Nomeação de Carmona viola a Constituição e a separação de poderes, defendem constitucionalista e oposição

“Como pode o Presidente nomear um juiz que não cumpre os requisitos constitucionais para presidir ao Tribunal de Recurso?”/Foto: G-MPCM

A nomeação de Afonso Carmona para o Tribunal de Recurso, baseada numa nova norma legal, está a ser contestada por juristas e pela oposição. Em causa está uma possível violação da Constituição e do princípio da separação de poderes.

A 8 de maio, as bancadas da FRETILIN e do PLP apresentaram ao Tribunal de Recurso um pedido de fiscalização abstrata da constitucionalidade do artigo 76.º-A da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aditado pela Lei n.º 4/2025. A nova norma permite que o Presidente da República nomeie como Presidente do Tribunal de Recurso um juiz que não integre os quadros desse tribunal — bastando que tenha mais de 20 anos de experiência na magistratura judicial.

A nova legislação foi aprovada no Parlamento Nacional no final de abril e aplicada logo no dia seguinte, com a nomeação de Afonso Carmona para o cargo. O decreto presidencial que oficializou a nomeação, datado de 29 de abril, não menciona expressamente a nova norma, mas o seu conteúdo e o momento da sua emissão tornam evidente, segundo os requerentes, que está diretamente sustentado na nova lei.

Para apoiar o pedido de fiscalização, os partidos recorreram a um parecer técnico-jurídico elaborado pelo constitucionalista Rui Medeiros, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Com 36 páginas, o parecer considera que a norma é inconstitucional e, por consequência, também o decreto presidencial que nomeou Afonso Carmona.

“Desde a independência, sempre se entendeu que o Presidente do Tribunal de Recurso, enquanto substituto do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), deveria ser nomeado de entre os seus pares, à semelhança do que a Constituição exige no artigo 124.º, n.º 3, para o STJ”, explicou Rui Medeiros ao Diligente.

Segundo o constitucionalista, essa prática foi seguida nas nomeações anteriores — em 2003, 2007, 2011, 2014, 2017 e 2021 — e só foi alterada recentemente, com a reforma de 2021/2022. Agora, com o novo artigo 76.º-A, o Presidente da República passou a poder nomear um juiz de primeira instância. “Isto rompe totalmente com o regime previsto para o STJ e quebra o equilíbrio entre legitimidade democrática e independência judicial que a Constituição sempre procurou garantir”, sublinhou Rui Medeiros.

Para o jurista, “ou o Tribunal de Recurso é equiparado ao STJ, como tem sido, e a escolha deve ser feita entre os seus juízes; ou, se não o for, o Presidente da República não tem base constitucional para intervir na sua composição. Em qualquer dos casos, esta norma não tem suporte na Constituição”.

A oposição defende que a nova regra viola o princípio da separação de poderes e interfere nas competências do Conselho Superior da Magistratura Judicial, o órgão que deve garantir a independência dos juízes. “Esta alteração legislativa compromete a independência dos tribunais, porque permite ao Presidente da República escolher um juiz de fora, sem qualquer envolvimento do Conselho Superior da Magistratura”, afirmou a deputada Cristina Yuri Costa, da FRETILIN.

A deputada considera que esta mudança “abre espaço à politização da justiça”, ao permitir que o chefe de Estado intervenha na liderança da instância judicial máxima sem justificação constitucional. “Se o Tribunal de Recurso está a exercer transitoriamente funções de STJ, como é possível admitir que, para um tribunal inferior, o Presidente da República passe a ter mais poderes?”, questiona.

Recorde-se que as acusações de politização do setor da Justiça em Timor-Leste não são de hoje. Em 2014, o então Primeiro-Ministro Xanana Gusmão ordenou a expulsão de oito magistrados internacionais — entre juízes, procuradores e assessores jurídicos da Organização das Nações Unidas (ONU)— através de um despacho do Governo que os considerava uma “ameaça à soberania nacional”.

