Para compreender os impactos psicológicos da violência sexual contra pessoas do sexo masculino

O discurso predominante em muitas sociedades, incluindo Timor-Leste, sustenta a ideia de que os homens devem ser ‘fortes’, competitivos, dominantes, capazes de se proteger e assumir um papel ativo e de controlo na relação sexual/Foto: Adobe Stock

A violência sexual é uma experiência traumática que afeta a vida de qualquer pessoa, seja qual for o género, a idade, o nível de educação ou a classe social. Neste artigo, vamos conversar sobre a violência sexual, com foco na violação contra pessoas do sexo masculino. Utilizo aqui a expressão ‘sexo masculino’ de forma genérica para me referir a pessoas que, ao nascer, foram designadas como homens com base na aparência dos órgãos genitais e socializadas em contextos heteronormativos, independentemente da sua identidade de género.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a violência sexual é definida como todo o ato sexual, a tentativa de consumar um ato sexual, os comentários ou insinuações sexuais indesejadas, ou as ações que visem comercializar ou explorar a sexualidade de uma pessoa mediante coação, não importando a relação desta com a vítima, em qualquer contexto, incluindo, mas não se limitando ao ambiente doméstico e profissional.

Assim, violência sexual envolve todas as formas de agressão e abuso de natureza sexual, com ou sem contacto físico, que podem causar danos físicos, emocionais e/ou psicológicos. Entre os exemplos mais comuns estão o assédio (físico, online ou verbal), o atentado ao pudor, o abuso sexual, o voyeurismo, a coação, a violação, o exibicionismo, a exposição ou partilha não consentida de imagens íntimas, a exploração sexual, a manipulação emocional, entre outros. Dependendo do país e da legislação em vigor, estas diferentes formas de violência sexual podem ser classificadas de maneira distinta, influenciando a formulação de leis, as medidas de prevenção, os mecanismos de proteção às vítimas e as punições para os agressores.

Segundo o relatório When numbers demand action, elaborado pela UNICEF (2024), estima-se que, atualmente, entre 410 e 530 milhões de meninos e homens foram vítimas de algum tipo de violência sexual durante a infância. Destes, cerca de 240 a 310 milhões sofreram violação ou outro tipo de agressão sexual com contacto físico. Estes números, embora alarmantes, representam apenas os casos devidamente registados e aos quais a instituição teve acesso.

Entre as principais dificuldades enfrentadas por pessoas do sexo masculino que foram vítimas de violência sexual, estão os estigmas sociais e os preconceitos culturais. O discurso predominante em muitas sociedades, incluindo Timor-Leste, sustenta a ideia de que os homens devem ser ‘fortes’, competitivos, dominantes, capazes de se proteger e assumir um papel ativo e de controlo na relação sexual.

Esta construção socio-histórico-cultural da masculinidade pode reforçar, nas vítimas de violação, sentimentos de vergonha, confusão, impotência, humilhação e culpa, como se fossem responsáveis pela agressão que sofreram.

Principais grupos de risco

Embora homens e pessoas socializadas como homens, de todas as idades e grupos sociais, possam ser vítimas de violência sexual, com base num inquérito que realizei entre 2022 e 2023, com 21 participantes que sofreram esse tipo de agressão, identifiquei três grupos de risco.

O primeiro grupo é o das crianças até aos 11 anos. De forma geral, em Timor-Leste, a violação de meninos tende a ser cometida por primos, amigos, tios e pais; os agressores são geralmente mais velhos ou de idade semelhante; no entanto, neste último caso, costumam agir em grupo, não necessariamente todos participam diretamente na agressão, mas ajudam na coação. Outro fator de vulnerabilidade é que, por vezes, as vítimas não estão em casa, pois vivem com parentes ou amigos da família – para estudar, ou porque os pais não tinham condições para os sustentar, ou para ajudar no trabalho e atividades domésticas, por exemplo – e acabam por frequentar outras dinâmicas de poder e hierarquias familiares.

Os adolescentes heterossexuais que apresentam expressões de género que não correspondem às expectativas sociais de masculinidade (ou seja, são considerados muito sensíveis, emotivos, introvertidos, ou que usam roupas, cortes de cabelo e gestos que contrariam a preconceção vigente), também se encontram numa posição de vulnerabilidade à violação sexual. Nestes casos, normalmente, a vítima já conhece o agressor, a violação tende a ser cometida com o apoio de uma ou mais pessoas, ou mediante ameaça física, por meio de uma arma branca, por exemplo.

