Nomeação polémica de Afonso Carmona relança debate sobre independência da justiça em Timor-Leste

"Muitas pessoas disputam este cargo para politizar o Tribunal de Recurso e alcançar metas pessoais ou políticas. Se isto continuar, Timor-Leste deixará de ter uma justiça verdadeiramente independente"/Foto: G-MPCM

A escolha de um juiz de segunda classe para liderar o Tribunal de Recurso, tomada sem consulta pública ou parlamentar, gera alarme entre juristas, oposição e sociedade civil. Denunciam-se violações da Constituição e receia-se uma politização da justiça timorense.

A nomeação de Afonso Carmona como Presidente do Tribunal de Recurso de Timor-Leste, oficializada a 29 de abril de 2025 por decreto do Presidente da República, José Ramos-Horta, está a gerar forte polémica. Juristas, organizações da sociedade civil e partidos da oposição consideram que a decisão viola a Constituição, ameaça a separação de poderes e pode abrir caminho à captura política do sistema judicial.

Segundo a Constituição da República Democrática de Timor-Leste, o Presidente da República tem competência para nomear o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, cargo que, enquanto o Supremo não estiver instalado, é assumido pelo Tribunal de Recurso. O artigo 124.º, n.º 3, estabelece que essa nomeação deve recair sobre um juiz do Supremo — neste caso, um juiz que já exerça funções no Tribunal de Recurso. Afonso Carmona, no entanto, era juiz de segunda classe do Tribunal de Primeira Instância e não integrava o Tribunal de Recurso na altura da sua nomeação.

Juristas denunciam ilegalidade, falta de mérito e manipulação legislativa

Dois juristas timorenses — Armindo Moniz e Sérgio Quintas — fazem duras críticas à escolha de Carmona, considerando-a uma violação dos princípios constitucionais e do Estatuto dos Magistrados Judiciais.

Armindo Moniz afirma: “Tem de ser nomeado um juiz do Tribunal de Recurso, mas Afonso Carmona é juiz de segunda classe do Tribunal de Primeira Instância. Isto fere a Constituição.”

Acrescenta ainda que o Presidente do Tribunal de Recurso acumula funções no Supremo Tribunal, ainda por instalar, o que exige “categoria e experiência compatíveis com essa responsabilidade”.

Moniz condena também a alteração à Lei da Organização Judiciária, aprovada a 18 de abril de 2025, que passou a permitir, em certos casos, a nomeação de juízes de segunda classe com pelo menos cinco anos de experiência e avaliações positivas. “Alteraram a lei para legitimar uma nomeação que já estava decidida. Isto é engenharia legal ao serviço de interesses políticos.” E acusa: “Vejo o Parlamento como um espaço de políticos pragmáticos, que não dão prioridade ao interesse público nem respeitam a Constituição.”

O jurista salienta que decisões como esta fragilizam o sistema judicial. “Muitas pessoas disputam este cargo para politizar o Tribunal de Recurso e alcançar metas pessoais ou políticas. Se isto continuar, Timor-Leste deixará de ter uma justiça verdadeiramente independente.”

Moniz comparou ainda esta situação com a recente alteração da Lei do Indulto, que facilitou o perdão presidencial a figuras políticas condenadas, como a ex-ministra das Finanças, Emília Pires. “É o mesmo padrão: mudar leis para proteger ou promover aliados.”

Sérgio Quintas também se opõe à nomeação e aponta que Carmona ainda não foi promovido à primeira classe, o que o torna inelegível, segundo a Constituição.

“Esta nomeação serve os interesses dos governantes e até do próprio Presidente da República. Como é que alguém sem conhecimento suficiente pode atuar com qualidade nos processos? Vai ser uma grande confusão.”

O jurista sublinha que há pelo menos quatro juízes de primeira classe com perfil adequado para o cargo: Edite Palmira, João Ribeiro, António Fonseca e Hélder do Carmo. “Por que não foram escolhidos? Carmona porquê? Ele só atuou em casos criminais. Esta decisão teve claramente um caráter político e não seguiu critérios de mérito.”

Quintas também vê semelhanças com a alteração à Lei da Comissão Anticorrupção (CAC). “A CAC hoje limita-se à socialização. O Comissário ainda não remeteu qualquer caso ao Ministério Público. Esperamos que no Tribunal de Recurso não aconteça o mesmo. Se o presidente interferir, será um desastre para a justiça.”