Os magistrados foram obrigados a abandonar o país no prazo de 48 horas, sem explicações públicas detalhadas sobre os fundamentos da decisão. O episódio gerou críticas da ONU, da União Europeia e de organizações de defesa dos direitos humanos, que alertaram para a violação do princípio da independência judicial e o risco de interferência política no setor da Justiça.

Também em 2023, a ex-ministra das Finanças Emília Pires, condenada pelo crime de participação económica em negócio, foi incluída na lista de pessoas indultadas pelo Presidente da República, na sequência de uma alteração à Lei do Indulto aprovada pouco tempo antes no Parlamento. A mudança legal eliminou o impedimento que excluía de indulto crimes relacionados com corrupção e abuso de poder. O caso gerou controvérsia entre juristas e organizações da sociedade civil, que alertaram para o risco de impunidade e de enfraquecimento da luta contra a corrupção.

Segundo Cristina Yuri, a nova norma “invade claramente as competências do Conselho Superior da Magistratura Judicial” e contraria a lógica constitucional. Acrescenta que a falta de uma justificação clara torna a medida arbitrária e perigosa, por abrir espaço a futuras interferências políticas.

Maria Angelina Sarmento, deputada do PLP, salienta que a lista de antiguidade dos magistrados judiciais, publicada no Jornal da República, assinala que o novo Presidente do Tribunal de Recurso ainda não completou 20 anos de serviço como juiz.

“O doutor Afonso Carmona exerceu essa função durante apenas 16 anos, o que significa que não cumpre o requisito previsto no artigo 76.º-A da Lei da Organização do Sistema Judiciário”, explicou.

A deputada afirmou que o seu partido, em conjunto com a FRETILIN, já apresentou um pedido de fiscalização abstrata da constitucionalidade ao Tribunal de Recurso.  “Solicitámos a fiscalização porque consideramos que este tipo de alteração a alguns artigos da lei viola a Constituição, em particular o artigo 124.º, n.º 3”, declarou.

“Lamentamos profundamente. O Presidente está a tentar politizar e interferir até no funcionamento do Conselho. Sabemos que cada órgão de soberania tem o direito de nomear membros para o Conselho Superior da Magistratura Judicial, incluindo juízes do Tribunal de Recurso, mas esta ingerência compromete a independência do sistema judicial”, criticou.

A escolha de Afonso Carmona para a presidência do Tribunal de Recurso ganhou ainda mais contornos polémicos quando, poucos dias depois da nomeação, foi exonerado Lukeno Alkatiri.

Lukeno Alkatiri, vogal do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) e vice-presidente eleito pelos seus pares em 2022, foi nomeado para o órgão pelo então Presidente da República para um mandato de quatro anos. Com mandato até 2026, Lukeno disse ter sabido da sua substituição através do Jornal da República, sem qualquer comunicação formal de exoneração. Na sua reação pública, declarou ter compreendido a “intenção implícita” da nomeação de um novo vogal e anunciou a sua saída do cargo.

Suspeitas de partidarização e afastamentos no CSMJ agravam polémica

O parecer também alerta que o juiz Afonso Carmona, agora em funções, não deve participar na decisão sobre a legalidade da sua própria nomeação, por ter um interesse direto no resultado. Os restantes juízes do Tribunal de Recurso, segundo Rui Medeiros, mantêm legitimidade para se pronunciar sobre o caso.

A FRETILIN e o PLP garantem que o objetivo principal da ação é garantir o respeito pela Constituição. “Não se trata de um ataque pessoal, mas de uma defesa da legalidade constitucional e do equilíbrio entre os órgãos de soberania”, sublinha Cristina Yuri.

Cristina Yuri acrescentou ainda que a intenção da FRETILIN e do PLP “não é mudar tudo, nem criar instabilidade”, mas garantir o cumprimento da Constituição. “O que sempre se fez foi nomear o Presidente do Tribunal de Recurso de entre os seus próprios juízes. Isso protege o sistema judicial contra pressões políticas externas. Só queremos que essa prática se mantenha, conforme manda a Constituição”, afirmou.