O outro grupo vulnerável é o dos adolescentes e jovens adultos (até aos 24 anos) com identidade não cisgénero (não binários, transgéneros, demigénero, intergénero, entre outros) ou com orientações sexuais diversas (homossexuais, bissexuais, demissexuais, etc.). Estas pessoas quando vitimadas, além do conflito interno sobre a compreensão e aceitação da própria sexualidade, o medo da rejeição familiar, o bullying na escola e nas ruas apenas por serem diferentes da norma estabelecida, ainda enfrentam o trauma da violência sexual.

Aqui, penso ser importante fazer uma advertência para evitar ruídos e mal-entendidos na comunicação que possam reforçar ainda mais os preconceitos. As características destes grupos baseiam-se num único inquérito e não numa meta-análise de dados consolidados, uma vez que esses dados ainda não existem. Dizer que um grupo é vulnerável não significa que todas as crianças e jovens com características associadas a esses grupos sejam ou serão vítimas de violência sexual.

Uma analogia simples para fixarmos esta ideia: quem viaja de barco em direção a Ataúro tem maior exposição ao risco de naufrágio do que quem nunca entrou num barco. Contudo, isso não significa que o barco vá naufragar, nem que quem está em terra firme esteja totalmente imune a um acidente. Por outras palavras, embora pertencer a um grupo vulnerável aumente o risco de sofrer violência, isso não implica que todos os seus membros sejam vítimas, nem que pessoas fora desse grupo estejam isentas de risco. Pode parecer um preciosismo enfatizar esta distinção, mas o assunto o exige, e prefiro uma digressão redundante e circular a reforçar estereótipos. Vamos em frente.

Cultura, relações de poder e repressão sexual

Em Timor-Leste, predominam valores culturais que associam a masculinidade à heterossexualidade. Esta perspetiva heteronormativa desconsidera as diferentes sensibilidades, trajetórias pessoais, visões do mundo, formas de expressão, as variações biológicas, as identidades de género e as orientações sexuais.

Esse modelo é perpetuado nas relações de poder, o que coloca crianças, adolescentes e jovens adultos que não se adaptam a estas regras numa posição de vulnerabilidade. Podemos observar isto na forma como alguns agressores justificavam a violência. Em tom de ironia, diziam às vítimas para não resistirem, pois elas queriam ser ‘mulheres’ e as ‘mulheres gostam’ (de sexo com homens). Isto reforça a ideia distorcida de que o desejo feminino é sempre passivo e disponível ao homem (assunto para outro artigo).

Além disso, a violência sexual cometida por mulheres contra crianças e adolescentes também é um exemplo, subnotificado, destas preconceções sociais. Como se trata de uma relação heterossexual, e a vítima manteve a sua ‘posição de homem’ durante o ato sexual (ou abuso, assédio e etc.), este tipo de violência é muitas vezes naturalizado e não é visto como tal, desconsiderando os aspetos psicológicos, emocionais e as dinâmicas de poder envolvidas.

A ausência de visibilidade e de debates públicos sobre este tema agrava a situação, dificultando a recolha de dados e a compreensão do fenómeno. A homofobia estrutural, a repressão sexual, as convenções heteronormativas, o machismo e a construção de uma masculinidade associada à força e ao poder contribuem para que a violência sexual contra pessoas do sexo masculino seja minimizada ou, muitas vezes, ignorada, criando um ciclo de silêncio que dificulta o reconhecimento do trauma e a procura de ajuda.

Este silêncio, aliado à falta de apoio, pode afetar a autoperceção e a noção de identidade das vítimas, comprometer o desenvolvimento saudável da sua sexualidade, prejudicar as relações interpessoais e limitar as interações sociais.

Impactos psicológicos e emocionais mais comuns

– Depressão: a vergonha, a culpa, o silêncio e a perda de controlo podem desencadear sentimentos de tristeza, angústia, solidão e desespero. A depressão pode também manifestar-se através de apatia, desinteresse pelas atividades diárias, isolamento social e dificuldades de concentração.

– Transtornos de ansiedade: o medo da rejeição, a vergonha de que outros descubram o ocorrido, o contacto frequente com os agressores, o receio de novas agressões e a sensação de vulnerabilidade são fatores que podem desencadear sintomas como ansiedade, ataques de pânico e fobias.

