A história de Lucas de Araújo (nome fictício), um jovem com doença mental que terá riscado a bandeira nacional, revela a falta de apoio do Governo a pessoas em situação de vulnerabilidade. Famílias, ativistas e especialistas pedem uma resposta urgente. O caso expõe a realidade de abandono de cidadãos com transtornos mentais em Timor-Leste.
O vídeo de um jovem com doença mental com a bandeira nacional riscada ao pescoço tornou-se viral nas redes sociais, gerando críticas e reflexões sobre a situação das pessoas com transtornos mentais em Timor-Leste. O jovem é natural do Suco de Lisapat, em Ermera, e vive atualmente em Díli com o irmão.
O Provedor dos Direitos Humanos e Justiça (PDHJ), Virgílio da Silva Guterres, criticou a falta de apoio do Governo a esta população vulnerável. “Estou mais preocupado com a situação do Lucas do que com a bandeira ou qualquer outra coisa que ele tenha riscado. Como Provedor, lamento a realidade enfrentada por Lucas, a criança com transtornos mentais que também se tornou viral, e outros jovens em risco”, afirmou ao Diligente, sublinhando que o Estado tem falhado em garantir condições de acolhimento para crianças e jovens em risco.
O Provedor lamentou que, após mais de 20 anos de independência, o Estado não tenha criado mecanismos para apoiar pessoas com transtornos mentais. “O Governo utiliza os grupos vulneráveis para justificar a aprovação do Orçamento Geral do Estado (OGE), mas, na prática, não lhes dá a devida atenção”, acrescentou.
A Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL) identificou o jovem e recolheu o seu depoimento. No entanto, segundo o Comandante do Município de Díli, Superintendente-Chefe Orlando Gomes, há suspeitas de que outras pessoas tenham instigado o jovem a cometer o ato e penduraram a bandeira à volta do seu pescoço. Lucas forneceu à polícia os nomes dos envolvidos e a PNTL está a realizar buscas para responsabilizar os autores.
O jovem foi levado ao Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV), onde foi confirmado que sofre de uma doença mental. Após o diagnóstico, a PNTL entregou-o à sua família, que reside em Tasi Tolu, Díli.
Francisco da Costa, irmão do jovem, confirmou que o jovem tem mostrado sinais de doença mental há cerca de um ano. “Ele não fica quieto em casa, vai e volta. Mal chega, pega nas suas coisas e sai outra vez. Precisamos de ajuda para que ele seja levado a Laclubar ou a outro local onde possa ser tratado”, apelou.
A família associa a doença a uma crença supersticiosa, alegando que o jovem começou a apresentar sintomas após matar uma cobra em em Casnafar, Aileu, que, segundo a família, seria um espírito.
O académico José Lino Costantino Pereira, da Universidade de Díli (UNDIL), defendeu que a PNTL e a Polícia Científica de Investigação Criminal (PSIC) devem identificar as pessoas que incitaram o jovem a riscar a bandeira. “Este ato configura crime, pois aproveitaram-se de uma pessoa com doença mental para praticar um ato ilícito”, afirmou.
José Lino também criticou as publicações de internautas que divulgaram o vídeo nas redes sociais, sugerindo que as autoridades devem responsabilizar quem usou o jovem para ganhar visualizações online. “Em Timor, algumas pessoas ganham dinheiro com vídeos virais nas redes sociais”, destacou.
Para o académico, a bandeira nacional não pode ser desrespeitada, pois simboliza o sacrifício de milhares de timorenses na luta pela independência. “Desrespeitar a bandeira é desvalorizar o esforço de quem deu a vida pela pátria”, reforçou.
Judite Dias Ximenes, ativista dos direitos humanos, pediu ao Governo e ao Ministério da Solidariedade Social e Inclusão (MSSI) que tomem medidas concretas para apoiar as pessoas com transtornos mentais. “A bandeira é um símbolo nacional, mas, neste caso, quem a riscou foi uma pessoa com transtornos mentais. O Governo deve agir, pois em Díli é possível ver muitas pessoas com doenças mentais a vaguear pelas ruas”, alertou.
A ativista lamentou o abandono desta população e defendeu a criação de políticas públicas para resolver o problema. “Este caso deve servir de reflexão para todos. Se o Estado continuar a ignorar esta realidade, o número de pessoas com doenças mentais abandonadas nas ruas só aumentará”, afirmou.
O Diretor Nacional de Assuntos das Pessoas com Deficiência, do MSSI, Domingos Henriques Maia, reconheceu o problema e garantiu que o Ministério tem apoiado as pessoas com transtornos mentais. No entanto, sublinhou que a sublinhou só é feita quando as famílias ou as autoridades locais comunicam a situação ao Ministério.
“Podemos levá-lo a Laclubar ou a outros locais de tratamento, mas precisamos de um pedido formal por parte da família. Se o Governo agir por conta própria e algo de indesejável acontecer, a família pode responsabilizar o Estado”, justificou.
Questionado sobre as pessoas com transtornos mentais que vagueiam pelas ruas de Díli, Domingos Henriques Maia afirmou que as dificuldades na identificação das famílias impedem uma solução mais eficaz. Entre janeiro e setembro de 2024, 123 pessoas com doenças mentais foram tratadas no Centro de Laclubar, das quais 90 já recuperaram, segundo o MSSI.
O Governo reconheceu que ainda não tem um centro de acolhimento específico para pessoas com transtornos mentais, mas afirmou estar a monitorizar outras instituições que prestam esse tipo de apoio, como o Centro São João de Deus, em Laclubar, o Klibur Domin, em Tibar, e a ONG Pradet.
O psicólogo Ângelo Menezes Aparício alertou que, neste caso, o comportamento do jovem pode ter sido influenciado pelo meio social. “As suas ações podem ter fins recreativos, pois a capacidade cognitiva dele é muito limitada. Ele acredita que o que faz está correto, influenciado pelas pessoas ao seu redor”, explicou.
Para Ângelo Aparício, a polémica deve servir de alerta para a forma como as pessoas com doenças mentais são tratadas pela sociedade. “Se ele foi incitado a riscar a bandeira, isso demonstra um aproveitamento das suas limitações mentais. Esta prática é inaceitável”, concluiu.
O caso expõe uma realidade preocupante em Timor-Leste: enquanto o foco do debate público e das declarações de várias entidades recai sobre o respeito à bandeira nacional, o jovem com doença mental permanece sem o apoio necessário para o seu tratamento.
Apesar das críticas do Provedor de Justiça e Direitos Humanos, que destacou a falta de políticas públicas para acolher pessoas com transtornos mentais, e dos apelos da família para que o jovem receba tratamento adequado, a resposta das autoridades continua limitada.