O movimento do gume passará despercebido aos menos atentos, mas atrevo-me a dizer que é um dos grandes temas do nosso tempo. Será para cá, ou para lá? Deverá ser considerado em função da posição do corpo em relação ao objeto cortante, ou do que é cortado? Voltarei a isto mais tarde.
Por agora, interessa que se levante o véu desta subtil, mas envolvente matriosca. Sinto que lhe falhamos. Que se faça justiça ao gume da faca e à importância de se saber para onde vai.
É inquestionável que a aparente curta rama do assunto seja habilmente descurada pelas academias, consórcios de investigação e, sobretudo, pelas conversas de café da especialidade. Mas, agora que a ordem mundial parece dar sinais de escangalhamento, assistimos a um desfilar de senhores de fa(c)to, com o peso do futuro à tiracolo. Seguem sem reunir consensos em torno das grandes questões – sobretudo as mais célebres –, em vez de encontrarem redutos de entendimento, ainda que pequenos, por mais pequeninos que sejam. Que caibam numa mão.
Percebe-se onde quero chegar?
Não sendo um exemplo de consenso, o jeito de manipular a faca é um ato sobre o qual há entendimento. Pode parecer irrelevante, mas insisto que há aqui matéria de interesse à escala global, uma amostra do antídoto para os olhos fracos e os ouvidos moucos.
Senão, vejamos. Por oposição às grandes ameaças ao mundo, criadas pela humanidade, entre elas, por exemplo, a nutrição, a segurança ou a globalização, o mundo sentenciou o ser humano com a batata. Isso mesmo: um tubérculo, irregular, muitas vezes rugoso, e feiinho quanto baste.
Para lhe “tratar da saúde” (da batata), no sudeste asiático, as pessoas parecem preferir levar o gume para lá, ou seja, no sentido contrário à posição do corpo. Já a ocidente é norma trazê-lo para o lado de cá, orientando a lâmina na direção do corpo, na hora do corte.
Não vamos mais longe, tomemos Timor-Leste como exemplo. Aqui, pelos vistos, verificam-se as duas modalidades de abrir lanho. Mais curioso ainda é notar que os executantes do corte se dividem, não só na forma como o executam, mas também na geografia – em Loromono (oeste), para dentro, em Lorosa’e (este), para fora. Familiar, não é?
Se o ser humano resolveu a grande questão do tubérculo, os grandes problemas que inventou exigem alguma atenção, não somente quanto ao lado em que mora a solução, mas sobretudo à posição que se ocupa em relação ao objeto. Neste caso, a posição no mundo de onde se olha.
Se a oriente, a preocupação com a nutrição é a fome, a ocidente é a obesidade. A oeste a segurança é ciber e, a leste, a segurança é, por assim dizer… menos ciber. No ocidente, a globalização constata-se pelas prateleiras cheias de coisas oriundas de todas as partes do mundo e nas conversas com referências comuns, entre sujeitos que nasceram em lugares distantes. A facilidade de ir, o imediatismo de ter. O turismo, que encheu as cidades de lojas de lembranças vindas da China e as excursões de pessoas que compraram o direito a ter dias iguais.
Em inúmeras latitudes, a oriente, dá a impressão de que se está à porta de um evento que ainda não abriu para quem sempre esteve lá, enquanto que se veem indivíduos a sair pela mesma porta, já saciados, mas queixosos pela indigestão.
Não nos deixemos iludir pela estética. Todos procuramos subir a mesma montanha. O lado em que se tenta ascender é que varia, bem como a altitude do ponto de partida. Assim sendo, os consensos apresentam-se naturalmente mais esquivos e difíceis de obter. Tal não implica que não haja margem para entendimentos, que se podem, em muitas situações, resumir a um mero: “ali faz-se ao contrário”.
Por outro lado, não deixa de ser possível optar-se por uma abordagem mais pueril: cada um com a sua batata; cada um com os seus motivos para escolher a melhor técnica de corte. Se assim for, proponho o seguinte: para a fome, basta que se corte com atenção. Para a obesidade, que, sem atenção, se aponte o gume afiado ao próprio corpo na hora da larica. Para a segurança, lâmina para lá, no sentido da ameaça, com o máximo descuido. Para a globalização, que deixem em paz os castelos e os palácios e se faça a excursão ao tubérculo… ou à faca usada às avessas.
Faça-se o que se fizer, aplique-se a lógica da batata: descasca-se e come-se.
Miguel Mota é cidadão português, formado em Turismo e Património. Especializado em vinhos: segura os copos com o mindinho para cima. A viajar pela Ásia há dois anos. Em março comprou uma bicicleta em Bali e veio para Timor-Leste.