FRETILIN acusa Governo de tentativa de controlo do sistema judicial

As críticas da oposição alinham-se com as dos juristas. A deputada Maria Angelina Rangel, da FRETILIN, considera que esta nomeação faz parte de uma estratégia para capturar o poder judicial.  “Querem colocar alguém alinhado politicamente com o Governo à frente do Tribunal de Recurso. É uma nomeação grave que viola os princípios constitucionais.”

Rangel lembra que, enquanto o Supremo Tribunal de Justiça não estiver instalado, o Tribunal de Recurso assume essas funções e o Presidente desta instância deve ser escolhido de entre os seus juízes. “Alterar esse critério é abrir caminho para nomeações políticas. Esta alteração, que parece pequena, tem um impacto muito grave.”

Para a FRETILIN, a alteração à Lei da Organização Judiciária soma-se à nova Lei do Indulto, aprovada em dezembro de 2023, que permite a libertação de condenados antes do trânsito em julgado, e à reforma da CAC, que reduziu o quórum necessário para nomear o comissário.

“Tudo isto mostra claramente uma intenção de enfraquecer a justiça”, afirmou a deputada, denunciando ainda a ausência de medidas para reforçar o setor judicial, como o recrutamento de juízes ou a instalação do Supremo Tribunal de Justiça.

Em conferência de imprensa realizada esta terça-feira, 6 de maio, a bancada do CNRT manifestou apoio à decisão do Presidente da República de nomear Afonso Carmona como Presidente do Tribunal de Recurso, sublinhando que a nomeação está prevista na Constituição.

Questionado sobre as críticas levantadas por juristas quanto à nomeação de um juiz de segunda classe para liderar o Tribunal de Recurso e o Supremo Tribunal, o deputado Patrocínio Fernandes recusou comentar essas opiniões.

“Não comentámos a posição dos juristas, porque eles trabalham no Tribunal. Este comunicado de imprensa é um documento político que responde ao comunicado político da Fretilin”, afirmou o deputado.

JSMP: nomeação desvaloriza juízes do Tribunal de Recurso

Também o JSMP (Judicial System Monitoring Programme) se manifestou contra a nomeação. A diretora Ana Paula Marçal questionou os critérios aplicados. “Será que não havia juízes de primeira classe com esses critérios?”

Para Ana Paula, esta decisão desvaloriza os juízes que já exercem no Tribunal de Recurso e compromete a credibilidade da instituição. “Só para liderar o Tribunal de Recurso talvez se aceite um juiz de segunda classe. Mas para acumular também funções no Supremo, devia ser alguém com mais qualificação.”

A responsável do JSMP apelou ainda ao investimento na formação de magistrados e criticou a recorrência de justificações como a escassez de recursos humanos. “Ano após ano, ouvimos as mesmas desculpas: falta de mérito, de número ou de classe. E acaba-se por nomear qualquer pessoa para um cargo tão importante.”

Tomada de posse marcada por apelos à confiança e promessas de reforma

Afonso Carmona foi nomeado Presidente do Tribunal de Recurso por decisão do Presidente da República, José Ramos-Horta, substituindo Deolindo dos Santos para um mandato de quatro anos. A nomeação foi formalizada através do Decreto Presidencial n.º 35/2025.

Com início de carreira em 2009 como juiz de terceira classe no Tribunal Distrital de Baucau, Carmona passou pelo Tribunal de Primeira Instância de Díli entre 2019 e 2023, onde coordenou programas de melhoria dos serviços judiciais.

Na cerimónia de tomada de posse, Carmona afirmou que assume o cargo “não como um privilégio, mas com o compromisso de servir o povo e o Estado”, estabelecendo como prioridades o reforço da capacidade dos magistrados, a modernização tecnológica, a transparência e o acesso à justiça para os mais vulneráveis.

Comprometeu-se ainda a trabalhar para a instalação do Supremo Tribunal de Justiça durante o seu mandato, sublinhando que a ausência dessa instância está a provocar sobrecarga no Tribunal de Recurso. “A demora na implementação do Supremo Tribunal de Justiça traz grande sobrecarga ao nosso sistema judiciário.”

Ramos-Horta, por sua vez, defendeu a nomeação como um passo no reforço do Estado de Direito. Recordou que a Constituição confere ao Presidente da República a competência de nomear o Presidente da mais alta instância judicial, após consulta ao Governo.

“Nomeio, mas não dirijo; consulto, mas não mando. A força da nossa democracia não assenta num único indivíduo, mas na resiliência e integridade das nossas instituições.”

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