– Comportamento autodestrutivo: em alguns casos, a vítima pode adotar comportamentos prejudiciais, como o abuso de substâncias, a autolesão ou até tentativas de suicídio. A sensação de que não há saída ou de que a dor emocional é insuportável pode levar à busca por alívio no isolamento ou em ações que lhe causem danos.

– Transtorno de Stress Pós-Traumático: este transtorno pode incluir flashbacks, pesadelos, um constante estado de alerta, como se houvesse uma ameaça iminente.

– Baixa autoestima e sentimento de impotência: a experiência de violência sexual pode abalar a autoestima, gerando uma sensação de impotência e inadequação. A vítima pode acreditar que perdeu o controlo sobre a sua vida ou o seu corpo, o que pode afetar a sua confiança em si mesma e nas suas relações interpessoais.

– Dificuldade em estabelecer ou manter relacionamentos íntimos: o trauma gerado pela violência sexual pode afetar a capacidade da vítima de se relacionar de forma saudável, seja em relacionamentos românticos ou com amigos e familiares. Pode sentir dificuldades em confiar nos outros ou em estabelecer uma ligação emocional, temendo ser vulnerável novamente ou reviver a experiência traumática.

– Impacto no desenvolvimento da sexualidade: a violência sexual pode ter impacto no desenvolvimento saudável da sexualidade, causando dificuldades em compreender e vivenciar a identidade sexual de forma positiva. A pessoa pode questionar os seus desejos e identidade sexual, desenvolver disfunções sexuais (como impotência, ansiedade em relação ao desempenho, entre outros) ou dificuldades em estabelecer intimidade emocional. Do mesmo modo, sentimentos como raiva, vergonha e desamparo, frequentemente associados ao trauma, podem interferir na maneira como a pessoa se percebe e interage no contexto de um relacionamento amoroso.

– Dificuldade de confiar nos outros: a confiança é uma parte fundamental de qualquer relação, e quando uma pessoa sofre algum tipo de violência sexual, ela pode tornar-se desconfiada das intenções dos outros, o que prejudica a criação de vínculos afetivos. Isso pode resultar em isolamento social e solidão.

– Problemas de aprendizagem e concentração: pode comprometer a capacidade de atenção da criança, resultando em dificuldades de concentração, impulsividade, tristeza ou desmotivação, o que causa impacto diretamente na sua memória, a habilidade de aprender novos conteúdos e o seu desempenho escolar.

– Estigma e vergonha: o medo de ser ridicularizada, de perder o apoio da família ou de ser exposta e rejeitada pela sociedade pode levar a vítima a evitar procurar ajuda. Esses sentimentos de vergonha tendem a ser mais intensos quando a violência ocorre num ambiente familiar ou entre amigos, onde o contacto constante com o agressor reforça uma dinâmica de segredo e silêncio. O receio de que as pessoas próximas não o compreendam ou até o julguem pode levar à sensação de isolamento, tornando ainda mais difícil enfrentar e superar a experiência traumática.

Enfrentar a violência sexual: apoio, consciencialização e mudança

A violência sexual, como qualquer outra forma de violência, pode ter efeitos duradouros. Os traumas emocionais, se não tratados adequadamente, podem levar a problemas psicológicos crónicos. Em alguns casos, o trauma pode também perpetuar ciclos de violência e vitimação.

Analisar os valores e as práticas sociais que perpetuam preconceitos e a violência sexual é importante para compreender como as normas culturais e as dinâmicas de poder podem aumentar a vulnerabilidade de determinados indivíduos e grupos. A associação da masculinidade à força e à dominação contribui para o silenciamento das vítimas, enquanto a estigmatização de identidades, orientações e expressões de género não convencionais reforça as discriminações.

Desconstruir estereótipos de masculinidade, fornecer apoio psicológico para ajudar as vítimas a lidarem com os efeitos emocionais da violência e criar grupos de apoio pode contribuir para quebrar o silêncio, partilhar vivências, validar as suas experiências e fortalecer a autoestima. Além disso, promover o debate público, a educação sobre a sexualidade e a consciencialização sobre a violência sexual (em todas as suas formas) pode estimular mudanças nas perceções sociais, incentivar a prevenção, reduzir estigmas e motivar as pessoas a procurarem ajuda.

Alessandro Boarccaech é psicólogo, especialista em psicologia clínica, psicoterapeuta, semiótico e Ph.D. em antropologia.

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