Um jurista que prefere manter o anonimato considera que a atuação recente do Presidente da República é contraditória. “Em abril, criticou a partidarização do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) e defendeu que Timor-Leste devia seguir exemplos de outras jurisdições — rai seluk, como disse. Mas é precisamente o equilíbrio na composição do CSMJ que impede essa partidarização”, afirmou.

O jurista recorda que os membros do CSMJ são nomeados por três vias distintas: pelo Presidente da República, pelo Governo, pelo Parlamento Nacional e pelos magistrados judiciais de entre os seus pares, num modelo inspirado no constitucionalismo português. “Como pode o Presidente nomear um juiz que não cumpre os requisitos constitucionais para presidir ao Tribunal de Recurso?”, questiona. A situação, nota, tornou-se ainda mais grave quando, logo após a nomeação de Afonso Carmona, foi designado um novo membro do CSMJ sem explicações públicas.

Vozes institucionais pedem transparência e legalidade

O Provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, manifestou preocupação com a nomeação de Afonso Carmona como Presidente do Tribunal de Recurso.

“Segundo as informações de que disponho, o anterior presidente, doutor Deolindo dos Santos, já completou dois mandatos, como previsto na lei. Nessa medida, competia ao Presidente da República nomear um novo responsável para o cargo”, afirmou Virgílio Guterres ao Diligente.

Quanto à exoneração do vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), Lukeno Alkatiri, o Provedor preferiu não se pronunciar. “Tenho informações limitadas. Acompanhei os debates nas redes sociais, incluindo uma publicação do próprio Dr. Lukeno Alkatiri, mas não estou completamente inteirado dos mecanismos legais aplicáveis.”

O Provedor sublinhou que a nomeação de Afonso Carmona tem suscitado inquietação, nomeadamente pela alegada não conformidade com os critérios exigidos por lei. “Para ocupar o cargo de Presidente do Tribunal de Recurso, é necessário ser juiz de primeira classe. O senhor Carmona é juiz de segunda classe. Esta informação é pública e, naturalmente, tem gerado debate.”

Virgílio Guterres lamentou ainda a rapidez com que todo o processo decorreu. “A verdade é que tudo aconteceu muito depressa. No mesmo dia, o juiz cessante foi afastado, e o novo presidente nomeado e empossado. Quando a lei não define claramente os procedimentos, abre-se espaço para interpretações e decisões apressadas — e isso, inevitavelmente, gera críticas e desconfiança.”

O Provedor acrescentou que a sua equipa jurídica está a analisar a recente alteração à Lei da Organização do Sistema Judiciário, para avaliar a possibilidade de avançar com um pedido de fiscalização. “Caso se confirmem irregularidades, poderá ser apresentado um pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade, ao abrigo do artigo 151.º da Constituição, ou até submetido o caso ao próprio Tribunal de Recurso.”

Também a diretora do Programa de Monitorização do Sistema Judicial (JSMP, em inglês), Ana Paula Marçal, expressou preocupação com o impacto institucional das recentes decisões. “Na minha opinião, o Dr. Lukeno não agiu como representante de qualquer partido, mas sim com profissionalismo e no interesse do Estado. Também eu, enquanto membro do Conselho do Ministério Público, nunca participei em discussões políticas. A nossa atuação é exclusivamente institucional.”

Ana Paula Marçal defendeu que o Presidente da República tem legitimidade para nomear ou substituir membros dos órgãos judiciais, desde que existam fundamentos. “No entanto, é essencial respeitar os mandatos até ao fim. O desempenho de uma pessoa não deve ser julgado com base no apelido ou na sua filiação partidária.”

A diretora do JSMP sugeriu ainda que, no futuro, qualquer exoneração seja comunicada com antecedência à pessoa em causa. “Mesmo que o Presidente da República alegue não ser obrigado a informar, trata-se de uma questão de ética institucional que deve ser melhorada.”

