Em tempos de guerra, foi padre e mensageiro. Em tempos de paz, tornou-se consciência crítica da nação. Domingos Maubere, o sacerdote que nunca se calou diante da injustiça, partiu a 16 de maio, aos 73 anos, deixando um legado de fé, coragem e entrega total ao povo timorense.
Internado em estado crítico desde o início do mês no Hospital Nacional Guido Valadares, em Díli, Domingos da Silva Soares – conhecido por todos como Padre Maubere – faleceu a 16 de maio, nos cuidados paliativos. A sua morte gerou comoção nacional, não apenas entre fiéis, mas também entre antigos combatentes, líderes religiosos e políticos, que o recordam como um verdadeiro herói timorense.
Nascido a 12 de maio de 1952, em Letefoho, no município de Ermera, Domingos Maubere sentiu desde cedo o chamamento para servir o povo através da Igreja. A família mudou-se para Fatubessi apenas duas semanas após o seu nascimento. Entre os 10 e os 12 anos, já era conhecido como um jovem diligente e prestável, ajudando a buscar lenha e água e, à noite, ensinando catequese com o apoio de uma senhora da comunidade. “Naquela altura, muitas pessoas foram batizadas”, recorda a irmã, Liberata da Silva Soares.
Partiu para Portugal em 1972. Em plena guerra em Timor, foi ordenado sacerdote na Sé Catedral de Braga, em 1978, após concluir os estudos em Filosofia e Teologia. “Ele recebeu uma carta a dizer que os nossos pais ainda estavam vivos, mas ficou em dúvida. Estávamos escondidos no mato e era difícil ter contacto. Ele não sabia que estávamos vivos, e nós também não sabíamos que já era padre. Só soubemos depois da sua chegada”, contou a irmã.
Regressou a Timor-Leste em 1980, num contexto de brutal ocupação indonésia. Ao chegar ao aeroporto, perguntou de imediato pelos pais. “Disseram-lhe que a mãe já tinha falecido, mas o pai ainda estava vivo.” Foi colocado na paróquia de Ossu, em Viqueque — uma zona fortemente patrulhada pelos indonésios, onde muitos civis eram perseguidos e mortos. “Foi ali a sua primeira experiência difícil”, diz a irmã. “Os militares proibiram o padre de sair de casa. Ele foi muito corajoso. Por isso as pessoas começaram a chamá-lo ‘Maubere’. Não se rendeu, mesmo em situações duras. Atuava como sacerdote, mas também ajudava na causa política.”
Durante a ocupação, ofereceu refúgio a famílias perseguidas, prestou apoio espiritual e denunciou, sempre que possível, as violações dos direitos humanos cometidas em Timor-Leste. Também se tornou mensageiro entre os guerrilheiros e a frente diplomática da resistência, transportando informação, apoio logístico e mensagens entre figuras-chave — uma delas foi Xanana Gusmão. A sua fé inabalável tornou-o símbolo de coragem moral num país devastado pela guerra.
Foi perseguido pelas autoridades indonésias e, em 1983, colocado em prisão domiciliária. Ainda assim, continuou a servir como pároco em várias paróquias do país. “Chegaram a disparar contra o vidro do seu carro e a apontar-lhe armas, mas ele confiava em Deus e nunca teve medo de lutar”, afirma Liberata.
Reconhecimento internacional e papel político
Em 1997, foi novamente para Portugal, onde recebeu o Prémio Internacional da Paz Pax Christi, em reconhecimento pelo seu trabalho junto das comunidades pobres e pela denúncia das atrocidades cometidas durante a ocupação. Nesse mesmo ano, participou na preparação de um congresso com líderes políticos timorenses, que daria origem ao Conselho Nacional da Resistência Timorense (CNRT), do qual se tornou coordenador-geral.
Com a restauração da independência, em 2002, Padre Maubere manteve-se uma voz ativa e crítica. Denunciou a corrupção, a violência contra as mulheres e as desigualdades sociais. Foi uma das poucas figuras da Igreja a levantar a voz contra as falhas dos líderes políticos timorenses.
Em 2008, mudou-se para Macau, onde estudou na Universidade de São José e colaborou com a paróquia da Sé. Reativou o grupo Macau Rai Timor e passou a apoiar espiritualmente a comunidade timorense no território. Mais tarde, foi nomeado vigário para os católicos de língua portuguesa.
Em 2018, tomou posse como pároco da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Becora, onde serviu até aos seus últimos dias.
Mesmo em tempo de paz, nunca deixou de resistir à injustiça. Em 2020, após desacatos no Parlamento Nacional entre deputados, visitou o plenário e criticou abertamente os seus representantes. “O povo exerceu o seu direito de voto, por isso, pedi aos deputados que discutissem o problema do povo, porque o povo ficou com fome. O povo sofreu. A independência não foi para esta briga.”
A sua irmã lembra que nunca hesitou em dizer o que pensava. “Ele procurava sempre a verdade. Quando via algo errado, dizia que não estava certo.”
Maria Clara, uma cristã da paróquia de Becora, recorda com tristeza: “Quando soube da morte do Padre Maubere, o meu coração ficou pesado, como se tivesse perdido alguém da minha própria família. E, de certa forma, perdi mesmo. Perdemos um pai espiritual, um verdadeiro pastor que caminhou connosco, sobretudo nos momentos mais difíceis.”
O que mais a comovia era a sua humildade. “Vivia de forma simples, escutava, partilhava e servia os pobres. Acreditava na justiça de Deus, mas também lutava para que essa justiça fosse sentida já aqui na terra. Choramos a sua morte, mas também celebramos a sua vida. Acreditamos que ele está agora nos braços do Pai, onde já não há dor nem sofrimento.”
Para Maria Clara, o seu legado continuará a dar frutos. “Que a sua entrega nos inspire a viver com mais fé, mais coragem e mais amor pelos outros.”
Padre Domingos Maubere — combatente da libertação e da justiça — ficará para sempre na memória de um país que ele nunca abandonou. Nem nas montanhas da resistência, nem nos corredores do poder. A sua voz firme, a sua coragem moral e a sua entrega ao bem comum fazem dele um dos rostos mais inspiradores da história timorense contemporânea.
Um texto muito bem escrito com muita logica e baseado em factos. Paraebens a autora.
RIP Domingos Maubere.
Ja nao vais ver tanta miseria em TL.