decidir quando e quantos filhos terão ou até terem salários melhores do que os maridos. Neste contexto, as mulheres são constrangidas a viver à sombra dos homens e a prestar contas por tudo o que fazem. No entanto, esta dinâmica pode ser justificada como algo normal, cultural, um preceito religioso ou até mesmo uma demonstração de ‘harmonia familiar’.

Pensamentos como ‘os outros apenas querem tirar vantagem’ podem levar-nos a uma desconfiança generalizada, dificultando a criação de vínculos saudáveis. Esta crença pode, ainda, reforçar sentimentos de isolamento, solidão e um estado de alerta constante, impactando diretamente a nossa capacidade de ter empatia e de praticar a solidariedade social.

Por vezes, as pessoas aceitam o desemprego ou a precariedade laboral com conformidade, sem questionar o sistema hierárquico e autoritário que sustenta estas desigualdades. Esta resignação, justificada com frases como ‘é assim que as coisas são’, ‘na minha cultura é assim’, ‘sou pobre e não posso desafiar os poderosos’ pode gerar uma sensação de impotência, frustração e agressividade reprimida.

Outro exemplo é a resistência a ideias novas, diferentes ou contraditórias em relação àquilo em que acreditamos. Muitas pessoas, por diversos motivos, acreditam que a sua visão do mundo é a única correta, fechando-se ao diálogo e à diversidade de pensamento. Esta rigidez mental, embora possa ser incentivada em alguns contextos, limita o crescimento pessoal e a capacidade de resolver conflitos de forma construtiva.

O ‘normal’ que adoece, neste caso, pode estar na crença de que ‘ter certezas’ é uma qualidade, uma virtude, uma demonstração de força e poder, quando a abertura ao debate e à reflexão é essencial para o desenvolvimento emocional e intelectual.

Reconhecer que a ideia de ‘normal’ pode resultar de pensamentos e crenças desadaptativas e prejudiciais é o primeiro passo para a mudança. Pense na possibilidade de estar equivocada na maneira como interpreta as motivações e comportamentos dos outros. Experimente duvidar das suas certezas e mantenha-se recetiva a novas perspetivas. Questione os seus pensamentos e respostas automáticas diante de situações quotidianas. Reflita sobre como a sua maneira de estar no mundo, pensar, reagir e relacionar-se com os outros está a afetar o seu bem-estar e o das pessoas à sua volta. Tente, durante alguns minutos por dia, agir de maneira diferente do habitual.

Nada disso é fácil. Ainda assim, ao fazê-lo, corremos o risco de melhorar a nossa qualidade de vida. Assustador, não é?

Alessandro Boarccaech é psicólogo, especialista em psicologia clínica, psicoterapeuta, semiótico e Ph.D. em antropologia.

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