O diretor-executivo do Fórum das Organizações Não Governamentais de Timor-Leste (FONGTIL), Valentim da Costa Pinto, considera que a nomeação do novo Presidente do Tribunal de Recurso suscitou um debate relevante na opinião pública, sobretudo após o pedido de fiscalização abstrata apresentado por partidos políticos. “O Presidente da República deve consultar, sobretudo, o Conselho Superior da Magistratura Judicial, porque este conselho é que pode escolher e propor nomes ao Presidente, que depois pode aprovar”, afirmou ao Diligente.

Valentim Pinto frisou que todos os órgãos de soberania com autoridade para tomar decisões políticas devem agir com responsabilidade. “Pedimos aos órgãos competentes que não fragilizem o sistema judicial, a fim de manter a integridade no setor da justiça.”

O responsável da FONGTIL apelou ainda a que o Presidente da República preste um esclarecimento oficial sobre esta situação, para que a população compreenda melhor os contornos da nomeação. “Assim, podemos garantir confiança no sistema de justiça do nosso país.”

Questionado sobre eventuais ações da FONGTIL, o diretor indicou que, para já, ainda não existe uma decisão formal, mas que poderão ser feitos contactos com outras organizações. “Vamos tentar convidar colegas com competência legal para alinharmos os procedimentos. É provável que apresentemos uma proposta ao Parlamento Nacional, ao Governo e ao Estado para evitar que situações como esta voltem a repetir-se.”

Chefe de Estado rejeita acusações de interferência

O Presidente da República, José Ramos-Horta, reagiu publicamente ao pedido de fiscalização, defendendo que a nomeação seguiu os parâmetros constitucionais. “Segui a Constituição. O que está claro nela é que compete ao Presidente da República nomear o Presidente do Tribunal de Recurso e o Procurador-Geral da República”, afirmou. Questionado sobre um possível conflito de interesses, acrescentou que “os que estão no Tribunal de Recurso sabem que os outros não são independentes”, sem especificar a quem se referia.

Questionado sobre a razão da exoneração do vice-presidente do CSMJ, o Presidente da República respondeu que, desde a sua tomada de posse, tem procurado criar estabilidade institucional em articulação com o Governo.

“Durante muitos anos, houve partidarização no setor da Justiça. Por isso, pouco a pouco, vamos tentar mudar. Mas não é por causa deste ou daquele elemento. Quem quiser dizer o contrário, pode dizer. Eu olho para os nomes como uma oportunidade de dar espaço a novas pessoas, timorenses com experiência. Por isso, fiz a mudança. Mas isso não significa que o senhor exonerado não tenha competência. É um bom jurista”, afirmou José Ramos-Horta.

O deputado Patrocínio Fernandes, do CNRT e presidente da Comissão A do Parlamento Nacional, defendeu a legalidade da nomeação de Afonso Carmona. Explicou que, segundo o artigo 81.º do Estatuto da Magistratura Judicial, conta-se como antiguidade na carreira o tempo de serviço exercido como juiz, procurador ou defensor público. “Contando com tudo isso, o juiz Carmona tem 24 anos de trabalho”, afirmou. Acrescentou ainda que “em democracia, qualquer grupo tem o direito de questionar, mas no fim é sempre o Tribunal quem decide”.

Relativamente ao pedido de fiscalização abstrata apresentado pela FRETILIN e pelo PLP, o Diligente tentou ouvir o Presidente do Tribunal de Recurso, mas este recusou prestar declarações.

A decisão do Tribunal de Recurso será determinante para clarificar os limites da atuação do Presidente da República e para reafirmar o papel da Constituição na nomeação de altos cargos judiciais. Para os proponentes da ação, “o que está em causa é a proteção da independência dos tribunais e da separação de poderes. Sem isso, não há justiça nem democracia”, sublinhou o jurista.

O debate em torno deste caso surge num contexto mais amplo, marcado por decisões anteriores — como a expulsão de magistrados internacionais em 2014 ou o indulto presidencial a Emília Pires em 2023 — que suscitaram críticas sobre a independência do sistema judicial. Para juristas e deputados da oposição, o que está agora em causa é o equilíbrio entre os poderes do Estado e a credibilidade das instituições judiciais em Timor-Leste.

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